27 Outubro 2023
"Pergunto-me se, neste mundo assim delineado, alguém se lembra do excelente jurista islâmico al Boukhari - de tal autoridade que não pode ser reduzido a uma única escola jurisprudencial islâmica -, que já no século IX afirmava que, em tempos de guerra, 'as mulheres, as crianças, os monges, os eremitas, os idosos, os cegos e os doentes mentais não podem ser submetidos a maus-tratos'", escreve Riccardo Cristiano, jornalista italiano, em artigo publicado por Settimana News, 26-10-2023.
O mundo islâmico - confrontado com a perspectiva de uma guerra - deve ser cuidadosamente decifrado, através dos seus líderes e dos seus interesses políticos particulares, dos patrocinadores dos grupos armados mais importantes que os apoiam, das prioridades, muitas vezes não manifestadas, para não falar das contradições e das “giros de pirueta”. Hoje as fontes que me parecem mais convincentes propõem o seguinte cenário.
O pequeno, mas muito rico emirado do Qatar deve tomar cuidado com os seus grandes e poderosos vizinhos, os sauditas e os iranianos, que nunca o adoraram pela sua inconsistência nacional. Assim, durante algum tempo, ele optou por ter relações com todos e, em particular, por representar a Irmandade Muçulmana - a "casa mãe" do Islã político que contesta os líderes árabes corruptos - para irritar a Arábia Saudita, mantendo relações com Israel, mas tão para irritar também o Irã.
Desta forma o Qatar consegue justificar a sua existência, financia o Hamas, mas agora diz que quer induzi-lo a libertar os reféns israelitas. Tudo visa proteger a sua própria existência, para a qual optou por, por um lado, investir enormes somas no Ocidente e, por outro, financiar grupos extremistas para garantir-se um papel regional.
Nesta crise, o Egito tem uma prioridade clara: evitar o afluxo de refugiados para o seu Sinai, tanto que propôs que, em caso de invasão de Gaza, os palestinos fossem temporariamente transferidos para o deserto israelita do Negev, adjacente para Gaza. No entanto, exclui o seu envolvimento ou gestão direta do território de Gaza pós-invasão, para não ter que responder a possíveis ataques bombistas.
Erdogan, da Turquia, está atualmente a desistir do seu papel de apoiante moderado do diálogo com Israel para se tornar o campeão do Hamas, mas depois de os partidos de inspiração islâmica no país - sejam eles hostis a ele ou aos seus aliados - terem aumentado o seu tom. No entanto, ele não considerou retomar a cena islâmica antes de dar o seu consentimento à entrada da Suécia na OTAN, que Washington ansiava.
A manifestação turca pró-Hamas, anunciada para sábado, poderá servir para ofuscar as celebrações do dia seguinte, as da pátria fundada por Ataturk, sem dúvida um nacionalista como ele, mas secular. Assim, os turcos – no domingo – acordarão com jornais que apresentarão Erdogan como o prestigiado pai de todos os sunitas.
O Líbano, de fato, já não existe, tanto que há um ano não tem Chefe de Estado e o seu primeiro-ministro é responsável por “tratar dos assuntos atuais”. Além disso, em breve ficará sem chefe de gabinete, pois o atual se aposentará e ninguém poderá nomear outro.
Com uma honestidade desarmada, o seu primeiro-ministro, nestas horas, admitiu que, sobre a guerra contra Israel, não é certamente ele quem decide, mas apenas o Hezbollah, a milícia Khomeinista que controla o sul do Líbano e, portanto, a fronteira com o Estado de Israel. Neste país - agora destruído por uma crise econômica devastadora - uma pesquisa confirmou que mais de 70% dos libaneses não querem ouvir falar de mais guerras. Mas será que o Hezbollah levará isto em conta? O país, no caso de uma guerra total, poderia facilmente desmoronar, outros “mil” grupos armados poderiam formar-se e cair no caos total.
A linha do Hezbollah - sabe-se - é determinada pelo Irã que prometeu aos sauditas, segundo algumas fontes da imprensa libanesa, que os combatentes do Hezbollah não levantarão fogo, respeitando as regras do "conflito permissível" com Israel, ou seja, bombardear sem atacar cidades e infraestruturas (no entanto, não é claro até que ponto).
Para Teerã, o Partido de Deus deve ser um “espinho plantado no lado” de Israel em termos de dissuasão, para evitar ataques diretos contra o Irã por parte de Israel: é difícil para o Irão expor-se à destruição pelo Hamas; isto, pelo menos, de acordo com a maioria dos observadores libaneses.
Uma linha semelhante parece destacar-se entre as “mil” milícias armadas pró-Irã que controlam o Iraque. Alguns dos seus líderes teriam afirmado que não tinham sido consultados pelo Hamas sobre as suas intenções e ações em Israel, pelo que não tiveram de mostrar qualquer solidariedade.
Mas três das milícias disseram que estavam prontas para lutar. Entre eles, destaca-se o Hezbollah local. Ninguém chega a dizer que se trata apenas de propaganda: todos são rápidos em esclarecer que, no caso de uma intervenção terrestre israelita na Faixa de Gaza, as posições poderiam mudar perigosamente para todos os assuntos mencionados.
Os bem equipados Huti pró-iranianos no Iémen também disseram que estavam prontos para a ação, e provaram ser muito úteis em causar danos às bases navais americanas no Golfo, caso o conflito explodisse.
A Síria de Assad pertence – de pés e mãos – à frente pró-iraniana que ainda a preserva, de alguma forma, no mapa geográfico: não tem força dissuasora para exercer, mas, naturalmente, tem o direito de acolher grupos armados da mesma frente para dar impulso às suas ações, de modo a não expor (demasiadamente) outros solos do "Crescente" Persa: no Líbano e não no Iraque. Tanta coisa sobre a Síria e os sírios, o que isso importa?
O país sobre o qual há poucas dúvidas é a Arábia Saudita. Ele sabe que o Hamas agiu sobretudo contra a perspectiva de um acordo de paz saudita com Israel em fase de definição e, por isso, teve que colocá-lo “na geladeira”. O mais forte ataque árabe à imagem do Hamas começou a partir da Arábia, com uma entrevista veemente ao seu líder Hanye pela televisão al-Arabia.
O príncipe al-Turki, eminência cinzenta da família real, fez o mesmo com o papel, num estilo menos agressivo, mas igualmente claro. Agora Riade está a trabalhar para evitar a extensão do conflito, a fim de se tornar então a potência politicamente mais atrativa do mundo árabe: um objetivo para o qual - dizem muitos - terá de encontrar alguém que lhe possa oferecer espaço para penetrar em todo o território árabe. Opinião pública e muito mais.
Por fim, a Jordânia: é o país nas mãos da coroa mais pró-americana possível, estando por isso, hoje, em grandes e evidentes dificuldades. A população é quase toda de origem palestina, ao contrário da família real, expressão dos beduínos locais.
O rei, porém, casou-se com Rania, de origem palestina: ela - em entrevista a Christiane Amanpourn da CNN - condenou o massacre do Hamas, porém, pedindo sinceramente aos Estados Unidos que defendessem as vidas de civis palestinos inocentes tanto quanto as vítimas do Hamas.
Pergunto-me se, neste mundo assim delineado, alguém se lembra do excelente jurista islâmico al Boukhari - de tal autoridade que não pode ser reduzido a uma única escola jurisprudencial islâmica -, que já no século IX afirmava que, em tempos de guerra, "as mulheres, as crianças, os monges, os eremitas, os idosos, os cegos e os doentes mentais não podem ser submetidos a maus-tratos" (cf. Kitab al Jami' al-Salih).
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Cenários árabes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU