É por isso que a minha Comissão da ONU determinou que Israel está a cometer genocídio em Gaza. Artigo de Navi Pillay

Foto: Molz Salhí/Anadolu Ajansi

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A jurista, presidente da Comissão Internacional Independente de Inquérito das Nações Unidas sobre os Territórios Palestinos Ocupados, declarou: "As ações realizadas na Faixa de Gaza são premeditadas, visando à destruição de um povo, com intenção genocida. E todo Estado tem a obrigação de impedi-las. Não fazer nada é cumplicidade."

O artigo é de Navi Pillay, presidente das Comissão Internacional Independente de Inquérito das Nações Unidas sobre os Territórios Palestinos Ocupado, incluindo Jerusalém Oriental, e Israel, publicado por La Repubblica, 17-09-2025.

Eis o artigo. 

Em 1995, o presidente sul-africano Nelson Mandela me pediu para comparecer como juíza no Tribunal Penal Internacional para Ruanda. O júri que presidi condenou três ruandeses por genocídio. Portanto, conheço a palavra "genocídio", e não é uma palavra que uso levianamente. É a tentativa deliberada de destruir, no todo ou em parte, um povo. Representa a violação mais grave da nossa humanidade comum e a violação mais grave do direito internacional.

Comissão sobre os Territórios Palestinos Ocupados

Ontem, a Comissão da ONU, que presido, publicou sua análise jurídica da conduta de Israel na Faixa de Gaza. A conclusão a que chegamos é clara: Israel cometeu genocídio contra os palestinos em Gaza. Essa conclusão se baseia em investigações e amplas evidências que abrangem o período entre 7 de outubro de 2023, quando a guerra começou, e 31 de julho de 2025; é corroborada por múltiplas fontes; e é definida pelo rigoroso arcabouço jurídico da Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio de 1948, da qual Israel é signatário.

Minha organização, a Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre os Territórios Palestinos Ocupados, foi criada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU em 2021 e é supervisionada por especialistas especialmente nomeados, com o apoio do Secretariado da ONU. A Comissão reporta suas conclusões ao Conselho de Direitos Humanos e à Assembleia Geral da ONU.

Porque é um genocídio

A escala da destruição é devastadora. De acordo com as autoridades de saúde de Gaza, mais de 64 mil palestinos foram mortos, incluindo 18 mil crianças e quase 10 mil mulheres. A expectativa de vida estimada em Gaza caiu de 75 anos para apenas 40 em apenas doze meses: um dos declínios mais acentuados e significativos já registrados. Hospitais, escolas, igrejas, mesquitas e bairros inteiros foram arrasados. Nossa análise mostrou que a fome foi usada como arma de guerra e que o sistema de saúde foi deliberadamente destruído. A assistência à saúde materna foi gravemente comprometida. Crianças morreram de fome, foram assassinadas e soterradas sob escombros. Segundo a UNICEF, uma criança morre a cada hora em Gaza. Estes não são incidentes de guerra. São ações premeditadas que visam a destruição de um povo.

Ao determinar o genocídio, não é apenas a ação que é crucial, mas também a intenção. Aqui, novamente, a evidência é clara. Líderes israelenses proeminentes, incluindo o presidente, desumanizaram os palestinos. Yoav Gallant, o ministro da defesa na época dos ataques de 7 de outubro, disse: "Estamos lidando com bestas humanas", enquanto o presidente Isaac Herzog afirmou que toda a nação palestina era responsável. Suas palavras foram acompanhadas por ações: bombardeios indiscriminados que tornaram Gaza inabitável, um bloqueio de ajuda humanitária, violência sexual e de gênero e um cerco que acreditamos ter sido projetado para matar a população de fome. Tomados em conjunto, esses atos pintam um padrão que demonstra a intenção genocida.

A Comissão também constatou que palestinos foram mortos enquanto tentavam obter alimentos em pontos de distribuição operados pela Fundação Humanitária de Gaza, a entidade apoiada por Israel e pelos EUA que substituiu em grande parte a rede de distribuição de ajuda existente. Centenas de palestinos, incluindo crianças, foram mortos enquanto tentavam obter ajuda.

As obrigações dos outros Estados

Alguns argumentam que o termo "genocídio" é forte demais para ser usado enquanto a guerra de Israel continua. A lei, no entanto, é clara: a obrigação de prevenir o genocídio surge no momento em que há um risco sério de sua ocorrência. Nesta guerra, esse limite foi ultrapassado há muito tempo. Em janeiro de 2024, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) alertou todos os Estados sobre o grave risco de genocídio em Gaza. Desde então, as evidências só aumentaram e os assassinatos se multiplicaram.

O que isso significa para a comunidade internacional? Significa que suas obrigações não são opcionais. Todo Estado tem a obrigação de prevenir o genocídio, onde quer que ele ocorra. Essa obrigação exige ações como a interrupção do fornecimento de armas e ajuda militar utilizadas em atos genocidas, a garantia de ajuda humanitária desimpedida, a interrupção do deslocamento em massa e da destruição, e o uso de todos os meios diplomáticos e legais disponíveis para pôr fim à matança. Não fazer nada não é neutro; é cúmplice.

"O que diremos aos nossos filhos e netos?"

Não escrevo estas palavras como inimiga de Israel. Reconheço a dor dos israelenses que perderam entes queridos nos brutais ataques do Hamas em 7 de outubro, que resultaram na morte de 1.200 pessoas, e o sofrimento das famílias dos cerca de 50 reféns ainda mantidos, dos quais se acredita que 20 estejam vivos. Nossa Comissão documentou os crimes perpetrados pelo Hamas. De qualquer forma, nenhum crime, por mais grave que seja, justifica o genocídio. Responder à atrocidade com atrocidade significa abdicar dos valores garantidos pelo direito internacional desde a sua criação.

A história julgará como o mundo respondeu. Em Ruanda, a comunidade internacional falhou em impedir o genocídio, falhou em intervir para interromper as matanças quando elas começaram. Hoje, a comunidade internacional não age novamente, desta vez em Gaza. Os fatos nos são trazidos à atenção diariamente. Os relatos são inequívocos. A lei é clara. O que está em jogo, a sobrevivência de um povo, não poderia ser maior.

A obrigação de prevenir o genocídio não recai apenas sobre os Estados, mas também sobre o sistema internacional como um todo. O Conselho de Segurança das Nações Unidas não deve ser o túmulo da consciência. Organizações regionais, parlamentos nacionais, sociedade civil e todos os cidadãos comuns têm o seu papel a desempenhar na pressão sobre os governos para que ajam. A Convenção sobre o Genocídio surgiu das cinzas do Holocausto com uma promessa solene: "Nunca mais". Essa promessa não tem sentido se se aplicar apenas a alguns e não a outros.

Peço a todos os governos, líderes e cidadãos que se perguntem: "Como responderemos aos nossos filhos e netos quando nos perguntarem o que fizemos enquanto Gaza era arrasada e queimada até o chão?" Cada ato de genocídio é um teste da humanidade que nos une.

Prevenir o genocídio não é uma questão de discricionariedade estatal. É uma obrigação legal e moral que não admite demora. A lei exige ação. Nossa humanidade compartilhada exige isso.

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