09 Agosto 2023
"Com o Concílio Vaticano II, ocorreu uma verdadeira mudança paradigmática na teologia moral", escrevem Kerstin Schlögl-Flierl e Martin M. Lintner, em artigo publicado por Herder Korrespondenz, 08-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Kerstin Schlögl-Flierl, nascida em 1976, foi professora de teologia moral na Faculdade de Escola católico-teológica de Augsburg. Estudou germanística e teologia em Regensburg, Roma e Boston. Desde 2020 é membro do Conselho Ético Alemão, desde 2023 é membro correspondente da Pontifícia Academia para a Vida.
Martin M. Lintner, nascido em 1972, é professor de teologia moral desde 2009 no Studio Filosófico Teológico Acadêmico, de Bressanone. De 2013 a 2015 presidiu a Sociedade Europeia de Teologia Católica e, de 2014 a 2017, presidiu a International Network of Societies for Catholic Theology – INSeCT.
Apesar disso, o Vaticano continua vendo em publicações sobre temas de ética sexual e ética da relação, motivos para negar a confirmação ou para procedimentos de contestação para o ensino. A moral sexual paira como uma espada de Dâmocles sobre a cabeça de teólogos e teólogas.
Quem se manifestava de forma crítica ou divergente em relação às linhas estabelecidas pelas normas do magistério, tinha que esperar – dependendo do grau de carreira acadêmica alcançado - ou uma retirada da permissão para o ensino ou um procedimento para contestar o quanto ensinado.
Com o pontificado do Papa Francisco parecia que algo havia mudado, especialmente para a mudança presente em sua exortação apostólica Amoris laetitia, em 2016 após os dois sínodos dos bispos. Hoje, porém, somos surpreendidos pela recente recusa do nihil obstat romano a um de nós (Martin M. Lintner) para assumir o cargo de reitor do Studio Filosófico Teológico Acadêmico de Bressanone, por suas publicações sobre temas de ética moral e ética da relação.
Por que escrevemos esta intervenção a dois? Uma de nós é uma mulher casada há quase 20 anos, e o outro é um padre ordenado há 20 anos, da Ordem dos Servitas. Nos conhecemos há mais de 23 anos, porque estudamos juntos na Universidade Gregoriana em Roma. Continuamos amigos e colaboramos em nível científico. Escrevemos este artigo juntos porque pertencemos à geração de meio dos teólogos e das teólogas morais. Já temos às nossas costas um trecho de percurso profissional e também vivemos em uma época em que a moral sexual perdeu seu caráter de tabu.
Teólogos morais que nos precederam, especialmente homens, conduziram debates controversos e após a encíclica Humanae vitae (1968), viveram injunções e medidas disciplinares por parte do magistério e participaram da luta para dar novos fundamentos à moral sexual. Muitos deles foram sancionados - e então um longo período de silêncio se seguiu sobre a ética desse âmbito. Ao mesmo tempo floresceram, entre outros, os temas da bioética, de forma que cresceram de parte de cidadãs e cidadãos, os pedidos de orientação moral e de esclarecimento vindos de organizações sociais e instituições políticas.
A geração intermediária de teólogas e teólogos morais é aquela que pode e quer voltar a falar e publicar sobre questões de moral sexual e ética da relação. Nisso é filha do Concílio Vaticano II, conhece a enorme magnitude da mudança de paradigma do Concílio principalmente através de estudos históricos. No entanto, os debates atuais deixam claro que ainda estamos dentro da história da recepção do Concílio. Queremos então, como geração sucessiva àquela do Concílio e que pode se beneficiar de suas contribuições de época, oferecer uma contribuição.
Qual o estímulo para superar o silêncio que durou décadas? O motivo de saída é a responsabilidade que nós teólogas e teólogos morais sentimos, para fornecer uma contribuição para a superação da crise dos abusos na Igreja Católica. E isso já é um motivo forte o suficiente. O programa da teologia moral consiste, atualmente, em oferecer uma contribuição para tornar possível a realização positiva nas relações. O ponto central é ter a possibilidade de falar e se expressar de forma compreensível a todas as pessoas de boa vontade.
Isso deve acontecer tendo em mente o status das ciências humanas e dos conhecimentos exegéticos nas tradições bíblicas no âmbito em questão. O objetivo é oferecer uma orientação baseada em princípios éticos e teológicos e, portanto, servir à formação da consciência baseada numa reflexão séria.
Por Roma, no entanto, ainda somos vistos com desconfiança. No entanto, pedimos veementemente para poder viver também os próximos vinte anos de nossa vida profissional em crítica lealdade em relação ao magistério eclesiástico. Porque a nossa faculdade tem algo a oferecer sobre esses temas, e certamente não mais com o índice moral apontado contra, mas no sentido do sensus fidelium, ou seja, da busca comum de sentido de todos os crentes. Somos guiados pela pergunta de como nós, seres humanos, podemos tornar possível teologicamente a vivência de relações positivas vivas, que contribuição para esse objetivo pode fornecer a teologia ao lado de disciplinas como a psicologia ou as ciências humanas.
Portanto, diante dos desenvolvimentos mais recentes – como já cinco anos atrás com Ansgar Wucherpfennig – é posta a pergunta: é novamente a moral sexual que "prega" as teólogas e os teólogos ao silêncio?
Na teologia moral, há anos se fala em uma mudança de paradigma: chega de moral sexual, caminhamos para a ética da relação. Mas talvez isso permanece para muitos demasiado vago. Talvez há o temor de que, com tal mudança, se perca algo do núcleo específico da moral sexual católica. No pano de fundo, isso também destaca a questão do poder: quem tem a autoridade de repensar o ensinamento da Igreja e de mudar alguma coisa? Que assimetrias são passadas adiante? E, muito concretamente: quem poderia nos privar da possibilidade de falar?
Não queremos mais aceitar a imposição do silêncio. Porque precisamente isso afetou o fato de que nós, teólogos, só muito lentamente pudemos retomar a falar nesse âmbito, e somente agora, também por causa dos escândalos dos abusos, a nossa palavra é solicitada. E para esse propósito é importante levar a sério o fato de que muitas pessoas de boa vontade de acordo com o melhor ciência e consciência não podem seguir a moral sexual católica e até mesmo a percebem como intimidatória. Não queremos nos resignar a isso, e não como crítica ao ensinamento da Igreja, mas justamente pelo nosso sentimento cum ecclesiae, pelo nosso profundo sentimento de pertença à Igreja.
Como sempre na teologia e na Igreja, é preciso pensar a longo prazo - não de anos, mas de décadas e séculos. Em nossas reflexões sobre a ética das relações nos baseamos no fato de que no Concílio Vaticano II realizou-se uma mudança do ensinamento matrimonial e sexual.
O casamento não foi mais visto principalmente como contrato, mas descrito com a imagem bíblica da aliança. Não foi mais estabelecido o direito sobre o corpo do outro, mas o casamento foi visto como o lugar onde se realiza uma livre recíproca doação de si. Não está mais em primeiro lugar a forma jurídica, mas a qualidade pessoal da relação matrimonial. Como fundamento de casamento não há mais o respeito do mandamento da indissolubilidade e da proibição do divórcio, mas a realização do amor e da fidelidade mútua, que inclui corpo e alma. Disso se discutiu. O casamento é também o lugar, graças ao Concílio Vaticano II, em que são doados também os filhos, mas isso não representa mais seu objetivo principal. O modelo é um casamento como aliança de amor e de vida, que é vivida no amor pessoal e na relação com um Deus pessoal e que ama.
Também essa mudança do Concílio Vaticano II foi preparada. Mesmo então teólogos foram condenados pelas autoridades romanas (por exemplo, Herbert Doms). O que queremos hoje é defender o ensinamento sexual da Igreja e pensar, imaginar, seus conteúdos de forma crítico-construtiva, para que possam ser credíveis e se tornar elementos de promoção da vida.
Mas o que é tão importante hoje para a moral sexual, ou seja, para a ética da relação a ponto de voltar a ser o centro da atenção – para não falar de uma linha de conflito entre o magistério e a teologia moral? Como em um âmbito problemático da bioética, e como demonstrou o Papa Francisco em sua encíclica Laudato si’, a uma análise objetiva da situação deve seguir um discernimento ético-teológico.
Quais são os nossos objetos de pesquisa? Sexualidade, casamento e relação. A sexualidade é entendida como multidimensional: ao lado da função de geração, é preciso pensar também na função de prazer, identidade e relação. A sexualidade deve ser vista não apenas como relação sexual, mas como expressão multiforme da personalidade e do amor.
A citada exortação apostólica Amoris laetitia é importante para o casamento. Em decorrência dela se poderia e se deveria falar de um altíssimo valor do casamento, mas não do seu valor exclusivo, como afirmou Eberhard Schockenhoff, o colega que infelizmente morreu cedo demais. O matrimônio como sacramento continua sendo um lugar do desejo e – usando as palavras de Klaus Demmer – uma decisão de vida, que, no entanto, da mesma forma que uma vocação para uma ordem ou para o sacerdócio, pode resultar num fracasso.
O potencial de desejo, no compromisso e no caminho comum, é algo muito forte para realizar. É preciso tornar visível e plausível o fato de que o casamento é uma forma de vida de amor, como afirmado por Schockenhoff, e precisamente como tal pode e deve ser entenda como uma forma de viver a relação cheia de promessas.
Na questão da relação, foca-se principalmente uma relação entre parceiros, mas que sempre inclui ao mesmo tempo diversas relações: a relação consigo mesmos, com os outros conforme a necessidade, como também com o meio ambiente e ainda com Deus. Na avaliação mais precisa, é importante considerem seriamente as várias aquisições das ciências humanas. Algo a ser considerado plenamente conforme ao Concílio Vaticano II como autonomia dos âmbitos.
O que está acontecendo? A ética desse âmbito encontra-se atualmente numa fase de transformação, passando de uma moral baseada na proibição e no comando para uma ética da relação orientada tanto para a virtude quanto para os princípios. Nisso, a capacidade de autodeterminação sexual desempenha um papel central no contexto da ética da responsabilidade.
Para tanto, é necessário também levar em consideração os conhecimentos das ciências humanas, é necessário o diálogo com os estudos de gênero, especialmente pela atenção à singularidade de cada pessoa, incluindo sua identidade sexual. Quando se está em uma fase de transformação, sempre se procura, no presente, ligar o que há de valor na tradição com o novo do futuro, na perspectiva da realização positiva.
Isso também requer que cientistas, homens e mulheres, se dediquem à pesquisa. Primeiro, os monstruosos fatos de violência sexual deixaram claro que a capacidade de autodeterminação sexual não deve mais ser rejeitada pelo magistério. Dever-se-ia, por exemplo, analisar o direito à autodeterminação sexual em sentido relacional o no ensino abordar com particular atenção no quadro da violência sexual o papel de abusador em determinadas passagens bíblicas.
Nisso, deve ser forçada a ligação com o princípio dos direitos humanos. Aqui é preciso orientar claramente o âmbito da ética normativa com princípios, critérios e também com claras normas de proibição, por exemplo, declarando maus em si comportamentos de violência sexual.
Para esse escopo é necessário um acertamento da imagem cristã (ou das imagens cristãs) da pessoa. Ainda não foi esboçada nenhuma ética nesse sentido, mas apenas acertada uma possível base comum que não deve ser entendida de maneira uniforme. A pessoa humana é entendida como um ser de relação que está em relação consigo mesmo, com outros, com o meio ambiente e com Deus e que deve justificar si mesmo, seus atos e suas omissões em todos esses níveis. Nessa regulação de princípio antropológica a liberdade bíblica dos filhos de Deus é levada a sério. A natureza humana é entendida como aberta à graça, como também na clássica teologia matrimonial a instituição do casamento é entendida como aberta ao seu potencial simbólico.
Qual modelo de argumentação deveria ser privilegiado na ética da relação? Ao lado do modelo argumentativo do direito natural, que por muito tempo caracterizou a moral sexual católica, há aquele hermenêutico das ciências humanas. A partir do Concílio Vaticano II em diante podemos falar também de um modelo pessoal, que tem a nossa preferência. Com o Papa Francisco deve ser envolvida também a dignidade da pessoa, por exemplo, na contracepção. Que os conhecimentos das ciências humanas se enquadram nessas questões é um pressuposto; de fato, como também em questões de ética relativas ao clima, a análise objetiva das situações é imprescindível.
Fundamental é a questão relativa à responsabilidade: quem assume a responsabilidade, pelo que, perante a quem, com que critério, para o presente e para o futuro? Essa pergunta, levada à ética de relação na situação atual, significa: eu assumo a responsabilidade pela pessoa que amo, diante de Deus, com os critérios da atenção a dignidade e liberdade da pessoa amada e da positiva realização da relação para o presente e para o futuro.
Além disso, trata-se de descobrir a dimensão escondida do poder na passagem da moral sexual à ética da relação. A dimensão do poder se estende a questões relativas àqueles que estão mutuamente em relação, mas também à relação entre teologia e magistério. Se as questões de moral sexual voltam a ser um meio de poder para atingir com medidas disciplinares, isso está em contraste com o princípio do Concílio Vaticano II, de considerar o casamento como aliança, como aliança entre pessoas com direitos iguais, como evento simétrico. Já o objeto de conteúdo teria se tornado performativo ad absurdum, se a ética nesse âmbito continuasse pairando como uma espada de Dâmocles sobre a cabeça das teólogas e dos teólogos morais.
Contra esse pano de fundo, a ética da relação deve ser interpretada como a arte de viver e compreender.
Viver o amor doado por Jesus na vida de casal (entre outras também na forma do casamento) e querer compreender o que (eventualmente) os filhos doados necessitam, que tipo de relação se quer viver e qual papel a fé deve desempenhar – é disso que se trata.
A partir disso se evidencia o foco no amor, como amor de amizade, como amor erótico e como amor altruísta. Com Schockenhoff queremos considerar a arte de amar como essência. No centro não está tanto a sexualidade quanto a relação e a qualidade da relação. Para usar outras palavras: em primeiro plano não está a forma jurídica da relação, mas a sua qualidade pessoal, da qual o casamento representa a forma adequada. Nisso a sexualidade é um meio de expressão entre outros para a relação. Também se ajudar reciprocamente nas questões do trabalho de cuidado, para muitos que querem colocar sua própria pessoa em condição de compatibilidade entre família e profissão, pode ser um critério da qualidade de relação.
Também seria necessário considerar mais ainda o conteúdo teológico da vida de casal em particular do casamento. O casamento é o lugar onde prioritariamente se realiza o amor de Cristo pela Igreja e em que analogamente é testemunhado, e é lugar de recíproca santificação dos cônjuges. O casamento tem uma missão própria na Igreja, que deveria ser expressa no futuro com mais clareza. Essa é uma tarefa da teologia moral hoje.
Por isso, a teologia moral deve poder falar e poder continuar a falar. A sinodalidade que o Papa Francisco promove e que começa com a escuta e o desejo de compreender seria um ponto de ancoragem adequado para essas questões. Com esse objetivo queremos continuar a nos empenhar.
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Passar das proibições para a perspectiva de plena realização. Artigo de Martin Lintner e Kerstin Schlögl-Flierl - Instituto Humanitas Unisinos - IHU