A conversão é uma das linhas-guia do pontificado de Francisco, mas a Instrução para as paróquias tem duas almas em desencontro, afirma o teólogo
A Instrução “A conversão pastoral da comunidade paroquial a serviço da missão evangelizadora da Igreja”, da Congregação para o Clero, publicada em 20 de julho deste ano, é dividida em duas partes: uma teológica e outra canônica, e a seguinte imagem a sintetiza: “a primeira é um ‘sonho’ pastoral; a segunda, um ‘pesadelo’, diz o teólogo Antonio José de Almeida, à IHU On-Line. Segundo ele, “ao ler a primeira parte, você respira um clima de Vaticano II, um ar ‘franciscano’. Em contraposição, menciona, “a parte canônica é praticamente a negação daquilo que, embora deficitário, a parte teológica tem de bom”.
O teólogo observa que a “linguagem de Francisco está bastante presente” no documento, mas na parte canônica, lamenta, “quase desaparece”. “Está muito evidente que a Instrução tem duas almas num só corpo. O espírito que anima a primeira parte não é o mesmo que pariu a segunda. Não há coerência entre elas; há discrepância, desencontro, contradição, ‘discrasia’ (nas palavras de um liturgista italiano). Um caso clínico de bipolaridade literária, para dizer pouco!”, afirma.
Na avaliação dele, embora a Instrução tenha o objetivo de colocar a “conversão pastoral” no centro da “nova etapa da evangelização” da Igreja, há uma precedência do Código Canônico na orientação deste processo. “A oposição não é, evidentemente, entre o Concílio e Francisco, de um lado, e o Código de Direito Canônico, do outro; a questão é o uso que se faz da legislação canônica num texto sobre ‘conversão pastoral’ em sentido missionário. O Código é citado cerca de oitenta vezes, não para abrir estrada para ‘a conversão pastoral da paróquia a serviço da missão evangelizadora da Igreja’, mas prevalentemente para enfatizar e reafirmar modelos convencionais que deveriam ser no mínimo relativizados, contrastar ou reorientar práticas em curso e inibir a busca de alternativas ao que está aí, ao instituído. A preocupação subjacente vai mais na linha de conservar estruturas, instituições e modelos administrativos tradicionais do que favorecer mudanças numa instituição substancialmente válida, mas passível de ser – e precisando com urgência ser! – profundamente reformulada em aspectos não essenciais, sem tantas intercorrências canônicas”, pontua.
Padre Almeida (Foto: Diocese de Maringá)
Antônio José de Almeida é doutor e mestre em Teologia Dogmática pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e graduado em Teologia pela mesma universidade, e em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Palmas-PR. É professor aposentado da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e sacerdote da Diocese de Apucarana, no Paraná.
IHU On-Line - Que avaliação geral faz da Instrução “A conversão pastoral da comunidade paroquial a serviço da missão evangelizadora da Igreja”, da Congregação para o Clero, publicada em 20 de julho deste ano?
Antônio José de Almeida - A Instrução tem duas partes. Uma, digamos, teológica; a outra, canônica. Ao ler a primeira parte, você respira um clima de Vaticano II, um ar “franciscano”. Isso deve ficar bem claro. Sabemos que o Concílio não chegou a uma síntese acabada a respeito da Igreja local, mas a sua redescoberta e o tratamento que lhe dá o Concílio são uma das suas pedras miliárias. Também o que o Concílio ensina a respeito da paróquia, ainda que esteja disperso por vários documentos (Sacrosanctum Concilium - SC, Lumen Gentium - LG, Christus Dominus - CD, Presbyterorum Ordinis - PO, Optatam Totius - OT, Apostolicam Actuositatem - AA, Ad Gentes - AG), é de um valor teológico, pastoral e missionário inestimável. Sem falar do conjunto da eclesiologia do Concílio: uma construção sólida, de amplo respiro e cativante, que pôs em marcha um dinamismo transformador raramente observável em instituições complexas. A eclesiologia da Instrução é, sem dúvida, conciliar, mas fragmentária, indecisa, imprecisa, às vezes desconexa, muito aquém do que se esperaria de um documento sobre um tema tão relevante e candente como a conversão pastoral da paróquia, que, nas últimas décadas, foi objeto de estudos sérios e de proposições transformadoras muito bem fundamentadas. Neste sentido, a Instrução não faz jus à riqueza, ao rigor e ao vigor do Vaticano II e à história dos seus efeitos.
A parte canônica, aliás, é praticamente a negação daquilo que, embora deficitário, a parte teológica tem de bom. Vou lhe responder com uma imagem. A primeira é um “sonho” pastoral; a segunda, um “pesadelo”.
IHU On-Line - Em relação às propostas de reforma da paróquia indicadas pelo Papa Francisco, qual sua avaliação?
Antônio José de Almeida - A linguagem de Francisco está bastante presente. No título do documento, em toda a primeira parte e na conclusão; na parte canônica, quase desaparece. A “conversão”, como sabemos, é uma das linhas-guia do atual pontificado. O Papa articula muito bem conversão pessoal e outros âmbitos da conversão. A Evangelii Gaudium fala de “pastoral em conversão” (uma vez), de “conversão pastoral” (uma vez), de “conversão missionária” (uma vez) e, para deixar claro que a finalidade é a missão ou a evangelização, de “conversão pastoral e missionária”. Veja o que o Papa diz logo depois de afirmar que a Evangelii Gaudium é o seu documento programático: “Espero que todas as comunidades se esforcem por atuar os meios necessários para avançar no caminho duma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como estão. Neste momento, não nos serve uma ‘simples administração’. Constituamo-nos em ‘estado permanente de missão’, em todas as regiões da terra” (EG 25).
Aliás, imediatamente antes de entrar no tema da paróquia – que ele coloca no significativo contexto de “uma reforma eclesial inadiável” – o Papa diz: “A reforma das estruturas, que a conversão pastoral exige, só se pode entender neste sentido: fazer com que todas elas se tornem mais missionárias, que a pastoral ordinária em todas as suas instâncias seja mais comunicativa e aberta, que coloque os agentes pastorais em atitude constante de “saída” e, assim, favoreça a resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece a sua amizade” (EG 27). No Documento, aparecem, sim, termos “franciscanos” como “criatividade” (três vezes), “encontro” (oito vezes), “dinamismo” (quatro vezes), “buscar caminhos”, “opção missionária”, “Igreja em saída” (duas vezes). Sob este aspecto, a Instrução até levanta o astral! Mas o sono é intermitente e o sonho, curto.
IHU On-Line - O senhor se refere à segunda parte da Instrução como a um “pesadelo”. O que quer dizer com isso?
Antônio José de Almeida - Está muito evidente que a Instrução tem duas almas num só corpo. O espírito que anima a primeira parte não é o mesmo que pariu a segunda. Não há coerência entre elas; há discrepância, desencontro, contradição, “discrasia” (nas palavras de um liturgista italiano). Um caso clínico de bipolaridade literária, para dizer pouco! A oposição não é, evidentemente, entre o Concílio e Francisco, de um lado, e o Código de Direito Canônico, do outro; a questão é o uso que se faz da legislação canônica num texto sobre “conversão pastoral” em sentido missionário. O Código é citado cerca de oitenta vezes, não para abrir estrada para “a conversão pastoral da paróquia a serviço da missão evangelizadora da Igreja”, mas prevalentemente para enfatizar e reafirmar modelos convencionais que deveriam ser no mínimo relativizados, contrastar ou reorientar práticas em curso e inibir a busca de alternativas ao que está aí, ao instituído. A preocupação subjacente vai mais na linha de conservar estruturas, instituições e modelos administrativos tradicionais do que favorecer mudanças numa instituição substancialmente válida, mas passível de ser – e precisando com urgência ser! – profundamente reformulada em aspectos não essenciais, sem tantas intercorrências canônicas.
IHU On-Line - O senhor poderia dar algum exemplo?
Antônio José de Almeida - Veja o caso da supressão de paróquias, que tem se tornado muito comum na Europa nas últimas três décadas, matéria, aliás, em que as Conferências Episcopais e as Dioceses desenvolveram uma expertise séria e responsável. A Instrução diz: “Não são motivos adequados, por exemplo, somente a escassez do clero diocesano, a geral situação financeira da diocese, ou outras condições da comunidade presumidamente reversíveis em pouco tempo (por exemplo, a consistência numérica, a não autossuficiência econômica, a modificação do planejamento urbano no território). Como condição de legitimidade deste gênero de providências, é necessário que os motivos aos quais nos referimos estejam direta e organicamente conexos com a comunidade paroquial interessada e não com considerações gerais, teóricas e ‘de princípio’” (Art. 48, 2).
Na maioria dos casos, porém, as paróquias que têm sido supressas o foram justamente pelas razões acima enumeradas: a diminuição de clero, a rarefação do número de fiéis e o custo financeiro da manutenção em funcionamento de inúmeras estruturas que se tornaram desnecessárias. Além disso, como se pode dizer que a consistência numérica, a autossuficiência econômica ou a modificação do planejamento urbano são presumivelmente reversíveis em pouco tempo?
Um pouco adiante, a Instrução diz: “Em modo particular, nos casos de supressão de paróquias, o decreto deve indicar claramente, com referência à situação concreta, quais são as razões que induziram o Bispo a adotar a decisão. Essas, então, deverão ser indicadas especificamente, não sendo suficiente apenas uma genérica alusão ao ‘bem das almas’” (n. 50). O Concílio, porém, diz outra coisa: “A mesma salvação das almas seja a causa pela qual se determinem ou se reconsiderem as ereções ou supressões das paróquias, ou outras análogas invocações que o Bispo por sua própria autoridade poderá realizar” (Christus Dominus 32). A Instrução, aliás, sob vários aspectos, rebaixa a autoridade do bispo diocesano, a despeito do Vaticano II e do próprio Código de Direito Canônico.
A Instrução, a certa altura, diz o óbvio: “A comunidade paroquial compõe-se em modo especial de fiéis leigos” (Art. 85). O número, porém, do documento dedicado diretamente a eles (17 linhas) só não é menor que os dedicados ao vigário paroquial (11 linhas) e ao administrador paroquial (14 linhas), que são figuras emparentadas ao pároco – que é o verdadeiro foco da Instrução e do qual se fala amplamente (mais de 70 vezes) – só não detendo a plenitude do ofício. Não só. A seção VIII da Instrução dedica-se aos vários sujeitos envolvidos na comunidade paroquial. O esquema é rigorosamente descendente: pároco, administrador paroquial, vigário paroquial, diáconos, pessoas consagradas, leigos! Esqueceram de inverter a pirâmide! Não só: haveria que partir da paróquia como “comunidade cristã” e, dentro dela, visualizar todos os carismas, serviços e ministérios necessários para sua vida e missão. Esta seria a perspectiva adequada e correta.
Em termos essenciais, a Instrução fala bem sobre os leigos: sua participação na ação evangelizadora da Igreja em virtude dos sacramentos de iniciação; a transformação das realidades terrenas como sua vocação própria; e, finalmente, a possibilidade de “colaborar com os próprios Pastores ao serviço da comunidade eclesial, para o crescimento e a vida da mesma, pelo exercício dos ministérios muito diversificados, segundo a graça e os carismas que o Senhor houver por bem depositar neles”, que é uma citação da Evangelii nuntiandi 73. “Colaborar com os pastores ao serviço da comunidade eclesial” me parece bem diferente de “participação no exercício do cuidado pastoral”. Esta expressão tem um cheiro de enxergar os ministérios não-ordenados só ou prevalentemente sob o ângulo da suplência.
Teoricamente, há lugar para a “suplência”, mas a própria suplência e o recurso a ela precisam ser questionados quando se avança o sinal. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a meu ver, colocou muito bem esta questão, quando ponderou no Documento 62: “Alguns dos ministérios que os leigos e as leigas exercem são chamados de ministérios de ‘suplência’, porque, embora seu exercício não dependa da ordenação, as funções neles implicadas são historicamente consideradas próprias e típicas do ministério ordenado. Portanto, quando os leigos ou leigas as assumem, estão suprindo a falta ou impossibilidade de ministros ordenados. A questão de fundo que se poderia colocar em relação a esta situação é a seguinte: se estas funções, embora próprias e típicas do ministério ordenado, podem, em determinadas circunstâncias, ser assumidas por leigos e leigas, por que não se pensar numa reorganização mais ousada dos ministérios eclesiais, criando verdadeiros e próprios ‘ofícios’ a serem conferidos a leigos e leigas estavelmente e com responsabilidade própria e não simplesmente como ‘suplência’? Do ponto de vista teológico, se um leigo ou leiga pode suprir o ministro ordenado em determinadas ações, significa que está habilitado para tanto, em virtude dos sacramentos de iniciação. Por outro lado, nas atuais circunstâncias, em muitos lugares, a suplência não tem o caráter de eventualidade ou de provisoriedade, mas de situação pastoral normal e habitual, sem previsão razoável de mudança desse quadro” (CNBB, Missão e ministérios dos cristãos leigos e leigas, n. 89).
IHU On-Line - Em relação à conversão pastoral da paróquia, qual seria o papel dos leigos e leigas de acordo com a Instrução?
Antônio José de Almeida - A primeira indicação é muito genérica: o testemunho cristão nos vários ambientes e “em todo nível de responsabilidade” (o que quer dizer?); depois, na paróquia, “a assunção dos seus compromissos correspondentes ao serviço da comunidade paroquial” (n. 86). Mas os autores da Instrução parecem não acreditar muito na efetivação desta indicação, pois fizeram questão de citar a Evangelii Gaudium exatamente naquela passagem que diz que “quando mais precisamos dum dinamismo missionário que leve sal e luz ao mundo, muitos leigos temem que alguém os convide a realizar alguma tarefa apostólica e procuram fugir de qualquer compromisso que lhes possa roubar o tempo livre. Hoje, por exemplo, tornou-se muito difícil nas paróquias conseguir catequistas que estejam preparados e perseverem no seu dever por vários anos” (EG 81). É a acídia egoísta!
IHU On-Line - Concretamente, o que a Instrução propõe?
Antônio José de Almeida - Na verdade, mais que propor caminhos, a Instrução chama a atenção para o que não pode ser feito no âmbito da “participação no exercício do cuidado pastoral”. Aliás, esta impostação da questão, repito, já é equivocada, pois superestima o polo comunidade-pastor, enquanto a paróquia é, antes de qualquer outra relação, “uma determinada comunidade de fiéis constituída estavelmente no âmbito de uma Igreja particular” (Can. 515)!
Em nível de terminologia, os diáconos e os leigos com responsabilidade na paróquia não podem ser chamados de “pároco”, “co-pároco”, “pastor”, “capelão”, “moderador”, “responsável paroquial” e similares. Não tenho notícia de onde isto esteja oficialmente acontecendo. Em nível de funções, podem ser instituídos leitores e acólitos; se desempenharem estas funções por “deputação temporânea”, mesmo que duradoura, não podem ser chamados tais. Além disso, o bispo pode conceder oficialmente alguns encargos: a celebração da Palavra nos domingos e festas de preceito, se for impossível a participação na celebração eucarística – portanto, uma “eventualidade excepcional”; a administração do batismo – uma “exceção” prevista no Can. 861, § 2; o rito de exéquias, respeitado o nº 19 dos Praenotanda do Ordo exsequiarum; a pregação numa igreja ou oratório, “se as circunstâncias, a necessidade ou um caso particular o exigirem”, jamais na celebração da Eucaristia; assistir os matrimônios, respeitada toda a legislação pertinente.
Mas, me pergunto: por que se restringir a isto, quando sabemos, por experiência, que, num processo pastoralmente bem conduzido de conversão pastoral da paróquia, surge uma gama imensa de ministérios que os leigos assumem com convicção e responsabilidade? Sobre isso, na Instrução, não se encontra nenhuma palavra de incentivo, de estímulo. A paróquia é reduzida à sua dimensão litúrgica. Porém a liturgia, lembra a Sacrosanctum Concilium, “não esgota toda a ação da Igreja” (SC 9), embora seja “o cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte de onde promana todo o seu vigor” (SC 10). Há toda uma “ação da Igreja” entre fonte e cume; para a Instrução, isso não interessa; há como que um curto-circuito litúrgico. Não é à toa que muitas paróquias, de fato, não passam de prestadoras de serviços litúrgicos pontuais. Celebram a ressurreição, mas, desculpem a expressão, são túmulos de vida e missão cristã.
IHU On-Line - Qual a sua opinião a respeito da maioria dos inúmeros “nãos” da segunda parte da Instrução?
Antônio José de Almeida - Este tipo de restrições já havia sido objeto de consideração na Instrução interdicasterial De Ecclesiae Mysterio sobre algumas questões concernentes à colaboração dos fiéis leigos no ministério dos sacerdotes, de 15 de agosto de 1997, vigésimo quinto aniversário do Motu próprio Ministeria quaedam. Aquela instrução foi objeto de muitas observações críticas. Lembro-me, na época, sobretudo, as de Karl Lehmann, bispo de Mainz, do Cardeal Pierre Eyt, arcebispo de Bordeaux, Gabriel Matagrin, bispo emérito de Grenoble, Georges Gilson, arcebispo de Sens-Auxerre, entre outros. Uma análise detalhada e profunda daquela Instrução foi feita por Bernard Sesboüé, para a edição brasileira do livro Não tenham medo! Os ministérios na Igreja hoje, São Paulo: Paulus, 1998. Na introdução da edição francesa da sua análise – que, em francês, é o seu livro Rome et les laïcs. Une nouvelle pièce au débat: L’Instruction romaine du 15 août 1997. Paris: Desclée de Brouwer, 1998 –, Sesboüé diz o seguinte: “Eu não reagirei ao tom do documento, ao seu caráter reticente, rígido e suspeitoso, já assinalado por vários bispos, e que tanto faz sofrer os leigos engajados nestes ministérios. Eu vou me concentrar no conteúdo da Instrução procurando ir ao fundo das coisas e debatendo com ela”. Retomei estas críticas, a partir da situação pastoral brasileira, no meu livro Novos ministérios. A necessidade de um salto à frente, publicado pelas Paulinas, em 2013. Não vou repetir o que está neste livro.
Só anotar o seguinte, pela última vez: abordar a questão da ministerialidade laical na paróquia em chave de “participação no exercício do cuidado pastoral” é um equívoco teológico e pastoral grosseiro, e a Instrução peca e paga por este erro. Esta impostação obriga a considerar todas as questões a partir da relação paróquia-pároco quando não pároco-paróquia. A impostação adequada tem que ser comunidade/carismas-ministérios. A pergunta correta é: de que ministérios necessita uma paróquia para ser Igreja em estado de missão, Igreja evangelizadora, Igreja samaritana, Igreja em saída? Mas já estou ficando repetitivo. Gostaria apenas de chamar a atenção para algumas outras questões de fundo.
IHU On-Line - Quais são as questões de fundo da Instrução?
Antônio José de Almeida - Chamo a atenção para três. A primeira tem a ver com a teologia dos ministérios. A Instrução não define nem descreve o que é ministério e, quando fala dos ministérios dos leigos, o faz só em relação ao ministério presbiteral e, mais exatamente, ao ofício do pároco. Esta abordagem empobrece a compreensão dos ministérios seja teologicamente seja pastoralmente. Ao contrário, se entendermos ministério como um carisma que assume a forma de um serviço específico à vida e à missão da Igreja nas áreas da palavra, da celebração e da comunhão, assumido de forma estável e reconhecido – de diversas formas – pela Igreja, o horizonte se amplia.
Carismas que são ministérios são aqueles que respondem a exigências ordinárias e comuns, que proveem às necessidades básicas e permanentes da comunidade e da Igreja toda; parecem surgir de baixo, de necessidades concretas e históricas, mas a Igreja os recebe como dons do alto. A pluralidade de ministérios não é apanágio da Igreja primitiva, mas da Igreja de sempre toda vez que ela se entrega de corpo e alma, na força do Espírito, à sua missão evangelizadora. Foi assim que nós vimos, aqui na América Latina, particularmente no Brasil, um florescimento inaudito de serviços e ministérios nas décadas de 1960, 1970 e 1980, no dinamismo do Concílio, o grande Pentecostes do século XX. Neste sentido, a Instrução é estruturalmente contraditória: como favorecer a conversão pastoral da paróquia com “isso não pode”, “não é assim”, “obedeçam ao protocolo” e coisas do gênero? Não abriu novos horizontes, não incentivou a busca de novos caminhos, não despertou nenhuma paixão pela missão da Igreja, nem sequer esboçou algum perfil de paróquia missionária. Quando o bispo Schick, de Bamberg – que é canonista! –, diz que a Instrução não só é inútil, mas prejudicial, imagino que esteja denunciando isto.
Uma segunda questão é a sinodalidade. “Sínodo é nome da Igreja”, diz São João Crisóstomo. Se a Igreja precisa caminhar junto para encontrar os melhores caminhos, isto é absolutamente indispensável quando tem que, fiel à sua origem em Jesus e nos apóstolos, evangelizar em situações novas, complexas e urgentes como as que vivemos hoje. A Instrução percebe que a paróquia precisa de conversão pastoral para cumprir sua tarefa num contexto novo, de urbanização, de tecnologias revolucionárias de comunicação, de mobilidade, mas dá respostas de trasanteontem aos desafios de hoje. Parece a guerra da cloroquina; a ciência dizendo que não há provas de ser eficiente para o tratamento da covid-19 e os prestidigitadores de plantão vendendo às massas a ilusão de que os cientistas querem enganá-las. Na Europa, há décadas, alguns países estão às voltas não tanto com a conversão pastoral da paróquia, mas com a sua sobrevivência e, às vezes, buscando uma coisa, acabam descobrindo outra, muitas vezes caminhos de renovação ou até de transformação. E, há tempo, desde o século passado – a Mission de France é de 1940, o livro Paróquia missionária de Michonneau é de 1946 –, em muitos lugares se vai em busca de uma Igreja “em estado de missão”. Aqui no Brasil, o Plano de Emergência 1962-1965 e, depois, por cerca de dez anos, o Plano de Pastoral de Conjunto dos nossos bispos, tinham uma inspiração renovadora e missionária. E tudo isso se construiu sinodalmente. É difícil ver o Cardeal R. Marx, de Munique, emocionar-se, mas, na celebração dos 44 anos da morte do Cardeal Döpfner – um dos quatro moderadores do Concílio –, ele levantou a voz, dizendo que a Igreja universal e as Igrejas locais precisam se ouvir, compartilhar experiências, levar em conta as particularidades de história e cultura, entender-se: “É inacreditável que um documento de Roma chegue sem que nunca se tenha conversado a respeito conosco. É esta a convivência entre Igreja universal e Igreja local que se quer? Absolutamente. Uma Igreja sinodal é uma coisa diferente daquilo que estamos vendo.”
A Instrução articula inadequadamente teologia, pastoral e direito canônico. Um liturgista italiano, o leigo Andrea Grillo, professor no Santo Anselmo, chegou a dizer que a Instrução trabalha com “uma teologia sem pernas e um direito sem cabeça”. Teologia, pastoral e direito não são realidades estanques, que possam caminhar sem interagir, mas funcionar em diálogo, criando sinergias. Que sentido tem levantar a bandeira da eclesiologia do povo de Deus e mesmo da comunhão sem lançar um olhar fraterno às buscas das Igrejas locais e, depois, a partir de uma infinidade de cânones – portanto, de forma inadequada, uma vez que o direito não trabalha com o “que deve ser construído”, mas com o “instituído” – intervir friamente numa caminhada sofrida, como é a das Igrejas europeias com escassez de clero e as jovens Igrejas que nunca tiveram clero suficiente, mas ambas, a seu modo, procuram construir paróquias-comunidade e engajar o maior número possível de leigos e leigas, com seus carismas, na missão evangelizadora?
Cito uma passagem do livro A paróquia. Direito canônico e perspectivas pastorais, de Borras, teólogo belga: “O número reduzido de presbíteros e o crescimento dos leigos que assumem responsabilidades são geralmente fenômenos interligados. Desenvolveram-se, de modo mais claro, depois do Concílio Vaticano II. O evento conciliar e a sua recepção nas Igrejas locais não são, por outro lado, de maneira alguma estranhos à acentuação deste duplo fenômeno: a eclesiologia do povo de Deus e uma visão orgânica da comunhão eclesial encorajam uma valorização da corresponsabilidade batismal e uma redistribuição dos papéis a serviço da missão.” Uma observação, porém! Borras não está dizendo que a diminuição de presbíteros seja a causa do surgimento dos ministérios leigos; pode ser, porém, uma condição favorável, se houver um projeto pastoral e missionário de fôlego. Sob este ponto de vista, a Instrução nasceu já necessitando de um respirador artificial. Desculpem-me, mas acho que ela não tem futuro.
IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algo?
Antônio José de Almeida - Teria várias, mas vou colocar apenas duas questões que, penso, já deveriam estar resolvidas há tempo, e o tempo passa e isso fica assim há quarenta, cinquenta anos. A primeira é sobre as mulheres não poderem ser “instituídas” leitoras e acólitas, conforme o Can. 230, § 1. Que lugar a Igreja pode oferecer às mulheres na Igreja se nem proclamar a Palavra de Deus oficialmente na celebração e servir ao altar oficialmente como leitoras e acólitas instituídas elas podem? (A palavra “mulher” não ocorre uma vez sequer na Instrução e, na prática, geralmente são elas que carregam a paróquia nas costas.)
A segunda é sobre o Conselho de Pastoral em todos os níveis da Igreja local não ser obrigatório. Como pode um órgão de análise, reflexão, discernimento, busca comum de caminhos comuns não ser obrigatório na diocese, nas paróquias, nas comunidades eclesiais menores? O Papa Francisco, falando em Assis, disse: “Quanto são necessários, os conselhos pastorais! Um bispo não pode guiar uma diocese sem os conselhos pastorais. Um pároco não pode conduzir a paróquia sem os conselhos pastorais” (4 de outubro de 2013). Por que não dar, então, o bom passo seguinte e estabelecer coerentemente a sua obrigatoriedade? E por que não ter caráter decisório, em plena comunhão com o pároco, quando há um caminho sinodal sério e se buscou a unanimidade? A CNBB, no já citado documento Missão e ministérios dos cristãos leigos e leigas, de 1999, orientava: “Haja o cuidado, nos Conselhos, de não buscar simplesmente a vontade da maioria, mas, quanto possível, o consenso de todos ou soluções que conciliem direitos e interesses da maioria e dos grupos minoritários. Diante do consenso do Conselho, o Pároco assuma sem hesitar a decisão, a não ser que motivos de consciência lhe imponham um momento de reflexão ou consulta ao Bispo diocesano, para voltar novamente a dialogar com o Conselho” (n. 122).
Gostaria de citar Bernard Sesboüé: “Qual imagem de Igreja propõe efetivamente este documento? É verdadeiramente a imagem de uma Igreja-comunhão? Não é mais bem uma imagem onde todas as coisas são igualmente determinadas do alto até nos seus mínimos detalhes, o essencial nivelado ao acessório? De que mentalidade ‘curial’ ele testemunha? Os bispos aí não são considerados mais como agentes de execução pastoral do que como pastores em quem se confia realmente?”