27 Abril 2021
"Desejo a todos nós gratidão pelo trabalho de Hans Küng, pela sua fé, pela sua confiança em Deus. Uma das suas frases mais importantes para mim, com a qual pude acompanhar muitas pessoas, é aquela certa para o fim: 'O amor de Deus não protege de todo sofrimento, mas protege em todo sofrimento'", escreve Wolfgang Gramer, em artigo publicado por Setttimana News, 26-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nós nos reunimos para lembrar um homem que acreditou, teve esperança e amou junto conosco. Viemos agradecer a Deus, suas irmãs, toda sua família, seu país com o espírito de Guilherme Tell, que também o marcou, ele, Hans Küng, que anunciou as boas novas de um Deus amoroso e que tocou o coração de muitas pessoas de boa vontade neste vasto mundo.
O caminho havia se tornado difícil para ele. Ele se movia cautelosamente pelo apartamento com seu andador – apoiado por seu amável ajudante polonês e por todos aqueles que ficaram ao seu lado, especialmente na última fase de sua vida. Senti sua energia interior até o fim, mesmo quando ele não conseguiu mais falar.
Agora Hans Küng atingiu a meta de seu desejo interior, daquela profundidade com que concluiu o semestre de verão de 1963, meu primeiro semestre com ele – para o qual havia escolhido as palavras do apóstolo Paulo na Epístola aos Romanos no final do capítulo 11, que agora ouvimos:
Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos! Por que quem compreendeu a mente do Senhor? ou quem foi seu conselheiro? Ou quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja recompensado? Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém. (Rm 11,33-36).
Sim, naquele semestre de verão de 1963 encontrei o jovem professor pela primeira vez na sala 9 da Universidade de Tübingen. Estava curioso, pois alguns me alertaram sobre ele: "Você vai ver, ele vai destruir a sua fé." Sim, ele fez isso, destruindo minha fé de então, aquela da Igreja como uma instituição eterna e maravilhosa dirigida por um papa infalível e sem defeitos, cercado por uma aura de esplendor e glória.
A Igreja que como aluno do Germanicum em Roma ainda teve tempo de conhecer pessoalmente. Foi assim que viveu como um germânico em Roma – no início.
Depois, aprendi com ele que a Igreja está em devir, se desenvolveu e também se extraviou, às vezes terrivelmente. Acima de tudo, aprendi o que a Igreja quer ser no espírito do Novo Testamento: uma comunidade mundial de mulheres e homens que escutam a palavra de Jesus, aquele maravilhoso homem da Galileia, que ponderam a Palavra para o seu tempo, que celebram o banquete que nos une mais profundamente com Jesus e entre eles – assim como Hans Küng o celebrou ao longo dos anos com a comunidade, domingo após domingo, aqui nesse altar ou mesmo conosco, estudantes aqui ao lado no Wilhelmstift.
Sua forma de orar era muito profunda. Aprendi que esta comunidade é chamada a defender a justiça e a humanidade no mundo de hoje – unida em fraternidade com outras denominações. Aprendi que esta comunidade da Igreja é formada por pecadores, pessoas que têm defeitos e cometem erros – como todos nós, pelos quais somos responsáveis e pedimos perdão.
Por isso a Igreja deve sempre lembrar suas origens, reformar-se continuamente, porque não está imune à tentação de exercer o poder, de se tornar um sistema desumano que apenas monitora a observância de regras autoconstruídas e pronta a excluir aqueles que seguem por outros caminhos. Nós o experimentamos continuamente – na Igreja como na sociedade, nos outros e em nós mesmos.
Portanto, aquele semestre de verão de 1963 deixou sua marca em mim. Hans Küng acabava de voltar da primeira fase do Concílio Vaticano II em Roma. Com Karl Rahner, Yves Congar e Joseph Ratzinger, cujo aniversário é hoje, havia sido conselheiro dos bispos. "Atualização" era o lema do bom Papa João XXIII.
Traduzido para o alemão com Verheutigung – uma palavra que não soa muito bem na nossa língua, não é bonita. Atualização – soa como Mozart, a quem Hans Küng amava tanto quanto Karl Barth, sobre o qual escreveu a sua dissertação. O segundo movimento do Concerto para clarinete de Mozart confortou Küng em sua solidão de estudante em Paris.
Quando ouço esse movimento – uma colega de estudo uma vez disse "lindo de morrer" – sempre penso em Hans. Como ele sabia que eu também gostava muito de Mozart, ele me fez tocar uma peça de Mozart para piano em uma festa de aniversário em sua casa.
Mozart – essa força evolucionária! Não diz: sempre foi assim – não: também pode se tornar algo completamente diferente. Permanecer pregados no que já existe é uma tentação. Por isso rezamos no Pai Nosso latino-americano: no nos dejes caer en la tentación – não nos deixe cair em tentação. Quem nunca se sente tentado a dizer: Oh, isso é muito estúpido para mim agora, nunca vai mudar – ou ela, a Igreja!
Penso em uma noite de verão inesquecível em 1966, voltando de um semestre em Bonn, onde, entre outras coisas, ouvi pela primeira vez o companheiro de armas ecumênico de Küng, Jürgen Moltmann. Eu estava repleto da doutrina paulina da justificação, que havia aprendido por meio da teologia protestante. Agora eu sabia: “Não tenho que me justificar diante de Deus por meio de minhas atuações, das minhas ações, não: posso ser como sou e me sinto encorajado a realizar esse amor de Deus por meio da minha vida”.
Dar corpo a Deus através da minha vida, não mais como condição, mas como consequência. Naquela noite, toquei a campainha de Hans Küng, que ainda morava na Gartenstrasse na época, e contei a ele sobre isso. Eu disse, enquanto nos despedíamos em frente à porta, "na verdade, eu me pergunto se não me tornei um evangélico agora e deveria me converter".
Ele respondeu: “então você não está em casa na Igreja Protestante, nem na Igreja Católica. Fica no barco e faz com que o rumo mude, de uma para a outra”. Isso é o que ele mesmo fez. Ele não abandonou o barco para dar bons conselhos de fora, ficou e lutou por dentro. Mesmo quando aconteceu aquele "dia escuro como breu" (de acordo com Karl Lehmann) e o sistema retirou sua licença para ensinar.
Porque Küng havia questionado uma infalibilidade erroneamente entendida do papa. Era o sistema? Eram as pessoas? Eram as pessoas presas no sistema? É por isso que o título do primeiro livro de memórias de Küng é importante para mim: Libertà combattuta (Liberdade combatida). Recebemos a liberdade como filhos de Deus, que nos convida a levantar-nos onde quer que essa liberdade seja ameaçada, naquela época como agora – na Igreja como na sociedade. Na realidade, não seria tão difícil encontrar um caminho na controversa questão da chamada infalibilidade.
Hans Küng nos mostrou isso há mais de 50 anos, quando explicou como deve ser interpretado hoje este controverso Concílio, o Vaticano I, durante o qual o então bispo de Rottenburg, Hefele, se retirou em protesto antes da votação.
Infalibilidade não significa, assim entende Küng, falta de erros, mas certeza e pode ser entendida desta forma: na medida em que a Igreja permanece sob a palavra de Deus, pode ter certeza de não se extraviar radicalmente; isso é expresso pelo papa como porta-voz de toda a Igreja e símbolo de unidade.
Por isso, o título do segundo volume de memórias de Küng também é importante: Verità contestate (Verdades contestadas), onde já então resumia para nós alunos: “não somos nós que temos a verdade, mas a verdade que nos possui” – e então podemos partir juntos na busca, e fazê-lo como intitula o terceiro volume: Umanità vissuta (Humanidade vivida).
Sentimo-nos atingidos pela revogação de sua licença de ensino em 1979. Coletamos assinaturas e imploramos a nosso bispo da época, Moser, que permanecesse firme em Roma. A situação seguiu outro rumo.
O que Hans Küng fez? Na força de Jesus, ele ampliou seu horizonte, e a Land e a Universidade o apoiaram no empenho de uma compreensão das religiões mundiais e na criação de uma ética global de paz – pela qual muitas pessoas no vasto mundo lhe são gratas. Humanidade vivida.
Também eu o experimentei quando era pároco na catedral argentina de Añatuya nos anos 1990. Eu tinha um vigário argentino e um dia tive uma conversa com ele sobre Martinho Lutero. Tentei explicar a ele o que era Lutero. Ao que ele respondeu: "herege!" Depois, contei a ele sobre as principais preocupações da teologia de Hans Küng. Ao que ele respondeu: "herege!"
Aí eu disse: "E eu?". Ele ficou em silêncio, mas sua expressão me dizia: "também herege!". Hoje somos amigos. A humanidade que vivemos nos aproximou. Um de meus alunos do então seminário de Santiago del Estero escreveu-me recentemente – depois de mais de 30 anos: "Sou muito grato a você por ter me ensinado teologia de Hans Küng naquela época". Humanidade vivida.
Foi importante para mim quando tive uma ideia enquanto passava uma camisa no dia 4 de agosto do ano passado, dia do Cura d'Ars. Afinal, o Cura d'Ars é o único patrono de nós, padres.
Isso mostra como é difícil para nós, sacerdotes, nos tornarmos santos! Pedi a Walter Kasper por e-mail que pedisse ao papa ou ao Vaticano um sinal de esperança, especialmente porque a saúde de Hans Küng estava piorando cada vez mais. Ninguém, nem mesmo Hans, havia me pedido isso. Simplesmente aconteceu. Eu esperava que os vértices da Igreja pudessem dar um passo em direção a Küng e finalmente esclarecer o que precisava ser esclarecido.
Walter Kasper telefonou imediatamente para o papa. Quando o Papa Francisco reagiu prontamente com um abraço fraterno "em comunhão cristã", eu o entendi bem, porque como meio argentino conheço a mentalidade do papa argentino: humanidade vivida, mas nenhuma apropriação, nenhum cancelamento do problema, nenhuma banalização, mas a disponibilidade de percorrer o caminho juntos.
Mas o alemão em mim ainda quer o passo concreto de Roma. Ainda estou esperando por isso - junto com muitos outros. Em 1969, na véspera da minha primeira missa na paróquia de Waiblingen, minha terra natal, Hans Küng pregou em uma celebração ecumênica e falou em favor do sacerdócio comum de todos os crentes. Eu o havia convidado e ele aceitou imediatamente. Foi uma noite emocionante! Foi igualmente comovente quando, depois da revogação de sua licença de ensino, ele aceitou meu convite para vir a Böblingen, onde eu era pároco, para celebrar a Eucaristia e falar comigo.
Anke, que era uma coroinha na época, foi se encontrar com o Senhor no mesmo dia que Hans Küng – 6 horas antes dele, vencida por um tumor. Ela se deixou tocar pela causa de Jesus na paróquia naqueles tempos, da mesma forma que Hans Küng tocou a nós jovens estudantes – para mim um convite a todos nós para continuarmos em conversação com os nossos jovens hoje sobre a causa de Jesus. “A causa de Jesus precisa de pessoas apaixonadas”, gostávamos de cantar.
Durante minha última visita na quarta-feira antes da Quinta-feira Santa, quinta-feira suprema como dizem os suíços, era importante para mim compartilhar o pão eucarístico com Hans – também em memória da minha primeira missa e das celebrações eucarísticas que fizemos juntos.
Ele só conseguia dizer meias frases, mas quando comecei o Pai-Nosso, ele orou em alto e bom som, da primeira à última palavra. O mesmo aconteceu durante a bênção com o poema "Poderes Benignos" de Bonhoeffer – com a cruz na testa, gesto com que sempre me despedia nos últimos tempos.
Na sexta-feira passada foi o aniversário de Dietrich Bonhoeffer. E assim, caros irmãos e irmãs, para usar a breve fórmula de fé de Hans Küng, no seguimento de Jesus Cristo podemos "viver, agir, sofrer e morrer de uma forma verdadeiramente humana no mundo de hoje: na felicidade e na desventura, na vida e na morte trazidos por Deus, e na ajuda aos homens e às mulheres”.
Seu olhar, sentado à escrivaninha, através da janela, lançado na imensidão é inesquecível para mim. Desejo a todos este olhar amplo, especialmente em nossa situação de tensão na Igreja e na sociedade.
Desejo a todos nós gratidão pelo trabalho de Hans Küng, pela sua fé, pela sua confiança em Deus. Uma das suas frases mais importantes para mim, com a qual pude acompanhar muitas pessoas, é aquela certa para o fim: “O amor de Deus não protege de todo sofrimento, mas protege em todo sofrimento”.
Eu desejo isso a todos nós. Obrigado, caro Hans! Quando depois dos discursos comemorativos, eu for tocar no órgão Nun danket alle Gott, todos deveriam cantar com entusiasmo. Este era o desejo de Hans Küng. Sua confiança em Deus deveria ser expressa mais uma vez.
Isso não é possível para nós aqui reunidos (dadas as regras para a pandemia), mas peço a todos aqueles que estão acompanhando esta celebração em streaming que o façam.
No primeiro versículo, gostaria de lembrar a mãe de Hans Küng: ela também foi diante do Senhor como ele em 6 de abril – 33 anos antes dele. Após o primeiro verso, o pastor acompanhará o caixão para fora. Às 15h vamos enterrá-lo no antigo cemitério da cidade.
Hans Küng agora olha para o que acreditava e nos convida a confessar: “Eu sei que o meu Redentor vive”. Permaneçamos unidos no amor de Deus!
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Réquiem para Hans Küng - Instituto Humanitas Unisinos - IHU