09 Dezembro 2024
"Sonho e luto por um mundo em que ninguém passe fome e todos sejam estrangeiros, expatriados, apátridas, exilados, sem nações, estados e identidades, sem atlantismo e sem rotas da seda, sem os vírus de tradições e direitos étnicos, religiosos, culturais exclusivos, parmenideos, judaicos ou corânicos, pan-helênicos ou panrussos... e cristãos em todas as suas vertentes."
O artigo é de Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em artigo enviado ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em dezembro de 2024.
Segundo ele, "estamos presenciando, neste tempo, em Israel, à uma reedição do fanatismo zelote e, na Rússia, à reproposição da aliança constantiniana entre Igreja e Império. Será que a escolha da comunidade de Jerusalém pode nos dizer algo imprescindível sobre estas situações?"
Nestes dias, refletindo sobre os sofrimentos e os temores que os tempos atuais nos reservam, me senti quase obrigado a voltar ao tempo da primeira guerra judaico-romana para visitar a memória da decisão da comunidade judaico-cristã de Jerusalém de abandonar Jerusalém e buscar refúgio na cidade de Pela, Decápolis, atual Transjordânia. Um êxodo tão crucial que chega a me seduzir como se tivesse um valor profético e normativo para o nosso discernimento diante das guerras devastadoras que assolam atualmente Ucrânia e Palestina.
Estamos no ano de 66 e o imperador Nero envia as legiões para acabar com a insurreição judaica. A comunidade judeu-cristã, dissociada da revolta armada, escolhe fugir para um lugar de cultura grega, alternativa não meramente geográfica à Judéia, Idumeia, Peréia e Galileia, que estavam em estado de insurreição e longe também da Samaria e do litoral onde a situação era de perigosa incerteza.
Tal decisão, a meu ver, foi além da óbvia obediência à mensagem não violenta de Jesus, porque se deu num duríssimo confronto geopolítico em que prosperavam diferentes e antagônicas leituras da conjuntura.
Posturas diferenciadas e em conflito, que parecem se repetir também hoje nos mundos hebraico e islâmico, no ocidente católico e protestante e no oriente ortodoxo, certamente de forma análoga e com uma complexidade de atores e questões, que complicam ulteriormente a leitura e as decisões.
Uma primeira observação: os seguidores judeus de Jesus não se reconhecem na tradição nacionalista da Aliança, ligada ao controle da terra sagrada prometida por IHWH ao povo de Israel e não se identificam com a radicalidade do partido fariseu e com a guerra santa dos zelotes contra o invasor romano. Mas tampouco se aliam aos colaboracionistas saduceus.
Parece-me que, já nestes primeiros anos do “Caminho”, os seguidores de Jesus já optam para a teologia do Monte das Oliveiras e do Gólgota em substituição do Monte Sião, sede do Templo e dos poderes em Judá.
E parecem que antecipam concretamente o sonho de Paulo, que escreve aos Gálatas: “Não existe mais nem judeu nem grego... vós sois um em Cristo Jesus.” (Gal 3:28). Renegam, desta forma, todo nacionalismo, todo saudosismo teocrático e toda afirmação identitária, que divide, fragmenta e é estopim de inimizade e guerras.
Lição esta, que as cristandades ainda não aprenderam.
Lição, que é a primeira provocação política que os exilados de Pela nos oferecem.
Em suma, abandonar o Monte Sião não seria mera estratégia de sobrevivência, mas uma revolução cristológica. E uma revolução política.
Ao confrontarmos a escolha dos discípulos judeus de Jesus com a opção de Flávio Josefo, descobrimos aspectos ainda mais interessantes.
O historiador, de família sacerdotal, ligado aos saduceus, cidadão romano, se apoia na opção política do profeta Jeremias, que, em 587a.C., diante dos três cercos de Jerusalém, que levaram à destruição da cidade e do templo de Salomão, pregava, com realismo político, a submissão ao império babilônico. Confirmado pelas palavras do profeta, Flávio Josefo, contra o fanatismo religioso que sacraliza a terra, afirma que Israel foi independente e vencedor só nos tempos épicos do Êxodo, mas que, sucessivamente, foi obrigado a se submeter politicamente a todos os impérios que se revezaram na sua terra: Egípcios, Assírios, Babilônicos, Persas, Gregos e agora os Romanos.
Os nazarenos, que se referiam a si mesmos como "O Caminho”, apesar da sua observância das tradições hebraicas - circuncisão, leis dietéticas e a observância do sábado - eram objeto de desconfiança e perseguição por parte das autoridades religiosas ligadas ao templo e aos fariseus. Depois de décadas de violências que culminaram no apedrejamento de Estevão, em 34, na decapitação de Tiago, filho de Zebedeu e irmão de João, em 44, e no martírio di Tiago o Justo, irmão de Jesus, em 63, os seguidores judeus de Jesus eram cada vez mais marginalizados pelo poder do templo, mas, com certeza, tampouco podiam confiar nos romanos, que, com o imperador Nero, em 64, começaram as perseguições, que, de forma intermitente, continuarão até 313. E é em 67, em Roma, que Paulo de Tarso é decapitado e Pedro crucificado de cabeça para baixo.
Os profetas explicavam os desastres, que atormentavam periodicamente o povo judeu, como a punição de Deus a Israel pela infidelidade à aliança e por esquecer os mandamentos da Torah. Infelizmente, os cristãos, chegando ao poder, irão se apropriar desta teologia, se transformando de perseguidos em perseguidores, para forjar as bases do antissemitismo, que caracterizará toda história ocidental, de pogrom em pogrom, de perseguição em perseguição até a tragédia da Shoah. E, infelizmente. até os nossos dias.
Já no século II d.C., os Evangelhos, quando si ignorou a distinção entre a responsabilidade das autoridades judaicas e a inocência do povo judeu, foram postos ao serviço do processo de demonização dos judeus “deicidas”, agentes de Satanás, cuja eliminação constituía-se quase como um dever dos cristãos.
Se olharmos a história da primeira guerra judaico-romana contada por Eusébio de Cesaréia e Epifânio, ambos do IV século, podemos ver este antissemitismo, sem censuras, em plena ação.
Na modernidade, o antissemitismo continua um fenômeno único, e de difícil, quase impossível, cancelamento, apesar da “conversão” católica, que, porém, deu-se somente em 1965, quando o Concílio Ecumênico Vaticano II, com o documento "Nostra Aetate", repudiou oficialmente a ideia da culpa coletiva dos judeus pela morte de Jesus.
Surge, assim, de Pela, uma segunda sugestão para o nosso discernimento das guerras e sofrimentos desta estação da história: chega de antissemitismo antijudaico, mas chega também de antissemitismo anti-islâmico.
Estamos presenciando, neste tempo, em Israel, à uma reedição do fanatismo zelote e, na Rússia, à reproposição da aliança constantiniana entre Igreja e Império. Será que a escolha da comunidade de Jerusalém pode nos dizer algo imprescindível sobre estas situações?
Também hoje, estas guerras não deveriam ser nossas, mas, de fato, setores significativos do mundo protestante e católico, apoiam Israel, porque é Europa, Ocidente, o "nós" contra a barbárie islâmica. Temos no Ocidente a identificação acomodada e cinicamente realista com o império norte-americano, acompanhada por uma versão anti-islâmica do antissemitismo. À escola de Flávio Josefo, os países da OTAN decidiram que a soberania nacional é pretensão inútil e que é necessário permanecer amparados pelo poder econômico, político e militar dos EUA. E é Washington que fornece armamentos para Israel e para Ucrânia. Existem também cristãos que, por apoiar as vítimas do genocídio de Gaza, não têm uma leitura crítica de Hamas e Hezbollah, fanáticos fundamentalistas islâmicos da Jihad, decididos a derrotar não somente Israel, mas todo o Ocidente pervertido e corrupto.
Outros apoiam a resistência ucraniana à invasão russa, quando não poucos, pertencentes ao mesmo espectro político, por estar em radical oposição a OTAN, defendem as “razões” da cruzada de Putin e da Terceira Roma contra a Europa.
E não faltam os pacifistas cristãos, que, em algumas circunstâncias, se revelam irenistas, que não decidem posturas e enfrentamentos claros à lógica desumana dos impérios. Assim, aparecem também algumas incertezas políticas do próprio papa, que em algumas ocasiões se recusa de interpretar o papel de capelão do Ocidente, mas, em outras, revela quanto o constantinismo ainda afete a diplomacia do Estado do Vaticano.
Terceira sugestão. Em suma, os expatriados de Pela, junto com Paulo de Tarso, poderiam nos ensinar, que os discípulos e as discípulas de Jesus são chamados à oposição radical e explicita a todos os impérios.
Junto com o Templo, o Império é o anti-reino. Paulo tem esta clareza, quando escolhe de definir Jesus como κύριος, kurios, Senhor, em clara e polêmica oposição ao único kurios reconhecido como divindade política, o imperador romano. E é por esta infidelidade política e adesão na fé ao único Senhor que os primeiros passos do movimento cristão foram tempos de profetas e mártires.
Pensar e fazer política como Jesus e com Jesus comporta uma conversão a este “além” de Jesus, ao seu Reinado que vai “além” da pequena cabotagem dos arranjos conjunturais, “além” das corporações ideológicas, que tendem sempre à captura da religião para reduzi-la a instrumento de defesa do status quo ou ao âmbito de estratégias eleitorais.
Um “além” que deveria ser também um “contra”, sobretudo quando o cristianismo é manipulado para servir de suporte aos novos fascismos. Ao ponto de virar cristofascismo. Um “além” radicalmente crítico também da pauta defasada e omissa da esquerda, aparentemente condenada a repetir-se, esquecendo o chamado a atender com urgência às feridas mortais infligidas à Vida e aos pobres pela “religião” capitalista e seus fiéis.
Como poderíamos esquecer a oposição de Jesus ao Império romano narrada no Evangelho de Marcos, quando a diabólica legião (a X Legião Fretense?) que mora num cemitério e atormenta o endemoninhado de Gerasa (Mc 5,1-20), é expulsa e entra numa manada de impuríssimos porcos que se lançam num abismo.
Assim sonho e luto por um mundo em que ninguém passe fome e todos sejam estrangeiros, expatriados, apátridas, exilados, sem nações, estados e identidades, sem atlantismo e sem rotas da seda, sem os vírus de tradições e direitos étnicos, religiosos, culturais exclusivos, parmenideos, judaicos ou corânicos, pan-helênicos ou panrussos... e cristãos em todas as suas vertentes.
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As Igrejas e os Impérios. Artigo de Flavio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU