04 Abril 2016
Nos anos 80, dois eram - na opinião do grande Yves Congar – os teólogos que ele tinha em grande estima e alta consideração: o dominicano Hervé Legrand e o jesuíta Bernard Sesboüé. Autor de quarenta livros, desde a patrística até a dogmática, do ecumenismo à atualidade, este último foi membro da Comissão Teológica Internacional, um dos teólogos mais atentos às questões relacionadas aos ministérios na Igreja. Tem 20 anos, exatamente, o famoso livro do qual partimos para uma conversa amiga depois da Páscoa: N'ayez pas peur! (Não temais!)
A entrevista é foi publicada por Settimana News, 30-03-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis a entrevista.
Padre Bernard, o senhor terminava seu livro escrevendo sobre o objetivo fixado de contribuir com uma análise teológica rigorosa e esclarecedora, em vista de maturar uma nova imagem da Igreja e dos seus ministérios. Parece, porém, que o caminho ainda é longo.
Depois da publicação deste livro, certamente, aconteceram coisas muito positivas na vida da Igreja. A participação dos leigos no ministério pastoral continuou a crescer. Que isto se tenha tornado um fato na vida da Igreja, é inegável. Mas a questão propriamente dita dos ministérios, continuou a sofrer sérios atrasos.
É preciso reconhecer que a Igreja e a hierarquia investiram na retração. Meu livro provocou reações, não tanto por seu conteúdo, mas pelas censuras dirigidas a ele: o fato de falar publicamente sobre a questão contribuía para esvaziar os seminários ... Se tinha medo, então, que as muitas iniciativas dos leigos arriscassem ir além da Igreja. Na França, um documento do Conselho de Estudos Doutrinários da Conferência dos bispos – Les Ministres ordonnés dans une Église-communion (1993) - se apresentava como resposta ao meu artigo, publicado pela revista Etudes, de setembro de 1992: "Os animadores pastorais leigos. Uma perspectiva teológica". Por seu lado, Roma dava sinal negativo na famosa Instrução acerca de algumas questões sobre a colaboração dos fiéis leigos no ministério dos sacerdotes, assinada em 15 de agosto de 1997, pelos prefeitos de sete Dicastérios da Cúria Romana, no momento em que o Papa João Paulo II fazia sua viagem à França.
Este texto, de uma severidade excepcional, reconhecido como tal também em Roma, colocava-se totalmente ao oposto do meu artigo de 1992 e do meu livro N'ayez pas peur!, publicado um ano antes. Suas "disposições práticas" foram muito restritivas.
O documento estava dominado pela obsessão de uma confusão entre o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial. Rejeitava os nomes geralmente dados aos titulares de uma missão estritamente pastoral, e até mesmo evitava propor dar-lhes um nome: falava-se de "suplência extraordinária". As ADAP (Assemblées dominicales en l’absence de prêtres, as celebrações dominicais na ausência do padre), vistas com desconfiança, não permitiam a satisfação da obrigação dominical. O documento não via outra solução para o problema que a "necessidade de uma pastoral das vocações cheia de zelo", como se os bispos fossem negligentes a este respeito. Tal Instrução foi realmente muito desalentadora para os leigos empenhados neste caminho.
Da minha parte, reagi a Instrução dos sete Dicastérios com um pequeno livro intitulado “Roma e os leigos. Uma nova contribuição para o debate: a Instrução romana de 15 de Agosto de 1997, completado pela resposta a sete perguntas feitas-me pela Revista Il Regno (5 Janeiro de 1998). Depois de ter reportado a Instrução, propus um "comentário livre", muito incisivo - reconheço – na esteira das emoções criadas nos ambientes do laicato empenhado nos ministérios de serviço da Igreja. Enfatizava o tom de severidade, muito desconfortável, voltado a desencorajar sua generosidade em tentar sinceramente prestar serviço à Igreja, e a ilusão de um documento que pedia para agir como se a participação dos leigos ao ministério ordenado fosse somente um parêntese, que era necessário fechar o mais rapidamente possível.
No novo livro, muito mais recente - Alguns aspectos da Igreja, Pagãos e Judeus - Escritura - Autoridade - Estrutura Ministerial (2011)-, retomei minha análise do ensinamento do Concílio Vaticano II, sobre os ministérios: "As vicissitudes de uma recepção: o deslocamento das categorias do Ministério desde o Vaticano II e a implementação até 2010". Mostrei que a passagem operada pelo Vaticano II da categoria-mãe de sacerdócio àquela do envio em missão dos discípulos de Cristo, estava cada vez mais esquecida, mesmo em textos oficiais, em total benefício do conceito medieval de sacerdócio.
O vocabulário escolhido para celebrar o "Ano Sacerdotal", tratando-se de um ano consagrado ao ministério dos padres, era um sinal gritante.
Reli N'ayez pas peur! Regards sur l'Eglise et les ministères aujourd'hui, e me encontro em completa concordância hoje com o que escrevi vinte anos atrás. O que mudou é que a situação da Igreja agora é sensivelmente mais degradada. Nós não tínhamos ainda chegado ao fundo, na onda descendente, e ainda não temos certeza de ter chegado hoje.
Viu-se, desde então, também os seminários regionais, isto é, aqueles de várias dioceses juntas, forçados a fechar por falta de seminaristas, como Bayonne e Caen. Vinte anos atrás, os bispos ainda podiam contar com grande número de padres mais velhos, que se prestavam a diferentes serviços. Agora, em sua maioria, faleceram. Essa escassez de sacerdotes na Igreja é dramática e não permite mais que os bispos garantam um minimum de pastoral senão recorrendo a fórmulas cativantes e generosas. Até mesmo as grandes cidades veem seu número de paróquias diminuírem ou se reagruparem por falta de padres.
Quanto à participação dos leigos no ministério pastoral, noto um certo desgaste devido ao tempo e ao fato de que as gerações atuais são geralmente menos generosas em relação à geração contemporânea ou imediatamente posterior ao Concilio.
E sobre a ordenação de homens casados? Vinte anos atrás, o senhor colocava a questão referindo-se sobretudo à Eucaristia a ser assegurada aos fiéis.
Não aconteceu nada de nada. Fomos nos chocar contra o desastre da falta de decisão tanto num sentido, como no outro. A Igreja não declarou, por nada, que recusasse expressamente qualquer iniciativa em nome do respeito pela lei do celibato imposta, no Ocidente, aos padres. Recusou-se a tomar a decisão, mesmo discreta e parcial, também na outra direção. Ora, é minha convicção que, para favorecer esta mudança de disciplina e manter a existência de um corpo presbiteral sempre celibatário, seria preciso abrir com prudência, em algumas partes favoráveis, e com uma certa lentidão, e não de forma universal e abstrata. Era preciso verificar se as relações entre padres casados e padres celibatários poderiam ocorrer naturalmente de forma favorável. Eu vislumbrava uma primeira etapa de transição. Isso era possível vinte anos atrás, torna-se cada vez menos hoje. No entanto, a necessidade é a mesma.
Para ser positivo, deve-se louvar a atitude da Igreja em relação a alguns pastores luteranos e, mais recentemente, os pastores anglicanos, que expressaram seu desejo de continuar seu ministério dentro da Igreja Católica. Foram ordenados ou reordenados, mas, sendo casados, a Igreja permitiu-lhes continuarem sua vida de casal. Há também alguns casos de padres casados provindos das Igrejas Orientais unidas a Roma, que exercem o seu ministério no Ocidente, numa comunidade de sua cultura. No tempo que resta para eles, nada impede que possam prestar serviços nas paróquias ocidentais. Temos, então, uma base de partida que pode facilitar novas experiências.
Esta questão tem sido objeto de muita discussão, não só na França, mas também na África, onde se coloca em contexto diferente. Conheci um padre alemão fidei donum, na África do Sul, que se tornou bispo naquele país. Ele colocou a questão em termos semelhantes aos nossos: será preciso sair um dia, mas a situação cultural pede para proceder em pequenos grupos e não por indivíduos, a fim de evitar dificuldades na vida social.
A França o interessava particularmente porque, dada a sua origem, conhecia especialmente uma situação ou um Concordato em função. Tentei, sem sucesso, fazê-lo encontrar-se com alguns bispos franceses. É claro que encontros internacionais a este respeito seriam extremamente úteis. Este bispo, sem dúvida, agora aposentado, publicou um livro sobre como enfrentar a questão das comunidades na falta de padres.
Como vê a situação dos leigos na pastoral?
Alguns delineamentos, somente. Agora, com minha idade, estou muito menos em contato com situações concretas. Falo, portanto, com reservas. Esta situação existe ainda, apesar do desgaste já relatado. Ela entrou na vida da Igreja, mas não recebe nenhum sinal de encorajamento. Substituiu-se o termo "leigos enviados para tarefas pastorais" com "leigos enviados em tarefas eclesiais", num sentido restritivo. Observo que se fala muito menos. Eu sei que as ADAP (assembleias dominicais na ausência de padre) não são mais encorajadas; censura-se-lhes o fato de imitarem muito de perto a celebração eucarística, com o risco de grave confusão, e estão diminuindo. Temo que a relutância e a hesitação do passado deixaram passar o tempo favorável - o kairos evangélico - que não voltará mais.
No entanto, o novo rosto da Igreja continua a evoluir, sob o impulso dos acontecimentos, e por causa do esgotamento dramático dos pastores. Duvido que os aspectos negativos desta evolução se imponham mais do que a positividade, sem dúvida frágil, que se vislumbra. Como fazer com que a Igreja hoje seja visível, real e acolhedora? Que rosto dar à comunidade cristã? Como anunciar o Evangelho? A tarefa é sempre esta. Difícil, mas também emocionante.
O senhor concluía seu livro acenando ao dilema da paciência e da urgência. Demasiada cautela acaba sendo a pior das imprudências. Uma ausência prolongada de decisões arrisca ser a pior das decisões. Como vê o momento atual?
Estes vinte anos foram - com muita frequência para questões como estas - vinte anos de nenhuma decisão. Não sou o único a pensar e dizer isto. Muitos bispos franceses, alemães e italianos tomaram posição nestes últimos anos. Penso especialmente nas intervenções do Cardeal Martini, já falecido, que não hesitou em falar de "duzentos anos de atraso" na Igreja Católica. Por ocasião do Sínodo dos bispos europeus, ele havia esboçado uma série de problemas a tratar com urgência e de decisões corajosas a serem tomadas, além dos constantes adiamentos que se produziam de Sínodo em Sínodo. Ele até havia ensejado que, nos primeiros anos do século 21, uma assembleia importante de bispos pudesse se reunir para tomar decisões.
Os dois últimos sínodos sobre a família, convocados pelo Papa Francisco, enfrentaram com coragem, num debate real, os graves problemas relativos à família. Não teríamos, talvez, necessidade agora de um trabalho coletivo sobre a questão dos ministérios e sobe o lugar que pertence aos leigos na Igreja de amanhã? Os dossiês preparatórios já estão em fase bastante avançada. A paciência é sempre necessária e a improvisação não leva a nada. Mas reconheçamos que a urgência nunca foi tão grande e inquietante como agora.
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O teólogo Sesboüé: Não tenhais medo! 20 anos depois - Instituto Humanitas Unisinos - IHU