09 Fevereiro 2021
“O Evangelho, sem dúvida, ensina o infinito respeito de Jesus pela mulher humilhada. Ele baixou os olhos para escrever no chão, antes de deixá-la partir, livre de condenações, restaurada à vida pela confiança que demonstrava nela”, escreve Anne-Marie Pelletier, teóloga, membro da Comissão Papal de Estudo sobre o diaconato feminino, em artigo publicado por La Croix International, 08-02-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
As notícias fizeram muito barulho na imprensa internacional.
Na Irlanda, um relatório de 3 mil páginas relatou como, por décadas, 18 “casas para mães e bebês” eram lugares de miséria e destruição psicológica para dezenas de milhares de mulheres. Essas casas eram também lugares onde as crianças pequenas eram deixadas para morrer.
Essas atrocidades ocorreram de 1922 a 1998 em casas administradas em sua maioria por congregações religiosas.
Um relatório em 2013 denunciou a outra instituição, a Magdalene Laundries, para oprimir mães solteiras ou mulheres que foram supostamente resgatadas da prostituição.
Aqui também, a Igreja Católica estava envolvida.
Isso levanta questões sobre nossos compromissos como Igreja. Nós somos muito rápidos para denunciar e trabalhar contra o colapso da moral, assim como alarmando mudanças societárias e legislativas.
Mas agora nós encaramos uma verdade desconfortável: a “cultura da morte”, a qual o Magistério denuncia, não é simplesmente um mal cometido pelos outros.
É também esta realidade que assola a vida da Igreja e prospera nas comunidades de fiéis a quem o Evangelho da Vida é confiado.
Pode-se imaginar algo mais horrível do que os restos mortais dos 796 mortos recentemente encontrados no orfanato irlandês em Tuam, enterrados no que antes era uma fossa séptica?
Foi necessária a tenacidade de uma mulher, Catherine Corless, imbuída de sua humanidade simples e sem recursos além de sua paixão pela justiça, para que um pouco de dignidade fosse devolvida a essas criancinhas, irmãos inocentes daqueles em Belém que são lembrados em a liturgia cristã no dia seguinte ao Natal.
Como podemos entender tal aberração, que é exacerbada pelo fato de que essas instituições foram estabelecidas em um país tradicionalmente católico e tido como um exemplo de resistência cristã à secularização?
Assim, é impossível não suspeitar de outros condados de partes do Leste Europeu ou dos EUA que hoje são defensores ferrenhos de um cristianismo vinculado a posições ideológicas problemáticas.
A advertência do Papa Francisco em seu livro mais recente, “Vamos sonhar juntos: O caminho para um futuro melhor”, é pertinente aqui.
“A rigidez é o sinal do mau espírito que esconde algo. O que está oculto pode demorar muito para ser revelado, até que surja algum escândalo”, afirma.
É também o momento de reconhecer que “tudo está interligado”, segundo um princípio caro ao Papa.
Isso é particularmente verdadeiro no caso de crimes sexuais, que não são uma questão de deslizes, que seriam atribuídos a algumas pessoas mal orientadas ou pervertidas.
Não é por acaso que, em cada um desses escândalos, vemos uma relação distorcida com a sexualidade.
Proibições que alimentam fantasias, em um caso. Uma obsessão pelo pecado que traz infortúnio para mulheres grávidas solteiras, em outro caso. Estranho como os homens estão protegidos de qualquer responsabilidade.
É essa concepção equivocada da relação com “carne” (um conceito mal interpretado de São Paulo) que pode levar as mulheres – freiras – a se tornarem executoras de outras mulheres por não terem outra resposta a não ser condenar, humilhar e trancar em uma lógica criminosa de expiação.
Nestes tristes estabelecimentos irlandeses, pergunta-se, além disso, como o Evangelho poderia ter sido contornado dessa forma. É o mesmo Evangelho que retrata Jesus diante da mulher que foi arrastada diante dele por homens revestidos de respeitabilidade religiosa, designando-a adúltera e exigindo que fosse punida sem piedade.
Este Evangelho, sem dúvida, ensina o infinito respeito de Jesus pela mulher humilhada. Ele baixou os olhos para escrever no chão, antes de deixá-la partir, livre de condenações, restaurada à vida pela confiança que demonstrava nela.
Este texto deveria ter rachado, se não as paredes de pedra, pelo menos os corações endurecidos em uma moralidade desumana.
É verdade que esse relato no capítulo 8 do Evangelho de João era difícil de aceitar. Não é encontrado na maioria dos manuscritos antigos.
Isso é bastante intrigante, mas talvez revele um duplo significado.
Primeiro, a resistência à sua mensagem. E, então, a necessidade disso acabará por triunfar e impor sua presença.
A questão é decididamente crucial. Está dividido entre a culpa hipócrita e assassina, de um lado, e as boas novas do Evangelho, do outro.
O fato é que, para o momento, o choro das vítimas dentro da Igreja desqualifica a expertise reivindicada pelos católicos. Em qualquer caso, faz da Igreja suspeita desde o início. Nós destruímos nossa credibilidade.
Por fim, vamos destacar que por uma coincidência perturbadora, os bispos da França chamaram para jejuar e rezar pela próxima votação no legislativo sobre bioética, no momento em que o escândalo irlandês está se tornando pior.
E isso levanta a questão: nossas sociedades cristãs irão se responsabilizar pela devastação causada por uma inflexível e anti-evangélica moralidade, assim como nossas sociedades secularizadas terão que se responsabilizar pela vertiginosa onipotência que parece permitir a manipulação ilimitada da vida?
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O Evangelho e o respeito pelas mulheres humilhadas. Artigo de Anne-Marie Pelletier - Instituto Humanitas Unisinos - IHU