15 Novembro 2023
Afável e calmo ao falar, com o sotaque mais britânico que se possa imaginar, John Gray (Reino Unido, 1948) atende o telefone com uma máxima: “Temos todo o tempo do mundo para conversar”. Agora que já não vive em Oxford, que os seus dias são mais tranquilos, que Bath banha a sua alma, este filósofo – o mais lido e influente de nossos tempos – afirma gostar de conversas que o fazem pensar.
Apesar de já estar aposentado, os jornalistas (locais e internacionais) não param de procurá-lo para que mexa um pouco com o vespeiro que é este mundo. É que Gray é um dos pensadores contemporâneos mais relevantes da sua Grã-Bretanha natal e, de fato, de todo o Ocidente. Sim, aquele que por décadas foi professor de Ciência Política, na Universidade de Oxford, e de Pensamento Europeu, na London School of Economics, caracteriza-se por, discretamente, ser sempre contra, sempre com um “mas” na boca.
Em Bath, onde mora hoje, produziu seu último livro, The New Leviathans. Lá também revisa a sua reedição em espanhol do livro Perros de Paja (Sexto Piso, 2023) [Cachorros de palha, na versão em português], publicado originalmente em 2002.
Começamos a entrevista tendo em mente a mudança climática, algo sobre o qual reflete há mais de 20 anos. No entanto, decidimos deixar essa conversa para uma próxima oportunidade. A situação atual é urgente. O caos que é o mundo em que vivemos se impõe. Conversamos, então, sobre outros tipos de colapsos, que também colocam em xeque a nossa civilização.
A entrevista é de Raquel Nogueira, publicada por El Español, 11-11-2023. A tradução é do Cepat.
Comecemos com a atualidade feroz: a ofensiva de Israel em Gaza, que já dura um mês, marcará um antes e um depois na situação nos Territórios Palestinos Ocupados? E em Israel?
Sim, e por diversos motivos. Um deles é a dimensão do ataque do Hamas: algo assim nunca tinha acontecido antes, matou muitas pessoas, algumas delas de uma forma muito espantosa e cruel. Outro motivo é o risco de escalada, que é muito maior do que em ocasiões anteriores.
O risco óbvio está principalmente no Hezbollah, no Líbano, que é uma força pró-Irã. Portanto, se isso acontecer, se o conflito aumentar, seu âmbito será muito vasto e poderá envolver os Estados Unidos.
Você costuma prever o futuro com uma exatidão surpreendente. Prevê uma escalada do conflito?
Muitas potências regionais, incluindo Israel, querem resistir à escalada e esperam que isso não aconteça. E estou certo de que as potências árabes, como a Arábia Saudita, por exemplo, e os Estados do Golfo, também desejarão evitar que se intensifique. Apesar de tudo isso, pode acontecer.
Se tiver que acontecer uma escalada, provavelmente não teremos que esperar muito. Será uma questão de dias ou semanas. E se acontecer, teremos um conflito maior do que nas guerras anteriores.
O conflito no Oriente Médio, a guerra na Ucrânia, a situação do Afeganistão. Existem muitos conflitos em curso e frentes abertas em todo o mundo…
Correto.
Por que os seres humanos são tão propensos às guerras? Porque parece que a história se repete continuamente.
Sem dúvida. Penso que o fato da história se repetir continuamente é um fenômeno geral, não se aplica apenas à guerra. É particularmente cruel, triste e trágico que isso aconteça no caso das guerras, mas acontece o tempo todo. As pessoas foram enganadas em épocas anteriores pela crise das tulipas ou pela tulipamania. Agora, caem nas garras da loucura das criptomoedas, como gosto de dizer. Tudo é cíclico.
O que se aprende em uma geração não dura muito. Em duas ou três gerações, esqueceu-se completamente. Sendo assim, nunca se aprende as lições da história por muito tempo. Esta é uma verdade perfeitamente geral que se aplica a todos os âmbitos dos seres humanos. Porém, sua pergunta era sobre as guerras.
Exato. As guerras são uma fragilidade humana?
No livro que acabo de publicar [The New Leviathans], defendo que Hobbes errou em várias coisas, mas tinha razão em uma questão fundamental: a condição humana por padrão não é a harmonia, mas o conflito, seja pelos recursos, pelo poder, a preeminência e a dominação.
Hobbes sustenta, curiosamente, que a causa fundamental dos conflitos humanos não é o amor ao poder, mas o medo. E as pessoas buscam o poder sobre outros seres humanos porque têm medo de serem atacadas.
E mesmo que consigam superá-lo dentro de uma comunidade ou grupo em particular, por meio de algum tipo de governo pacífico, esse mesmo grupo enfrenta a ameaça de ser esmagado ou atacado por outros grupos, caso possua algo que possam desejar, ou por conflitos de natureza religiosa, sectária ou étnica. Sendo assim, suponho que seja por isso que as pessoas travam guerras.
É isso que está acontecendo agora?
Suponho que o que está acontecendo em todo o mundo, independentemente de que se pense que era algo bom ou mau, é que o predomínio estadunidense, no período posterior à Guerra Fria, sim, limitou o alcance das guerras. Uma das primeiras coisas que aconteceu quando o comunismo caiu foi a eclosão da guerra na Chechênia, nos Balcãs, no Cáucaso... Todos estes conflitos congelados reapareceram.
É o que está acontecendo novamente?
Agora, estamos em outra etapa de retirada ou colapso estadunidense. E conforme o poder estadunidense retrocede e declina, as diferentes potências regionais lutam pela preeminência. Os Estados Unidos pensavam que tinham conseguido sair pacificamente do Oriente Médio, que não precisavam mais do ruído da região, desse modo, podiam partir em paz. E a aproximação entre a Arábia Saudita e Israel, que parecia ter sido alcançada antes dos ataques do Hamas, permitiu que saíssem sem deixar para trás uma grande quantidade de conflitos.
Não é mais assim.
O principal efeito ou impacto do ataque do Hamas foi descarrilar esse percurso e fazer com que os estadunidenses entrem novamente, algo que definitivamente não querem. E há também as consequências, por certo, que previ há apenas uma semana, de que a atenção e os recursos estadunidenses passariam da Ucrânia para o Oriente Médio.
Qual será o efeito do retorno da atenção estadunidense para a região?
A curto prazo, os Estados Unidos poderão se ver arrastados e entrar em um conflito realmente importante que seria, na realidade, paradoxal. Teriam que se envolver, mesmo que não queiram. Contudo, caso a escalada seja evitada, ou caso seja possível conseguir a resolução do conflito de alguma forma, o que parece pouco provável, a tendência dos Estados Unidos a longo prazo continuará sendo a de se retirar.
Por que esse empenho em sair da região?
Possuem muito menos interesse estratégico na região do que antes. Além disso, os Estados Unidos têm problemas muito profundos, econômicos, sociais, culturais e políticos próprios. Tornaram-se cada vez mais introvertidos.
Se olharmos para a América Latina, por exemplo, praticamente não há nenhum país, agora, que apoie as posições estadunidenses em matéria de política exterior. Todos se distanciam dele. Os Estados Unidos nem sequer são uma potência regional como costumavam ser, embora ainda possuam enormes recursos militares, é claro.
Então, o “colapso” dos Estados Unidos trará mais guerra?
O fim da hegemonia estadunidense, que estamos vendo agora, está necessariamente associado a mais conflitos, que foram atenuados, congelados ou suprimidos durante a sua hegemonia, do mesmo modo que os conflitos que foram suprimidos pelo poder soviético surgiram, quando a URSS ruiu.
Já que estamos falando do colapso da hegemonia estadunidense, daqui a um ano, terão eleições presidenciais.
Correto.
Gostemos ou não, o que acontece nos Estados Unidos continua impactando o resto do mundo.
Certo.
Independentemente de quem serão os candidatos que concorrerão ao salão oval...
Parece-me que, do lado republicano, será Trump.
Certo, mas seja quem for o vencedor – Trump, Biden ou quem quer que seja –, não poderá considerar a estabilidade política como algo garantido ou sim?
A situação nos Estados Unidos é provavelmente pior do que a maioria das pessoas pensam. Ainda existe a possibilidade de que Biden ou algum outro candidato democrata vença, embora esta guerra possa jogar contra Biden, porque alguns democratas, especialmente os mais jovens e de esquerda, opõem-se firmemente à política de Biden sobre Israel e são pró-palestinos. Este é um problema para a estabilidade.
Contudo, além disso, se a guerra prejudicar de alguma forma a economia, se o preço do petróleo aumentar, apesar dos Estados Unidos já não serem tão dependentes do Oriente Médio como antes, poderá ser um duro golpe. E isso, claro, voltaria a prejudicar Biden.
Está em jogo a legitimidade?
Independentemente de quem vencer nos Estados Unidos, irá se deparar com o que antes se chamava de crise de legitimidade, porque não será aceito como presidente legítimo por aproximadamente um quarto ou um terço da população.
Biden disse que uma vitória de Trump seria uma ameaça à democracia. Então, não irá aceitá-lo. E se Biden ou algum sucessor vencer, Trump dirá que foi novamente manipulado.
Portanto, não se trata apenas do que estes políticos dizem, mas do fato de cada um deles falarem em nome de um quarto ou um terço da população. Então, é uma questão séria. Observe o que aconteceu quando o Capitólio foi invadido, em janeiro.
As imagens do ataque ao Capitólio podem se repetir?
Os Estados Unidos não são um país politicamente estável. Possuem um sistema político extremamente disfuncional. Acabam de conseguir um presidente do Congresso e talvez não dure muito.
E possuem enormes problemas de dívida, um sistema bancário frágil. E grandes setores da sociedade estão caindo em uma espécie de abismo pós-industrial, não possuem qualquer função. Há muitas mortes por fentanil, também chamadas de mortes por desespero. E a classe média está imersa na insegurança. Os Estados Unidos não são um país estável, nem serão.
A coisa não parece boa…
Lembre-se que até agora os Estados Unidos tinham três frentes abertas. Estavam comprometidos com a Ucrânia e, em teoria, assim permanecem. Viram-se arrastados para o Oriente Médio. Contudo, há muitas pessoas que também dizem que a principal preocupação dos Estados Unidos será com o desafio do poder chinês. Nunca acreditei plenamente nisso porque, por um lado, as pessoas falam, erroneamente, de uma segunda Guerra Fria. Não é isto.
Se não é uma guerra fria, o que é?
Na Guerra Fria, na verdade, o Ocidente e a União Soviética não estavam economicamente interligados. Quase não havia qualquer influência direta da URSS na economia ocidental e, sendo assim, não eram codependentes.
No entanto, as economias estadunidense e chinesa são codependentes em muitos aspectos, não apenas nas finanças (a China possui muitos títulos do Tesouro estadunidenses), mas também em determinadas indústrias.
A maioria dos analgésicos e antibióticos estadunidenses provém da China. Existem investimentos estadunidenses muito importantes na China. Seria possível dizer que a Tesla é uma empresa mais ou menos chinesa. Assim como a Apple. Portanto, existe uma codependência profunda e não acredito que os estadunidenses, alguma vez, tenham se preparado para um confronto em grande escala com a China.
Pode acontecer, as coisas podem acontecer por acaso na história. Contudo, seria insustentável para os Estados Unidos ter conflitos abertos nestas três frentes: Ucrânia, China, Oriente Médio.
E se Donald Trump vencer?
Se Trump vencer, além de seu impacto na estabilidade política interna dos Estados Unidos, já que os democratas e os liberais estão tratando isto quase como uma espécie de golpe de Estado fascista, o impacto na Europa poderá ser realmente enorme. Trump é muito hostil em relação à OTAN. Pode ser que não só retire o apoio à Ucrânia, como também corte diretamente o apoio à Ucrânia e também à OTAN.
Que implicações teria para nós, para a Europa?
Isso deixaria a Europa substancialmente sozinha e desprotegida. Existem algumas potências militares importantes e antigas, como a França e, até certo ponto, a Grã-Bretanha, e outras novas, como a Polônia e a Suécia, por exemplo, que poderiam rapidamente se rearmar e preparar as suas defesas contra a Rússia. Contudo, não existe qualquer defesa europeia importante. Não há nada.
Seria possível criar essa defesa ou exército europeu?
É tarde demais. Demora muito para organizá-lo. Precisaríamos de uma década ou mais. Se Trump abandonar a OTAN, será em dez meses, não em dez anos. Seria um choque muito profundo para a Europa e penso que traria à luz um fato importante.
Qual?
Algumas pessoas que se opõem à Europa e Grã-Bretanha se posicionam assim porque dizem que está em formação uma espécie de superestado. Não, não é um Estado, não tem qualquer união fiscal, não tem uma defesa. A questão é que não tem exército.
A União Europeia é muito frágil, tudo o que tem é uma moeda comum, alguns mercados únicos e fronteiras abertas, embora Schengen esteja mais ou menos morto porque alguns países, como a Hungria, a Polônia e outros, simplesmente, o rejeitam e ignoram.
Trump seria devastador, mas e um democrata?
Provocaria uma grande crise, um impacto muito grande. Se Trump se tornar o próximo presidente dos Estados Unidos, isso terá um impacto repentino, dramático. Se for eleito outro democrata, o processo será apenas um pouco mais lento.
Os Estados Unidos estão agora tão implicados no Oriente Médio que simplesmente não podem sustentar a guerra na Ucrânia, mas Putin, sim, pode. De forma muito brutal, continuam chegando soldados. Se tentam fugir, atiram neles, assim como fizeram na Segunda Guerra Mundial… e, sem dúvida, podem continuar fazendo isto por muito mais tempo do que a Ucrânia. Suportará mais do que a Europa, sem dúvida.
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“O fim da hegemonia estadunidense está necessariamente associado a mais conflitos”. Entrevista com John Gray - Instituto Humanitas Unisinos - IHU