23 Agosto 2018
Em uma nação em crise pelos escândalos de abuso sexual clerical, e em uma sociedade secularizada, muitas famílias esperam que a visita do papa à Irlanda ajude a reafirmar sua fé.
O artigo é de Malo Tresca, jornalista, publicado por La Croix International, 22-08-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
São três minutos para o meio-dia quando o transporte da família Ascough estaciona na paróquia de St. Anne, em Shankill, na periferia sul de Dublin.
As portas do veículo abrem para uma multidão de crianças que chegam para a missa dominical na pequena igreja costeira.
A empolgação com a visita do papa Francisco à Irlanda para encerrar o 9º Encontro Mundial das Famílias, que ocorre de 25 a 26 de agosto, foi palpável no último mês com cartazes e panfletos pedindo às famílias irlandesas que participassem desse “grande evento”.
"Será bom mostrar que não somos católicos isolados e que ainda formamos uma grande família em todo o país", sorri Jaclyn Ascough, 51 anos, esforçando-se para conter sua excitação.
Conselheira de fertilidade em uma clínica que promove o retorno aos métodos naturais de contracepção e membro regular na rádio cristã Spirit Radio, Jaclyn se apresenta primeiro como “mãe de dez filhos”, incluindo três que morreram como resultado de abortos espontâneos.
De fato, há muita coisa acontecendo na família neste dia em particular. O marido de Jaclyn, Tom, é esperado em breve no luxuoso Dublin Talbot Hotel para o lançamento oficial de uma série do YouTube que ele vem preparando nos últimos dez anos.
Intitulada “Catholicism Beyond Reasonable Doubt” (“Catolicismo além da dúvida razoável”, em tradução livre), a série de sete episódios tenta responder às grandes questões existenciais da vida.
“Deus pode existir apesar do que diz a ciência? Por que ele permite sofrimento? Qual é o significado dos sacramentos?” Estas são apenas algumas das questões que muitas vezes são levantadas em uma Irlanda profundamente secularizada.
"Como a fé não é mais transmitida sistematicamente entre as gerações na Irlanda, eu disse a mim mesmo que era necessário usar ferramentas digitais para fornecer recursos pedagógicos para aqueles que querem saber mais", disse Tom, um engenheiro na casa dos quarenta anos que se especializou no desenvolvimento de programas de evangelização. Ele também é membro do conselho de diretores do Iona Institute, um importante instituto católico conservador.
Acompanhar o ritmo frenético dos Ascough e seus filhos alegres, de dois a 22 anos, durante dois dias, pode levar a pensar que a secularização ainda não chegou a Dublin.
No entanto, isso está longe de ser a realidade. Simplesmente sair de casa é o suficiente para confirmar o quão excepcional é essa maravilhosa família na nova sociedade irlandesa.
“Seria difícil fazer uma sociologia da fé na Irlanda hoje porque as famílias se tornaram tão heterogêneas”, disse a irmã Patricia Somers, uma irmã de caridade de 70 anos, falando em um dos salões da paróquia da Catedral de Santa Maria em Dublin, onde o papa Francisco virá no sábado, 25 de agosto.
"Os católicos agora são quase 'contraculturais', sendo os domingos agora frequentemente dedicados a atividades comerciais e esportivas", disse ela. "É preciso um grande esforço e muita convicção para continuar praticante na Irlanda hoje."
Ao longo das últimas duas décadas, o país também testemunhou o surgimento de uma forma “extrainstitucional” de catolicismo dentro das famílias, bastante distante da prática convencional.
James Farrell, pai de três filhos viajando em um ônibus no Condado de Mayo, no oeste da Irlanda, concorda com este termo.
"Eu sou católico", disse ele. “Eu rezo em casa com minha esposa e meus filhos, mas ir à missa está fora de questão”.
"O clero hipócrita fez mal demais", disse ele ao descer do ônibus.
Como entender um sentimento tão forte de rejeição à instituição por parte das pessoas e a deserção da prática católica? Para entender isso, é necessário apenas olhar para trás, para a história atormentada da igreja local, que anteriormente era tão moralista e clerical.
Após a independência irlandesa da dominação inglesa, alcançada no início da década de 1920, a igreja altamente influente reinou sobre toda a sociedade, proporcionando a educação das crianças nas escolas católicas.
Mas em 1994, a prisão altamente divulgada do padre Brendan Smyth, acusado de pedofilia, lançou nova luz sobre a horrível realidade do abuso sexual perpetrado em um grande número de estabelecimentos católicos.
Quase 15.000 casos entre 1940 e 1980 foram identificados, para o estupor dos 4 milhões de cidadãos da Irlanda. As vítimas começaram a falar.
Outras formas de abuso e maus-tratos - às vezes mortais - que ocorreram nas Magdalene Laundries (Lavanderias de Madalena, em tradução livre) operadas por ordens religiosas dedicadas à reeducação de “meninas perdidas”, também começaram a ter um impacto.
A imprensa publicou depoimentos de crianças órfãs que condenaram enfaticamente o terrível tratamento que haviam recebido em instituições católicas durante o século passado, o que se somou às dificuldades de uma instituição que já estava à beira de um escândalo.
Recordando este passado doloroso, Will Hamilton ainda sente raiva. Caligrafista aposentado de Dublin, Hamilton, de 60 anos, que também diz que foi maltratado quando estudante, se tornou um fervoroso oponente da igreja.
"Essa estrutura, que está à beira da falência, fez mil vezes mais mal do que bem para as famílias irlandesas", afirma.
Nas últimas semanas, Hamilton, que pertence ao grupo do Facebook “Say Nope to the Pope” (Diga não ao papa, em tradução livre), que tem mais de 2.000 membros, tentou reunir pessoas para protestar contra a visita do papa Francisco nos dias 25 e 26 de agosto.
"A raiva das vítimas da igreja é evidentemente legítima, mas não deve obscurecer o fato de que a instituição tentou mudar profundamente para virar a página sobre o clericalismo", disse Tara Fullam, mãe de dois adolescentes, da cozinha de sua bonita casa em Palmerstown Drive, no oeste de Dublin.
"Minha mãe, que também tinha uma visão estrita da instituição, só experimentou a igreja em sua forma mais autoritária e orgulhosa, ditando as regras da vida diária", disse Fullam, que tem 47 anos e é diretora de recursos humanos.
"Agora, os párocos estão mais próximos de nós", disse ela. "Podemos simplesmente convidá-los para almoçar ou jantar".
No entanto, não é difícil demonstrar a perda espetacular da influência da Igreja irlandesa nos últimos anos.
Apenas três anos após a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, mais de 66% dos eleitores apoiaram um referendo em favor da legalização do aborto.
O resultado veio como mais um duro golpe para muitas famílias católicas da ilha, amplificando o sentimento de estarem isoladas da sociedade.
Resolutamente "pró-vida", os Ascough estavam na linha de frente da batalha. Sua filha mais velha, Katie, 22 anos, foi removida de seu papel de presidente da união estudantil da University College, em Dublin, a segunda maior universidade da capital, por se recusar, conscientemente, a publicar no jornal estudantil informações sobre a obtenção de abortos no exterior.
A questão recebeu grande publicidade na imprensa nacional.
"Não é fácil ser um jovem católico e defender a vida", disse Hope, a irmã de 18 anos de Katie, que já leu a encíclica Humanae Vitae do papa Paulo VI.
"Isso vai contra a ideologia 'cool' que está na moda", disse ela.
O desafio é encontrar uma nova linguagem para falar com os jovens, reconquistar a confiança dos leigos e dar mais espaço às famílias dentro da instituição.
Na esteira do choque do referendo, muitos desafios permanecem para a Igreja irlandesa, que está contando com a visita do papa para restaurar seu relacionamento com uma grande porcentagem da população que se tornou alienada a ela.
"Francamente, tem sido difícil ter orgulho de nossa fé nos últimos tempos", disse Mary Anne Stokes, mãe de Leah e grávida de seu segundo filho.
Funcionária de uma associação missionária, Stokes, que mora com o marido em Celbridge no Condado de Kildare, perto de Dublin, é voluntária do Encontro Mundial das Famílias.
Ela tem grandes expectativas para o evento.
"Eu espero até que nos permita finalmente andar de cabeça erguida", disse ela.
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As famílias irlandesas que permaneceram fiéis à Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU