30 Setembro 2020
Na história desse último século, a experiência da comunhão e a experiência do casamento mudaram ao mesmo tempo. Por um lado, o catolicismo descobriu não só a “comunhão frequente” (a partir de Pio X), mas também a missa participada que culmina na comunhão (a partir do Concílio Vaticano II). Tudo isso representou uma grande revolução que mudou não só as práticas, as devoções, os hábitos, mas também a própria doutrina eucarística.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado no blog Come Se Non, 29-09-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“O papa parece ter a bicicleta certa para pedalar até a meta, mas o terreno ainda está lamacento demais. Ele paga o preço de uma mentalidade clerical generalizada de príncipes da Igreja, não de servidores do Evangelho.” Com essa declaração icástica, Pierluigi Consorti, como especialista canonista, fotografou a situação atual do “processo reformador”, em uma entrevista ao jornal Quotidiano Nazionale no dia 28, respondendo às perguntas de Giovanni Sean Panettiere.
Obviamente, esse julgamento, que eu considero pertinente, pode ser utilizado para considerar diversos aspectos da situação atual. Eu gostaria de utilizá-lo para continuar o debate ecumênico sobre a “comunhão eucarística”, que, também no dia 28, viu uma nova intervenção, também em resposta a F. Ferrario, por parte de Giuseppe Lorizio, no site Settimana News. Lorizio também não está com o coração em paz e retoma as questões fundamentais em jogo, distinguindo os três níveis clássicos de discussão ecumênica sobre a eucaristia (presença, sacrifício, ministério).
Gostaria de dialogar indiretamente com a sua resposta, para situá-la explicitamente no âmbito daquela “mudança de paradigma” sem a qual a discussão corre o risco de girar no vazio.
A afirmação sobre a relação entre bicicleta e lama, da qual eu parti, também deve ser explicitada teologicamente. De fato, eu não gostaria que se pensasse que o “terreno lamacento” mencionado por P. Consorti possa ser reduzido simplesmente a “ações de perturbação” de caráter político, moral ou burocrático, que vão bloquear a ação de reforma de Francisco. Há uma “lama teológica” que pode ser detectada em formas de “inteligência da tradição” que não garantem uma real compreensão dos fenômenos. A teologia é “pântano” se não faz as duas coisas às quais é chamada: se não oferece esclarecimentos e se não salva os fenômenos.
É muito fácil para os teólogos fazerem abundantemente apenas uma das duas operações, ignorando a outra: oferecem esclarecimentos tão profundos que não salvam mais nenhum fenômeno; ou salvam tanto cada fenômeno que nenhum esclarecimento é mais possível. Para estar à altura do “intellectus fidei”, devemos nos basear em grandes “paradigmas de compreensão”, que, porém, mudam na história. Pensar em explicar os fenômenos de hoje com o paradigma medieval ou tridentino, na verdade, é alimentar a lama e bloquear a bicicleta.
Com Giuseppe Lorizio, concordo sobre a vocação “inquieta” e “não resignada” da teologia. Isso deve ocorrer não apenas no fato de manter as questões em aberto, mas também no fato de preparar as categorias adequadas para compreender os fenômenos. Aqui, exige-se uma grande clareza.
O documento “Juntos à mesa do Senhor” não é apenas fruto de um bom trabalho teológico por parte de um grupo ecumênico católico-evangélico, mas é também a resposta a um fenômeno novo, que surge de uma história imprevisível até 100 anos atrás.
Na história desse último século, de fato, a experiência da comunhão e a experiência do casamento mudaram ao mesmo tempo. Por um lado, o catolicismo descobriu não só a “comunhão frequente” (a partir de Pio X), mas também a missa participada que culmina na comunhão (a partir do Concílio Vaticano II). Tudo isso representou uma grande revolução que mudou não só as práticas, as devoções, os hábitos, mas também a própria doutrina eucarística.
Por outro lado, ao mesmo tempo, mudou também o modo de se casar, tanto em termos da “liberdade de escolha” do sujeito (masculino e feminino) no que diz respeito aos vínculos sociais e eclesiais, quanto em termos de compreensão ministerial do matrimônio. E isso também mudou profundamente não só a disciplina, mas também a própria doutrina matrimonial. Esse é o fenômeno que a teologia deve “salvar”. Se ela pensasse, hoje, em “oferecer esclarecimentos” sobre a comunhão e o casamento, passando por cima, com desenvoltura, desses “fatos eclesiais e culturais”, seria inadimplente e contribuiria para aumentar a lama.
Diante dessas mudanças, que enriquecem e modificam o paradigma clássico de compreensão da eucaristia e do casamento, a solução mais simples é não as levar em consideração. Fazer tudo como se nada tivesse acontecido. E essa, de fato, é uma possibilidade real. Esse caminho fácil também pode ser teorizado dizendo que a Igreja “não tem o poder” de modificar o paradigma medieval e tridentino, isto é, identificando a revelação com uma forma histórica dela.
Mas, quando se diz isso, esquece-se que os paradigmas medieval e tridentino foram criados, em certo ponto da história, como respostas elevadas e de autoridade às questões “daquele tempo”. Esse modo de responder, de se esconder atrás da autoridade do passado, é teologicamente renunciatário. É aquele “ficar com o coração em paz” que se torna sistema. E que bloqueia a ação eclesial de reforma e de atualização, com base em um teorema não demonstrado e em uma versão redutiva e conveniente da tradição.
Depois, há um segundo caminho, mais aberto e que introduz um princípio dinâmico importante. É o caminho do “primado da consciência”. Diante do sistema do direito matrimonial objetivo, ou das relações ecumênicas de excomunhão recíproca, abre-se um espaço de consciência que, rigorosamente “em foro interno”, é reconhecido como capaz de um certo movimento.
Essa foi a profecia da Amoris laetitia. Essa poderia ser a profecia do futuro para a chamada “intercomunhão”. Mas esse caminho, cujos méritos de “desbloqueio” do sistema são objetivos e devem ser reconhecidos, também é um percurso incapaz de incidir sobre a instituição, sobre a estrutura, sobre o reconhecimento da comunhão.
Poderíamos dizer que ele sofre de um “déficit institucional”: torna possíveis e aceitáveis formas de comunhão, desde que não sejam pública e eclesialmente reconhecíveis. E isso não está certo. Em longo prazo, esse caminho não está à altura da sabedoria institucional e da profundidade teológica da nossa tradição católica. Se aceitarmos tal abordagem como horizonte de solução, alimentamos a lama e paramos a bicicleta.
No nível tático, é totalmente compreensível que se desbloqueie o sistema passando por aí. Mas, no plano estratégico, essa solução é intelectualista demais e dualista demais para ter futuro: ela levanta a hipótese de uma alternativa entre exterioridade e interioridade que não explica os fenômenos que devemos compreender. Enquanto hoje precisamos de “procedimentos institucionais” que reconheçam a “comunhão eclesial” quando ela surge de condições “objetivamente distorcidas”.
Há o divórcio, mas há a nova comunhão. Há incompreensão entre as Igrejas, mas nas famílias mistas há comunhão. Trata-se de acolher a comunhão existente e possível, sem exigir a todo o custo a comunhão ideal. Essa não é apenas uma “estratégia diplomática”, mas também é um “novo paradigma teológico e eclesial”.
Se respondemos aos novos desafios permanecendo no plano “dogmático-disciplinar” – e fazemos isso sobre o fim da vida ou sobre a comunhão eucarística, sobre as novas formas de família ou sobre as novas demandas de ministerialidade – compreendemos os fenômenos de modo parcial e não oferecemos verdadeiros esclarecimentos. Tratamos as questões apenas no plano “objetivo”, perdendo tanto o perfil subjetivo quanto o perfil intersubjetivo da experiência.
Pensar que a “comunhão eucarística” é a “ação” que só é possibilitada por “corretas representações doutrinais” ou por “válidas identidades ministeriais” é um modo simples demais, intelectualista demais e rígido demais de considerar os fenômenos. A história dos sujeitos envolvidos e as ações que eles realizam no rito eucarístico não são simplesmente “consequências de representações dogmaticamente corretas”, mas “condições para que amadureça uma compreensão doutrinalmente frutífera”.
Em tudo isso, a teologia pode ajudar a corrigir a leitura dos fenômenos e o seu esclarecimento mais adequado, se quiser contribuir para “limpar a estrada da lama”, para que a bicicleta possa prosseguir mais rapidamente. A teologia, que em tudo isso exerce uma função magisterial, como recorda São Tomás, lembra à Igreja e aos seus ministros que eles são os detentores de uma autoridade real sobre as questões. O Papa Francisco, junto com os órgãos colegiais que o apoiam, sabe e deve saber que pode exercer a autoridade, que tem margens de manobra, que não tem que simplesmente repetir o passado.
A lama mais insidiosa para a sua bicicleta é a persuasão (não teológica e até antiteológica) de que a Igreja vive hoje a melhor das tradições possíveis, que como tal não tem problemas. E que o único caminho de correção pode ser a consciência dos sujeitos.
Em vez disso, devemos descobrir, teológica e pastoralmente, que as “mediações históricas da salvação” exigem reformas estruturais, que podem se tornar condições de exercício da consciência. Existem “sinais dos tempos” que têm grandes lições a dar.
Teólogos e pastores que “nasceram eruditos”, que não têm nada a escutar, que olham para o mundo contemporâneo apenas com “temor e tremor”, e não sobretudo com “alegria e esperança”, contribuem involuntariamente para fazer crescer a lama que bloqueia toda iniciativa, todo fenômeno a ser reconhecido e todo esclarecimento a ser oferecido.
O fato de a bicicleta ser o meio suficiente e ou talvez precisar de uma “pedalada assistida”, ou talvez de uma “equipe de ciclistas”, ou até se transformar pelo menos em uma scooter, é outro assunto.
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A bicicleta e a lama. O debate eclesial entre resignação, dispositivo de bloqueio e exercício da autoridade. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU