10 Setembro 2015
Quando os bispos chegarem em Roma em outubro deste ano para debater “a vocação e a missão da família”, a maioria já terá diagnosticado cuidadosamente a situação em suas próprias dioceses.
Essa tarefa pode muito bem ter sido mais difícil na Europa, onde as noções tradicionais sobre a vida familiar vêm sendo amplamente contestadas. Porém, enquanto alguns católicos pensam que a Igreja está perdendo terreno como consequência desta situação, outros se mostram mais otimistas.
A reportagem é de Jonathan Luxmoore, publicada por National Catholic Reporter, 08-09-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
“Todos os países europeus vêm registrando altos índices de rompimento familiar, o que tem afetado os católicos e todos os demais – mas nada disso é novidade”, explicou Maria Hildingsson, secretária-geral da Federação das Associações de Famílias Católicas na Europa, organização com sede em Bruxelas.
“Apesar de que vem ocorrendo uma mudança radical no sistema de valores na Europa desde a década de 1960, há exemplos claros de que os jovens ainda querem relações familiares duradouras. A Igreja tem sustentado essas aspirações – e, nesse sentido, o seu ensino ainda é bastante relevante”.
Quando o Sínodo dos Bispos debateu “a família cristã” em outubro de 1980 sob o comando do recém-eleito Papa João Paulo II, a Europa ainda se dividia em duas: oriental e ocidental.
Desde então, as condições se diversificaram, na medida em que o desenvolvimento econômico, a mobilidade social e a imigração em massa impactaram nas estruturas tradicionais. Com o acesso a métodos anticoncepcionais e ao aborto, hoje tidos como dados, e com as novas práticas de barriga de aluguel se tornando comuns, algumas pesquisas mostraram que a vida em família é um espaço onde ocorrem grandes mudanças.
Todos os 47 países membros do Conselho da Europa, com uma população total na casa dos 820 milhões, concordam quanto ao valor da vida familiar. Mas enquanto a coabitação é, em geral, reconhecida com os plenos direitos de propriedade e de herança, as suas taxas de casamento têm diminuído, e a média de idade em que as pessoas estão se casando encontra-se sete acima da média da década de 1980.
Um declínio demográfico reduziu o agregado familiar médio em toda a Europa para 2,4 pessoas, segundo a agência Eurostat. Embora 70,8% dos agregados familiares com filhos ainda contem com dois pais, aqueles com apenas um único pai compõem 16% do total; na Grã-Bretanha, 1/4 de todos os filhos vivem em famílias monoparentais.
Os níveis de pobreza apresentam grandes contrastes também, assim como apresentam os custos com a criação e assistência médica infantil, aluguéis, hipotecas. O mesmo acontece com as regras que regem a maternidade e a paternidade, que são deixadas à competência dos governos individuais ao abrigo das regras da subsidiariedade da União Europeia.
Visões sobre o casamento
Embora o divórcio seja reconhecido em toda a União Europeia e afete 1/3 dos casamentos, os índices variam drasticamente.
O mesmo acontece com as atitudes para com o casamento homoafetivo, que foi primeiramente autorizado na Holanda em 2001. Atualmente, um total de oito países da União Europeia (Bélgica, Dinamarca, França, Holanda, Portugal, Espanha, Suécia e Inglaterra) permitem casamentos homossexuais, enquanto um número maior reconhece as uniões estáveis homoafetivas.
No entanto, sete países (Bulgária, Croácia, Hungria, Itália, Letônia, Lituânia e Eslováquia) estipulam, em suas Constituições, que o casamento deve ser entre pessoas de sexos opostos.
Alguns bispos católicos vêm considerando algumas tendências na vida familiar como um sintoma do individualismo desenfreado, pondo em primeiro lugar o pessoal e a autorrealização em detrimento do compromisso e da responsabilidade.
Eles acusam os governos nacionais de deixarem de apoiar a vida familiar, apesar das claras obrigações presentes na Carta Social Europeia de 1961, cujo artigo 16 define a família como “célula fundamental da sociedade” e compromete os governos em promovê-la através de todos os “meios apropriados”.
Este prelados também têm acusado os políticos, em particular os do Parlamento Europeu, de impor uma agenda ideológica ao exigir direitos ao aborto e ao casamento homossexual em todo o continente.
Os críticos religiosos dizem que tais políticos não são contra a família tal como compreendida nestes termos, mas que estão apenas procurando uma aceitação social e proteção jurídica para as novas formas de vida familiar.
Porém alguns bispos rejeitam certos conceitos – por exemplo, o de “famílias monoparentais” – como sendo uma contradição em termos. Eles criticaram os acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que parecem minar ou relativizar os laços familiares.
Reivindicaram uma vitória em julho deste ano, quando o Conselho de Direitos Humanos da ONU lembrou os Estados membros de seu dever “em abastecer a família, unidade fundamental da sociedade e meio natural, com proteção e assistência efetiva”.
Apesar de toda reação negativa, há sinais claros de que os valores mais profundos permanecem intactos.
Em um recente Estudo Europeu dos Valores (“European Values Study”), 84% dos jovens disseram considerar a vida familiar como sendo o “mais importante” – bem acima dos amigos, do trabalho, do lazer e das crenças políticas.
“A existência de diferentes formas de vida familiar constitui um problema óbvio para a Igreja, que se conforma com o modelo composto por uma mãe, um pai e filhos”, disse Angrit Gerhardt, da organização Catholic Familienbund, ao National Catholic Reporter.
“Mesmo entre os casais católicos, no entanto, a vida concreta frequentemente tem pouco a ver com a doutrina da Igreja. Neste momento, a Igreja precisa enxergar condições como elas realmente são e oferecer um apoio pastoral às pessoas que vivem fora do seu ideal”.
A forma como a Igreja deveria se pôr a fazer isso se refletiu nas respostas a um questionário do Vaticano, enviado como parte dos documentos preparatórios (“lineamenta”) para o Sínodo dos Bispos.
Doutrina e realidade
Muitos católicos europeus lamentaram a aparente lacuna entre a doutrina da Igreja e as realidades da vida familiar. Eles também ressaltaram a “linguagem incompreensível” empregada em alguns pronunciamentos da Igreja sobre questões em torno da família e as atitudes preconceituosas e impensadas demonstradas pelos bispos locais.
Elizabeth Davies, assessora da Conferência dos Bispos da Inglaterra e País de Gales para o matrimônio e vida em família, lamenta que a maioria das pessoas ouve apenas “coisas superficiais, negativas” sobre os ensinamentos da Igreja.
Ela acha que estas pessoas teriam uma impressão diferente caso lessem os documentos-chave, tais como a “Familiaris Consortio”, exortação apostólica emitida após o Sínodo de 1980 sobre a família em que se elogia a “comunidade íntima de vida e de amor” encarnada nas relações familiares.
“Embora existam alguns problemas enfrentados pelas pessoas neste sentido, o discurso está mudando; além disso, a prática pastoral da Igreja é uma prática acolhedora, especialmente quando os filhos precisam ser amados e respeitados, independentemente de quem os cuida”, disse Davies.
“As alegrias da vida em família são sempre muito mais importantes e sustentadoras do que as dificuldades. O amor e a união são o que há de mais importante. Então, há muitas coisas sobre as quais podemos ser gratos e positivos”.
Independentemente do quanto isso possa ser verdadeiro, divisões amargas parecem prontas a emergirem no próximo Sínodo, com os bispos progressistas buscando mudanças e com os bispos conservadores determinados a resistir a elas.
Em um relatório publicado no último mês de março, a Conferência dos Bispos da Alemanha admitiu que a maioria dos católicos locais havia respondido ao questionário do Vaticano pedindo por uma maior abertura aos fiéis divorciados e novamente casados assim como às uniões homoafetivas e à coabitação fora do casamento.
Resultados semelhantes – com 70% dos católicos sendo favoráveis à bênção das uniões homoafetivas – foram apresentados num estudo de meados de agosto. Este será trazido aos bispos durante o Sínodo de outubro.
Mesmo assim, Gerhardt acha que a Igreja alemã não foi longe o suficiente, mantendo um quadro idealista da família que se aproxima de uma ideologia.
“A vida familiar sempre enfrentou problemas sérios; ninguém pode afirmar que a família, em épocas anteriores, era necessariamente santa e perfeita”, disse ao National Catholic Reporter.
“Hoje, também, a vida familiar não está ficando melhor ou pior; ela simplesmente está passando por mudanças. Se quisermos apoiá-la, devemos considerar as variações e complexidades e confiar menos em regras antigas e em doutrinas clericais”.
O ideal polonês
Do outro lado da fronteira, o presidente da Conferência dos Bispos da Polônia, Dom Stanislaw Gadecki (da Arquidiocese de Poznan), informou em junho passado que a sua própria Igreja iria resistir “à direção teológica apresentada por certos círculos de língua alemã”.
Aqui também, no entanto, tem havido resistência, na medida em que os agregados familiares com pais solteiros ou sem laços matrimoniais tornaram-se cada vez mais comuns.
A Igreja polonesa não revelou as respostas recebidas ao questionário do Vaticano sobre a vida familiar e, em junho, o presidente da Comissão para a Família, Dom Jan Watroba (da Diocese de Rzeszow), insistiu que “os círculos clericais e de fiéis” foram todos “unânimes”, com ninguém esperando “alguma adaptação da doutrina da Igreja ou do seu ensino moral”.
Entretanto, numa pesquisa realizada em março pelo Centro de Pesquisa da Opinião Pública, sediado em Varsóvia, mostra que até 3/4 dos polacos não concordavam com a postura da Igreja quanto à homossexualidade e aos anticoncepcionais, sendo a favor de uma mudança na doutrina católica concernente ao divórcio e à coabitação fora do casamento.
Em julho, os bispos poloneses disseram ao parlamento e ao presidente poloneses que parassem de receber os sacramentos no momento em que aprovavam leis que permitia cirurgias de mudança de sexo e o financiamento estatal para a fertilização in vitro.
Malgorzata Glabisz-Pniewska, apresentadora de rádio católica, acha que a Igreja polonesa também apresentou “à família” as armadilhas de uma ideologia e se mostrou seletiva na forma como ela a defende.
Os bispos poloneses foram criticados, repetidas vezes, por não se manifestar contra a pobreza e a exclusão neste país de maioria católica, que possui os índices de privação infantil mais altos da União Europeia e que é o que menos emprega recursos em comparação a qualquer outro país da UE no apoio às famílias.
Desde que o seu país se juntou à União Europeia há 11 anos, cerca de 3 milhões de polacos em idade de trabalhar foram para o exterior, deixando toda uma geração de filhos sendo criada pelos avós.
A apresentadora pensa que os líderes eclesiásticos devem emitir menos juízos morais severos e mostrar uma melhor compreensão das pressões e dificuldades que inúmeras famílias enfrentam.
“É sempre mais fácil apelar para um modelo ideal; a tarefa da Igreja seria muito mais fácil se as pessoas vivessem, de fato, de acordo com este ideal”, disse Glabisz-Pniewska ao National Catholic Reporter.
“Mas, embora seja importante que a nossa Igreja ainda defenda a família tradicional, é difícil ver o que ela realmente está trazendo para fortalecer a família, além da simples manutenção do status quo”.
Seja como for, a Igreja polonesa tem aliados poderosos.
Em Malta, país tradicionalmente católico, que permitiu o divórcio apenas em 2011, Dom Mario Grech (da Diocese de Gozo) alertou os fiéis quanto a um “tsunami cultural” em carta pastoral emitida em agosto. Nela, o religioso prometeu aos seus colegas bispos que não iria tolerar nenhuma mudança no ensino da Igreja.
Uma iniciativa internacional que pede que o papa resista à “propaganda hedonista” já foi assinada por mais de 470 mil católicos. Este trabalho tem sido liderado pelo cardeal americano Raymond Burke, ex-prefeito no Vaticano.
De qualquer forma, Davies, assessora dos bispos da Inglaterra e País de Gales, se mostra otimista.
Ela acha que a Igreja, apesar de todas as posturas contrastantes entre si, enfrenta os mesmos problemas no mundo todo e que deseja ajudar as famílias a preservar a fé e a viver uma vida boa.
A maioria dos católicos ainda estima os valores evangélicos de fidelidade, honestidade e integridade, diz ela. Os fiéis não necessariamente querem que a Igreja altere seus ensinamentos; apenas querem que eles sejam aplicados com uma maior compaixão e imaginação, permitindo que aqueles que não conseguiram viver segundo os ideais se sintam dignos e valorizados.
Hildingsson, da Federação das Associações de Famílias Católicas da Europa, concorda.
A maioria dos europeus, de todas as gerações, acha que os filhos podem encontrar o amor e o apoio em uma variedade de situações familiares, mas que a melhor forma sempre será quando se puder contar com a complementaridade e a clareza de uma mãe e um pai.
Não obstante, existem diferenças acentuadas também quando se trata das características e aspirações sociais. Estas características e aspirações devem ser levadas em conta quando o Sínodo começar os seus trabalhos em outubro.
“Ao longo da história, a Igreja foi desafiada a estender a mão à sociedade, e isso está especialmente claro na vida familiar de hoje”, disse Hildingsson.
“Não vai ser fácil encontrarmos o equilíbrio certo entre as abordagens pastorais e doutrinárias, especialmente quando tantas pessoas já possuem um sentimento hostil para com o catolicismo. Mas é possível, mesmo assim, encontrar formas de ajudar e apoiar as pessoas que se ajustam aos tempos em que vivemos”.
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Mudanças na vida familiar desafiam a Igreja Católica na Europa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU