26 Março 2019
“Não quero deixar passar os 91 anos de meu mestre, amigo e colega Hans Küng sem lhe expressar meus parabéns e meu reconhecimento pela “liberdade conquistada” durante sua longa e fecunda existência. E faço isso oferecendo algumas imagens de sua vida que refletem sua coerência, honestidade e integridade”, escreve o teólogo Juan José Tamayo, em artigo publicado por Religión Digital, 24-03-2019. A tradução é do Cepat.
Não quero deixar passar os 91 anos de meu mestre, amigo e colega Hans Küng sem lhe expressar meus parabéns e meu reconhecimento pela “liberdade conquistada” durante sua longa e fecunda existência. E faço isso oferecendo algumas imagens de sua vida que refletem sua coerência, honestidade e integridade. Hans Küng tinha 34 anos quando foi nomeado por João XXIII perito do Concílio Vaticano II, junto com outros prestigiosos teólogos como Karl Rahner, Yves M. Congar, Bernhard Häring, Henri de Lubac, Gérald Philips, Joseph Ratzinger, etc.
Tudo mudou dezessete anos depois com o Papa João Paulo II, que lhe retirou a licença eclesiástica para ensinar por ter questionado a infalibilidade papal. É o que conta o próprio Küng se referindo abertamente à Inquisição:
“Em 1979, experimentei pessoalmente a Inquisição sob outro papa. A Igreja me retirou a permissão para o ensino, mas mesmo assim mantive minha cátedra e meu Instituto (que ficou segregado da Faculdade Católica)”. (La Iglesia católica, Mondadori, Barcelona, 2002, 14).
O teólogo suíço considera tal condenação “juridicamente impugnável, teologicamente infundada e politicamente contraproducente”.
No entanto, a condenação não conseguiu destruir sua reputação, nem dentro da Igreja católica, entre o povo crente e os colegas teólogos e teólogas, nem no mundo intelectual do pensamento crítico, e menos ainda no diálogo ecumênico entre as Igrejas cristãs, onde o reconhecimento teológico de Küng era muito elevado. Aconteceu tudo ao contrário: a condenação contribuiu para abrir o debate sobre a infalibilidade, gerou uma calorosa corrente de sintonia expressada através de numerosas declarações de solidariedade ao teólogo sancionado e de denúncia dos comportamentos inquisitoriais do Vaticano.
Rhaner y Küng (Fonte: Religión Digital)
O que a condenação evidenciava não era outra coisa a não ser o retrocesso produzido no Vaticano, do Pontificado de João XXIII ao de João Paulo II, em apenas quinze anos, que passava do anátema ao diálogo, da reforma à restauração, da evolução à involução, do respeito ao pluralismo teológico à uniformidade, do cristianismo à cristandade, da liberdade de investigação e expressão à repressão, do pensamento crítico ao pensamento cativo, da linguagem simbólica à linguagem dogmática.
Contudo, Küng não identifica o sistema romano com a Igreja católica, mas, ao contrário, estabelece uma clara e lúcida distinção entre ambos: “Apesar de minhas experiências sobre quão flexível pode resultar o sistema romano, a Igreja católica, essa irmandade de crentes, continuou sendo meu lar espiritual até o presente” (La Iglesia católica, p. 13).
A relação do Vaticano com Hans Küng mudou em 2016. O teólogo suíço publicou “Um apelo ao Papa Francisco” em vários jornais, de diferentes países, pedindo que abrisse um debate “imparcial e livre de preconceitos” sobre o dogma da infalibilidade. Alguns dias depois, Francisco lhe respondeu. O clima eclesial havia sofrido uma importante mutação: deixava-se para trás a linguagem do anátema e se voltava a transitar pela senda do diálogo, que nunca deveria ter sido interrompido.
A carta era assinada pelo próprio Papa, que se dirigia a Küng em cursiva e em alemão com um lieber Mitbruder (querido Irmão). Nela demonstrava ter lido atentamente seu “Apelo” e valorizava positivamente as reflexões que lhe levaram à publicação do quinto volume de suas obras completas, precisamente o dedicado à infalibilidade.
H. Kung y K. Barth (Fonte: Religión Digital)
No prólogo a seu livro La Iglesia, Küng expressa um agradecimento cordial a Joseph Ratzinger pela valiosa ajuda prestada, sendo colegas na Faculdade de Teologia da Universidade de Tubinga. Com o passar dos anos, a colaboração se tornou distanciamento, sobretudo a partir do momento em que Ratzinger chegou ao episcopado, tornou-se homem de confiança de João Paulo II e assumiu a presidência da Congregação para a Doutrina da Fé.
Houve uma fugaz tentativa de aproximação entre ambos por iniciativa de Hans Küng. Foi em Castelgandolfo, durante o verão de 2005, já sendo Papa Joseph Ratzinger, que recebeu a petição do teólogo suíço. Mas, tudo ficou em um encontro pontual sem continuidade. Em seu exercício do ministério papal, Ratzinger foi se amparando em posições integristas que Küng e os teólogos fiéis ao Concílio Vaticano II não podíamos compartilhar.
A etapa do cardeal Ratzinger à frente da Congregação para a Doutrina da Fé foi uma das de maior rigidez doutrinal e moral, de mais dura perseguição às teólogas e aos teólogos do Concílio Vaticano II, da teologia da libertação, da teologia feminista, da teologia do pluralismo religioso e da teologia moral.
Na última das lições ditadas no semestre de inverno de 1995-1996, na Universidade de Tubinga, Hans Küng conta que um colega católico lhe perguntou, após as primeiras aulas, se não poderia ter feito muito bem também dentro do sistema romano, escrevendo, por assim dizer, uma teologia primeiro para o Papa e, a partir daí, também para a Igreja e o mundo. É uma pergunta que ele também se colocou, embora afirme que não cresceu como antagonista do sistema romano. Após mais de meio século de itinerário teológico criativo e inovador, sua resposta foi a seguinte:
“Não podia ir por outro caminho, não só em honra à liberdade, a qual sempre tive grande apreço, mas em honra à verdade, que para mim está acima inclusive da liberdade. Se houvesse seguido esse outro caminho, assim o vejo agora e assim o vi então, teria vendido minha alma pelo poder da Igreja. Gostaria neste momento de confiar (e digo isso sem o menor indício de ironia) em que meu companheiro em idade e em grande parte do caminho, Joseph Ratzinger, que escolheu outro caminho e que também será nomeado professor emérito este ano, ao olhar para trás e apesar do sofrido, esteja tão contente e feliz como eu”.
Que elegância! Poderá dizer o mesmo Ratzinger, hoje Papa emérito?
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Hans Küng, 91 anos a caminho: “Liberdade conquistada” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU