Moscou-Kiev: exercícios de futuro. Artigo de Lorenzo Prezzi

Soldado russo. Foto: Mariano Mantel | Flickr

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

20 Abril 2022

 

"Mas, se Putin não cair - e uma desestabilização total do país não é desejável -, dificilmente haverá mudanças na cúpula eclesiástica em Moscou. Os benefícios institucionais, econômicos e legislativos conquistados pela Igreja nestas duas décadas são demasiados", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 19-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

O depois também chegará. A explosão sem sentido da guerra e seus infinitos sofrimentos e desumanidades ficarão para trás. Com o olhar do "depois" dois episódios marginais adquirirão o sabor evangélico de profecia.

 

Algumas semanas após a agressão russa (24 de fevereiro), o metropolita Onufrio, uma figura importante da Igreja Ortodoxa pró-Rússia na Ucrânia, disse: "Nossa santa Igreja Ortodoxa Ucraniana sempre ensinou, auspicou e pregou o amor entre os povos. Acima de tudo, desejávamos paz e harmonia entre russos e ucranianos. Gostaríamos que esses povos vivessem em boa vizinhança, no respeito mútuo, na paciência e no amor. Fomos e ainda somos insultados por isso, tratados com todos os tipos de insultos e expressões obscenas. Mas não levamos isso em consideração. Ainda hoje desejamos que o povo russo e o povo ucraniano vivam juntos, em paz”.

 

Por ocasião da Via Sacra na Sexta-feira Santa (15 de abril) celebrada no Coliseu de Roma, a décima terceira estação viu duas mulheres, uma russa e uma ucraniana, carregando a mesma cruz enquanto o Papa Francisco cobria o rosto com as mãos para uma oração mais intensa. Uma iniciativa profundamente contestada pelas autoridades e pelos fiéis, inclusive católicos, do país invadido porque poderia equiparar as responsabilidades dos dois poderes e dos dois povos e poderia soar como uma exortação moralista.

 

Nesta página, o padre Severino Dianich escreveu: "Não julgo os cristãos ucranianos esmagados pelas bombas dos russos, de quem entendo perfeitamente a perturbação diante do preceito evangélico do amor, a substituir ao preceito antigo" amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo" (Mt 5,43). Mas pretender que em Roma alguns cristãos russos e alguns cristãos ucranianos, ambos inocentes, não devam rezar juntos é mais uma loucura, que se soma à loucura da guerra”.

 

O redesenho das Igrejas na Ucrânia

 

Quais serão as possíveis mudanças entre as Igrejas ucranianas? São três as igrejas principais; a ortodoxa pró-russa que se reporta ao Metropolita Onufrio, a Igreja autocéfala, de obediência à Constantinopla, que se reporta ao Metropolita Epifânio, e a Igreja Católica (no duplo rito, latino e bizantino). Há outras duas, bem menores: uma ortodoxa liderada pelo "autodefinido" Patriarca Filarete e as não numerosas comunidades protestantes.

 

Um documento recente do Centro de Estudos Ecumênicos, Missiológicos e Ecológicos "Metropolita Panteleimon Papageorgiou" (CEMES) (cf. WeekNews) dá como certo o afastamento da Igreja pró-Rússia de Moscou e prevê uma possível dupla jurisdição dos dois Igrejas ortodoxas sob a égide do patriarcado de Constantinopla, aguardando uma possível unificação.

 

Uma estrutura sinodal, participada pelos dois sínodos atuais, poderia levar à união em um contexto em que a Igreja Católica e em particular a de rito bizantino representa uma força positiva e não contraposta. O desfecho eclesial da guerra poderia constituir uma oportunidade de convivência exemplar e de colaboração das Igrejas cristãs.

 

Outro "sonho" cultivado em particular pela Igreja Católica de rito bizantino vai mais longe: em direção a um único patriarcado ucraniano que acolheria todas as Igrejas cristãs, permitindo à Igreja Católica o vínculo fundamental com Roma. O patriarca, eleito pelo sínodo, poderia ser ortodoxo ou católico. Uma hipótese futurista que faria do cristianismo ucraniano um posto avançado da unidade das Igrejas.

 

A distância dificilmente superável entre a Igreja pró-russa e o patriarcado de Moscou é anunciada pela condenação à guerra e, em primeiro lugar, à ocupação da Crimeia por Onufrio, pela ampla recusa de muitas comunidades e dioceses em comemorar Kirill de Moscou na ação litúrgica, do documento de 400 padres pedindo a condenação explícita de Kirill pelo Concílio dos Patriarcas do Oriente (Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Constantinopla) e sua recondução a simples monge, como aconteceu em 1666 ao patriarca de Moscou, Nikon.

 

"Afirmamos claramente que é impossível continuarmos a permanecer em qualquer forma de subordinação canônica ao patriarcado de Moscou". Eles pedem uma condenação explícita da agressão russa, um pedido a Putin para parar a guerra, um juízo severo sobre a justificativa de Kirill para a guerra e sua demissão como patriarca.

 

Inventando hoje o futuro

 

Em uma longa entrevista no site www.lb.ua, o Metropolita Epifânio solicitou a abertura de um diálogo incondicional entre as Igrejas Ortodoxas. Nenhuma vontade de impor a adesão à Igreja autocéfala no rescaldo da guerra. Nada voltará a ser como era antes.

 

“Pedimos unidade não só em palavras. Estamos prontos para nos sentar à mesa de negociações, para iniciar um diálogo sobre a unidade de todos na única Igreja ortodoxa autocéfala ucraniana já reconhecida”. Um processo que já está ativo desde a base, sem pedir arrependimentos ou autocríticas. O concílio de unificação já aconteceu em 2018. Trata-se de implementá-lo.

 

A guerra constitui uma passagem fundamental da identidade ucraniana. As Igrejas não podem ignorar isso. Não faltam ambiguidades e contradições. Como nos dois projetos de lei em discussão no parlamento que essencialmente fecham todo espaço de ação à Igreja pró-Rússia. Defendidos pelos partidos e pelo próprio Epifânio, são contestados pelo metropolita Onufrio e pelo núncio do Vaticano em Kiev.

 

Quem pode demitir Kirill? 

 

Do lado russo, o confronto ainda está abaixo da superfície. Além do protesto de 300 padres (de 40.000) contra a guerra e as críticas de ucranianos pró-Rússia, nenhuma voz se levantou para censurar o apoio aberto de Kirill à agressão militar contra a Ucrânia.

 

Depois de tê-la interpretada como o embate entre o bem e o mal, ele a definiu como uma batalha metafísica entre valores (contra o Ocidente) e convidou a obedecer às legítimas autoridades russas. O previsto concílio episcopal, a maior autoridade formal (em paralelo ao concílio local em que também participam monges e leigos) que é convocado a cada quatro anos, já foi adiado de outubro passado para maio e, agora, de maio para o final de o ano.

 

Ali dever-se-ia abrir uma discussão real sobre a gestão questionável de Kirill (e Hilarion) que primeiro renunciam a participar do concílio pan-ortodoxo de Creta (2016), depois não conseguem impedir a divisão intraortodoxa ucraniana e buscam, de acordo com o Kremlin, o controle da Bielorrússia, Moldávia, alguns territórios da Geórgia e dos países bálticos, até a abertura de duas eparquias na África.

 

Se com a guerra o patriarcado perde Kiev, as 38.000 paróquias se reduzem a 12.000, se extingue uma das fontes mais generosas de vocações monásticas e sacerdotais e se afastam até as Igrejas mais próximas. Aconteceu com as Igrejas georgiana, polonesa e estoniana.

 

Eles ainda permanecem neutras: Antioquia, Jerusalém, Sérvia, Bulgária, Tcheco-Eslovaca. Jean de Doubna, bispo de uma das três entidades ortodoxas na França, que recentemente voltou à obediência moscovita, afirma: “Hoje, se registra em russo o desenvolvimento de um antiocidentalismo desenfreado. O mundo ocidental é considerado depravado. Mas o consumismo na Rússia é ainda pior que o nosso. Basta ir a Moscou para constatá-lo. Não se julga apenas com preto e branco. Existe a ideologia de que a Rússia é perseguida pela Europa e pelo Ocidente. Mas aqui, ninguém é contra a Rússia. Todos podem ser contra a guerra, mas não contra a Rússia”. “É um erro da Rússia e do patriarcado. Grave erro de julgamento. Um erro histórico monumental”.

 

Manter o diálogo aberto

 

Mas, se Putin não cair - e uma desestabilização total do país não é desejável -, dificilmente haverá mudanças na cúpula eclesiástica em Moscou. Os benefícios institucionais, econômicos e legislativos conquistados pela Igreja nestas duas décadas são demasiados.

 

Uma condição cheia de tensão e ambiguidade que aconselha, como o Papa Francisco está fazendo em preparação de um segundo encontro com Kirill, talvez em Jerusalém, a não fechar as possibilidades de diálogo.

 

Assim como as pressões para tirar a Igreja Ortodoxa Russa dos órgãos dirigentes do Conselho Ecumênico de Igrejas parecem pouco prudentes. A Igreja Russa tem forças internas para corrigir e mudar seu curso.

 

Leia mais