20 Abril 2022
"Mas, se Putin não cair - e uma desestabilização total do país não é desejável -, dificilmente haverá mudanças na cúpula eclesiástica em Moscou. Os benefícios institucionais, econômicos e legislativos conquistados pela Igreja nestas duas décadas são demasiados", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 19-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O depois também chegará. A explosão sem sentido da guerra e seus infinitos sofrimentos e desumanidades ficarão para trás. Com o olhar do "depois" dois episódios marginais adquirirão o sabor evangélico de profecia.
Algumas semanas após a agressão russa (24 de fevereiro), o metropolita Onufrio, uma figura importante da Igreja Ortodoxa pró-Rússia na Ucrânia, disse: "Nossa santa Igreja Ortodoxa Ucraniana sempre ensinou, auspicou e pregou o amor entre os povos. Acima de tudo, desejávamos paz e harmonia entre russos e ucranianos. Gostaríamos que esses povos vivessem em boa vizinhança, no respeito mútuo, na paciência e no amor. Fomos e ainda somos insultados por isso, tratados com todos os tipos de insultos e expressões obscenas. Mas não levamos isso em consideração. Ainda hoje desejamos que o povo russo e o povo ucraniano vivam juntos, em paz”.
Por ocasião da Via Sacra na Sexta-feira Santa (15 de abril) celebrada no Coliseu de Roma, a décima terceira estação viu duas mulheres, uma russa e uma ucraniana, carregando a mesma cruz enquanto o Papa Francisco cobria o rosto com as mãos para uma oração mais intensa. Uma iniciativa profundamente contestada pelas autoridades e pelos fiéis, inclusive católicos, do país invadido porque poderia equiparar as responsabilidades dos dois poderes e dos dois povos e poderia soar como uma exortação moralista.
Nesta página, o padre Severino Dianich escreveu: "Não julgo os cristãos ucranianos esmagados pelas bombas dos russos, de quem entendo perfeitamente a perturbação diante do preceito evangélico do amor, a substituir ao preceito antigo" amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo" (Mt 5,43). Mas pretender que em Roma alguns cristãos russos e alguns cristãos ucranianos, ambos inocentes, não devam rezar juntos é mais uma loucura, que se soma à loucura da guerra”.
Quais serão as possíveis mudanças entre as Igrejas ucranianas? São três as igrejas principais; a ortodoxa pró-russa que se reporta ao Metropolita Onufrio, a Igreja autocéfala, de obediência à Constantinopla, que se reporta ao Metropolita Epifânio, e a Igreja Católica (no duplo rito, latino e bizantino). Há outras duas, bem menores: uma ortodoxa liderada pelo "autodefinido" Patriarca Filarete e as não numerosas comunidades protestantes.
Um documento recente do Centro de Estudos Ecumênicos, Missiológicos e Ecológicos "Metropolita Panteleimon Papageorgiou" (CEMES) (cf. WeekNews) dá como certo o afastamento da Igreja pró-Rússia de Moscou e prevê uma possível dupla jurisdição dos dois Igrejas ortodoxas sob a égide do patriarcado de Constantinopla, aguardando uma possível unificação.
Uma estrutura sinodal, participada pelos dois sínodos atuais, poderia levar à união em um contexto em que a Igreja Católica e em particular a de rito bizantino representa uma força positiva e não contraposta. O desfecho eclesial da guerra poderia constituir uma oportunidade de convivência exemplar e de colaboração das Igrejas cristãs.
Outro "sonho" cultivado em particular pela Igreja Católica de rito bizantino vai mais longe: em direção a um único patriarcado ucraniano que acolheria todas as Igrejas cristãs, permitindo à Igreja Católica o vínculo fundamental com Roma. O patriarca, eleito pelo sínodo, poderia ser ortodoxo ou católico. Uma hipótese futurista que faria do cristianismo ucraniano um posto avançado da unidade das Igrejas.
A distância dificilmente superável entre a Igreja pró-russa e o patriarcado de Moscou é anunciada pela condenação à guerra e, em primeiro lugar, à ocupação da Crimeia por Onufrio, pela ampla recusa de muitas comunidades e dioceses em comemorar Kirill de Moscou na ação litúrgica, do documento de 400 padres pedindo a condenação explícita de Kirill pelo Concílio dos Patriarcas do Oriente (Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Constantinopla) e sua recondução a simples monge, como aconteceu em 1666 ao patriarca de Moscou, Nikon.
"Afirmamos claramente que é impossível continuarmos a permanecer em qualquer forma de subordinação canônica ao patriarcado de Moscou". Eles pedem uma condenação explícita da agressão russa, um pedido a Putin para parar a guerra, um juízo severo sobre a justificativa de Kirill para a guerra e sua demissão como patriarca.
Em uma longa entrevista no site www.lb.ua, o Metropolita Epifânio solicitou a abertura de um diálogo incondicional entre as Igrejas Ortodoxas. Nenhuma vontade de impor a adesão à Igreja autocéfala no rescaldo da guerra. Nada voltará a ser como era antes.
“Pedimos unidade não só em palavras. Estamos prontos para nos sentar à mesa de negociações, para iniciar um diálogo sobre a unidade de todos na única Igreja ortodoxa autocéfala ucraniana já reconhecida”. Um processo que já está ativo desde a base, sem pedir arrependimentos ou autocríticas. O concílio de unificação já aconteceu em 2018. Trata-se de implementá-lo.
A guerra constitui uma passagem fundamental da identidade ucraniana. As Igrejas não podem ignorar isso. Não faltam ambiguidades e contradições. Como nos dois projetos de lei em discussão no parlamento que essencialmente fecham todo espaço de ação à Igreja pró-Rússia. Defendidos pelos partidos e pelo próprio Epifânio, são contestados pelo metropolita Onufrio e pelo núncio do Vaticano em Kiev.
Do lado russo, o confronto ainda está abaixo da superfície. Além do protesto de 300 padres (de 40.000) contra a guerra e as críticas de ucranianos pró-Rússia, nenhuma voz se levantou para censurar o apoio aberto de Kirill à agressão militar contra a Ucrânia.
Depois de tê-la interpretada como o embate entre o bem e o mal, ele a definiu como uma batalha metafísica entre valores (contra o Ocidente) e convidou a obedecer às legítimas autoridades russas. O previsto concílio episcopal, a maior autoridade formal (em paralelo ao concílio local em que também participam monges e leigos) que é convocado a cada quatro anos, já foi adiado de outubro passado para maio e, agora, de maio para o final de o ano.
Ali dever-se-ia abrir uma discussão real sobre a gestão questionável de Kirill (e Hilarion) que primeiro renunciam a participar do concílio pan-ortodoxo de Creta (2016), depois não conseguem impedir a divisão intraortodoxa ucraniana e buscam, de acordo com o Kremlin, o controle da Bielorrússia, Moldávia, alguns territórios da Geórgia e dos países bálticos, até a abertura de duas eparquias na África.
Se com a guerra o patriarcado perde Kiev, as 38.000 paróquias se reduzem a 12.000, se extingue uma das fontes mais generosas de vocações monásticas e sacerdotais e se afastam até as Igrejas mais próximas. Aconteceu com as Igrejas georgiana, polonesa e estoniana.
Eles ainda permanecem neutras: Antioquia, Jerusalém, Sérvia, Bulgária, Tcheco-Eslovaca. Jean de Doubna, bispo de uma das três entidades ortodoxas na França, que recentemente voltou à obediência moscovita, afirma: “Hoje, se registra em russo o desenvolvimento de um antiocidentalismo desenfreado. O mundo ocidental é considerado depravado. Mas o consumismo na Rússia é ainda pior que o nosso. Basta ir a Moscou para constatá-lo. Não se julga apenas com preto e branco. Existe a ideologia de que a Rússia é perseguida pela Europa e pelo Ocidente. Mas aqui, ninguém é contra a Rússia. Todos podem ser contra a guerra, mas não contra a Rússia”. “É um erro da Rússia e do patriarcado. Grave erro de julgamento. Um erro histórico monumental”.
Mas, se Putin não cair - e uma desestabilização total do país não é desejável -, dificilmente haverá mudanças na cúpula eclesiástica em Moscou. Os benefícios institucionais, econômicos e legislativos conquistados pela Igreja nestas duas décadas são demasiados.
Uma condição cheia de tensão e ambiguidade que aconselha, como o Papa Francisco está fazendo em preparação de um segundo encontro com Kirill, talvez em Jerusalém, a não fechar as possibilidades de diálogo.
Assim como as pressões para tirar a Igreja Ortodoxa Russa dos órgãos dirigentes do Conselho Ecumênico de Igrejas parecem pouco prudentes. A Igreja Russa tem forças internas para corrigir e mudar seu curso.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Moscou-Kiev: exercícios de futuro. Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU