15 Março 2025
A fé é mulher, mas os homens não se dão conta disso. A contribuição feminina para a vida das religiões sempre foi decisiva: particularmente no cristianismo, as mulheres participam mais numerosas do que os homens dos ritos, educam os filhos na fé e realizam inúmeros serviços voluntários... No entanto, quando se trata de exercer a autoridade, elas são relegadas a papéis subordinados. Tudo isso se tornou insustentável hoje em dia: cada vez mais mulheres estão se mostrando intolerantes com as desigualdades de gênero e não estão mais dispostas a aceitá-las em silêncio. Muitas, justamente por isso, se afastam.
Outras sentem desconforto. Outras ainda se organizam para mudar as coisas. E não se trata apenas de uma questão interna da Igreja Católica. Um pouco em todas as religiões ocorrem movimentos organizados entre as mulheres mais conscientes que reivindicam maior protagonismo. Desse tema trata um ensaio publicado há alguns meses pela Il Mulino: intitulado Donne e religioni in Italia. Itinerari di ricerca. (Mulheres e religiões na Itália. Itinerários de pesquisa, em tradução livre). Foi editado pelas sociólogas Alberta Giorgi e Stefania Palmisano, coordenando os capítulos de vários estudiosos (a maioria mulheres) que focaram na relação entre mulheres e religiões, com um olhar aprofundado sobre a Igreja Católica, mas sem deixar de fora as várias denominações cristãs e os outros grupos religiosos, do islã ao judaísmo, do budismo ao hinduísmo.
Donne e religioni in Italia. Itinerari di ricerca, de Alberta Giorgi e Stefania Palmisano (Foto: Divulgação)
Por isso, entrevistamos Stefania Palmisano, estudiosa atenta das questões de gênero nas religiões e especialista em novas espiritualidades, que no livro, além da edição geral, foi responsável, com Lorenzo Tedesco, pelo capítulo sobre as mulheres que abandonam o catolicismo. “A tese do livro”, explica ela, “é que não se pode mais estudar a religiosidade, como foi feito até agora, sem considerar o gênero, porque cada religião tem sua própria divisão sexual das tarefas, há normas sobre quem pode fazer o quê e, portanto, a experiência de uma mulher não é aquela do homem na mesma fé”.
A entrevista é de Paolo Rappellino, publicada por Jesus, março de 2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Professora Palmisano, qual é a ideia básica do livro?
Queremos superar o estereótipo da incompatibilidade entre religião e feminismo, entre religião e emancipação. Em todas as religiões, de fato, estão se espalhando redes de mulheres ativistas, feministas, que querem romper hierarquias, sistemas de poder masculino. E também está surgindo o fenômeno da agency, a possibilidade de as mulheres – que perpassa as diferentes religiões - agirem com certa autonomia a ponto de chegar a negociar uma mudança. No entanto, também destacamos que as discriminações de gênero estão se tornando cada vez mais presentes por causa do afastamento das mulheres das religiões.
As religiões são inerentemente portadoras de uma atitude sexista?
No radicalismo das origens, não. Os grandes fundadores das religiões tinham uma concepção igualitária do homem e da mulher. No caso do cristianismo, as teólogas feministas falam da primazia da relação de Jesus com as mulheres. Mas também Buda decide abrir um monastério feminino, por insistência das mulheres, para permitir que elas também tivessem uma experiência de iluminação. E Maomé age para eliminar o infanticídio feminino.... Portanto, os ensinamentos espirituais originários eram, como dizemos hoje, ‘sem gênero’. Mas, com o tempo, as coisas mudaram e surgiu o monopólio masculino na gestão do conhecimento religioso, que levou as mulheres a um papel subalterno. Não apenas na divisão sexual das tarefas, mas também com prescrições para a boa crente quase sempre mais rígidas do que as prescrições para o bom crente. A mulher deve cobrir a cabeça, vestir-se de acordo com determinadas regras de modéstia, se estiver menstruada, não pode acessar certos espaços ou tocar os livros sagrados, e deve se 'purificar' depois do parto...
Quais são as descobertas de seu estudo?
Vamos falar de cristianismo. Sabíamos que as mulheres sempre foram mais religiosas do que os homens. Além disso, nos países europeus e, portanto, também na Itália (nos Estados Unidos é diferente), as mulheres sempre foram as principais guardiãs e agentes da transmissão intergeracional da fé para filhos e filhas. Trata-se de um modelo matrilinear no qual as avós são figuras até mais significativas do que os pais. Mas nosso estudo mostra que a situação mudou. As mulheres estão deixando a Igreja e levando junto seus filhos. É um abalo nos alicerces; nos ambientes eclesiásticos, isso tem sido discutido (por exemplo, no livro de Armando Matteo, La fuga delle quarantenni, de 2012), mas não há suficiente atenção.
Por que vocês dizem que as mulheres estão saindo?
Levamos em consideração os dados de uma pesquisa realizada na Europa, a European Values Study, sobre os valores morais e religiosos das pessoas, e consideramos o que aparece em relação à Itália no período de 2009 a 2018, comparando-o com o período de 1981-2008. Não consideramos apenas a frequência à missa, como fizeram outros estudos, mas também a oração individual, a pertença e a adesão ao Magistério oficial. E o que despontou é uma clara reversão da tendência da religiosidade feminina em comparação com os trinta anos anteriores. De 1981 a 2008, de fato, a frequência à missa caiu, mas os outros indicadores “se mantiveram”. Na década de 2009-2018, por outro lado, o declínio da frequência à missa continua e a oração, a pertença e a adesão aos ensinamentos oficiais também diminuem. Isso nunca havia acontecido antes. E as mulheres estão caindo mais rápido do que os homens, tanto que logo não haverá diferença. Vou dar alguns exemplos: em 2009, as mulheres italianas iam à missa em média 31 vezes por ano; em 2018, essa média caiu para 24. Em 2009, rezavam em média 209 vezes por ano; em 2018, esse número caiu para 157. Em 2009, as mulheres rezavam 95 vezes mais do que os homens; em 2018, esse número caiu para 71 vezes mais.
Por quê?
Há muitas razões. Simplificando bastante, a literatura apresenta dois fatores principais: o engajamento das mulheres no mercado de trabalho reduz o tempo de que dispõem. Mas há também o fato de que a realização na profissão não as leva mais a buscar satisfação na religião. O fator sociocultural, por outro lado, está ligado à revolução social, cultural e sexual que, desde a década de 1960, levou as mulheres a protestar contra modelos obsoletos. No caso do catolicismo, com a encíclica Humanae vitae de Paulo VI, também se ampliou a distância entre as indicações pastorais e a consciência e os comportamentos individuais. E, de acordo com o sentimento das mulheres italianas, medidas como aquelas tomadas pelo Papa Francisco de abrir os ministérios instituídos às mulheres não mudaram muito as coisas, dada a sua subsequente negação ao diaconato feminino.
Então, pesa negativamente sentir-se discriminadas como mulheres?
Impulsionadas por uma sociedade que faz da igualdade de gênero e da meritocracia um mantra, as jovens sentem dificuldade de fazer parte da Igreja quando a percebem como uma organização que perpetua as diferenças e discriminações de gênero. E até mesmo as crentes adultas mais convictas, que podem até estar satisfeitas com o status quo, ainda assim admitem que há um nó crítico. Sem mencionar as feministas ativistas, que reivindicam uma participação de maior autoridade e mais assertiva, o que não significa necessariamente a ordenação feminina, mas significa um espaço maior, pelo menos em termos de governança. E, além disso, deve-se observar que há cada vez mais mulheres, até mesmo muito ativas como animadoras e catequistas, que deixam a Igreja Católica precisamente por causa de sua abordagem às questões de gênero e sexualidade e se aproximam das novas espiritualidades, como o neopaganismo, a Wikka, as sacerdotisas da espiritualidade da deusa, as Tendas Vermelhas... consideradas mais inclusivas para as mulheres e as pessoas Lgbtq+, e mais sensíveis à relação com a natureza.
Isso também acontece em outras religiões presentes na Itália?
“O elemento de continuidade que vemos um pouco em todas as religiões é a maior conscientização do papel das mulheres. Há também uma leitura feminista dos textos sagrados. Isso acontece até mesmo no Islã, onde, ao contrário do que se poderia pensar, há muitas ativistas feministas, na esteira de experiências estrangeiras, da Turquia ao Marrocos, onde há experiências de imãs mulheres. O mesmo acontece no judaísmo, especialmente naquele progressista”.
Existem religiões na Itália que, em vez de perderem as fiéis, as estão ganhando?
O budismo na Itália registra muitas conversões femininas e Lgbtq+ porque se beneficia do fato de serem portadores de valores considerados extremamente positivos no mundo de hoje: da ecologia ao bem-estar. E, mais do que uma religião, é considerado uma “ciência da mente”. Além disso, na percepção pública, o budismo é bem aceito, considerado não violento, esquecendo os problemas que existem no Oriente e os monges budistas tradicionalistas que são muito agressivos em várias partes do Sudeste Asiático.
E como o islã é vivenciado pelas mulheres na Itália?
Minha colega Ivana Acocella estudou as mulheres de segunda geração, nascidas e criadas na Itália de famílias migrantes, que frequentam o Centro Cultural Islâmico em Florença. As jovens religiosas reivindicam sua pertença de fé com muito orgulho e também defendem o uso do véu como escolha consciente e distinta de uma identidade, não de submissão.
Outra comunidade interessante é a das mulheres ortodoxas vindas da Europa Oriental e do mundo copta do Egito e do Chifre da África...
O aspecto paradoxal é que são as mulheres menos reivindicativas em relação à igualdade de gênero, apesar de pertencerem a uma denominação cristã particularmente conservadora. Provavelmente porque são predominantemente imigrantes de primeira geração que veem a religião como um fator de continuidade em sua experiência de vida e de sua identidade e priorizam o poder libertador da religião. Entretanto, recentemente, na África, por razões de necessidade, houve algumas ordenações de mulheres diáconas e isso causou muita discussão na comunidade ortodoxa.
Entre aquelas estudadas em seu livro, há apenas uma comunidade de fé que tem mulheres pastoras na Itália: a o caso da Igreja Valdense e Metodista. O que se conclui?
Que as pastoras, expressão do protestantismo italiano, são vistas de forma controversa pelas comunidades de imigrantes que frequentam a Igreja Valdense e Metodista na Itália e que tendem a reconhecer a autoridade apenas aos pastores homens. São fiéis que vêm de partes do mundo onde o papel da mulher é de subordinação. Além disso, há o temor de que a abertura para as pastoras se estenda às pessoas não binárias e se teme que isso tenha repercussões negativas em seus filhos.
Por fim, em seu estudo também é abordada a condição das mulheres hindus na Itália...
Minha colega Marianna Ferrara estudou algumas comunidades hindus em Roma. Desponta a experiência dessas jovens mulheres se equilibrando entre dois mundos. Muitas agora são italianas, aliás, diria até mesmo romanas, e é curioso o sucesso que registra uma espécie de festival de beleza que elege as Misses desse e daquele templo. Contamos como essas jovens transferem a sua religiosidade, a sua experiência e a sua cultura ao desfilar nessas passarelas, reconciliando assim a imagem da boa crente com uma atividade muito ocidental.