Francisco e o vento contrário da Cúria. Artigo de Hans Küng

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28 Novembro 2013

O Papa Francisco dispõe das necessárias qualidades para liderar como capitão o navio da Igreja através das tempestades destes tempos: a confiança dos fiéis lhe servirá de apoio. Ele terá contra ele o vento da Cúria e, muitas vezes, deverá avançar em ziguezague. A Evangelii gaudium é uma etapa importante nesse sentido, mas certamente não é o ponto de chegada.

A opinião é do teólogo suíço-alemão Hans Küng, em artigo publicado pelo jornal Corriere della Sera, 27-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A reforma da Igreja prossegue: na exortação apostólica Evangelii gaudium, o Papa Francisco reitera não só a sua crítica ao capitalismo e ao domínio do dinheiro, mas também se declara inequivocamente favorável a uma reforma eclesiástica "em todos os níveis". Ele luta concretamente por reformas estruturais, tais como a descentralização para as dioceses e paróquias, uma reforma do ministério de Pedro, a reavaliação dos leigos e contra a degeneração do clericalismo, por uma eficaz presença feminina na Igreja, especialmente nos órgãos decisionais. Declara-se também expressamente favorável ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso, especialmente com o judaísmo e o Islã.

Tudo isso encontrará um amplo consenso muito além do âmbito da Igreja Católica. A recusa indiscriminada do aborto e do sacerdócio feminino deverão despertar críticas. Mostram os limites dogmáticos desse papa. Ou talvez Francisco sofre as pressões da Congregação da Doutrina da Fé e do seu prefeito, o arcebispo Gerhard Ludwig Müller?

Este último manifestou a sua própria posição ultraconservadora em uma longa intervenção no L'Osservatore Romano (23 de outubro de 2013), em que reitera a exclusão dos sacramentos dos divorciados em segunda união. Dado o caráter sexual da sua relação, eles vivem presumivelmente no pecado, a menos que convivam "como irmão e irmã" (!). Como bispo de Regensburg, Müller, fonte de inúmeros conflitos com párocos, teólogos, órgãos leigos e o Comitê Central dos Católicos Alemães pelas suas posições ultraclericais, era discutido e mal visto. O fato de que, apesar disso, ele foi nomeado pelo Papa Ratzinger, na qualidade de fiel defensor, além de curador da sua opera omnia, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, não surpreendeu tanto quanto ter sido logo confirmado nesse cargo pelo Papa Francisco.

E os observadores, preocupados, já se perguntam se o Papa Emérito Ratzinger, por meio do arcebispo Müller e de Georg Gänswein, seu secretário, também ele nomeado arcebispo e prefeito da Casa Pontifícia, efetivamente não age como uma espécie de "papa-sombra". Aos olhos de muitos, a situação parece contraditória: por um lado, a reforma da Igreja e, por outro, a atitude com relação aos divorciados em segunda união.

O papa gostaria de ir em frente – o "prefeito da fé" freia. O papa tem em mente a humanidade concreta – o prefeito, principalmente a doutrina tradicional católica. O papa gostaria de praticar a caridade – o prefeito apela à santidade e à justiça divina. O papa gostaria que os sínodos episcopais, em outubro de 2014, encontrassem soluções práticas para os problemas da família, também com base em consultas aos leigos – o prefeito se baseia em teses dogmáticas tradicionais para poder manter o status quo, sem caridade. O papa quer que os sínodos episcopais empreendam novas tentativas de reforma – o prefeito, ex-professor de teologia dogmática, pensa que pode impedi-las logo de saída com a sua tomada de posição.

É preciso se perguntar se o papa ainda controla esse seu sentinela da fé.

É preciso dizer que o próprio Jesus se expressou sem meios termos contra o divórcio. "O que Deus uniu o homem não o separe" (Mt 10, 9). Mas ele fazia isso sobretudo em benefício da mulher, que na sociedade da época era penalizada em nível jurídico e social, e contra o homem, que no mundo judaico era o único que podia apresentar o pedido de divórcio. Assim, a Igreja Católica, na qualidade de sucessor de Jesus, embora em uma situação social completamente mudada, reitera fortemente a indissolubilidade do matrimônio que garante aos cônjuges e aos seus filhos relações estáveis e duradouras.

Os cristãos neotestamentamentários não consideram a palavra de Jesus com relação ao divórcio como uma lei, mas sim como uma diretriz ética. O fracasso da união matrimonial claramente não corresponde ao desígnio da criação. Mas só a rigidez dogmática não pode admitir que a palavra de Jesus sobre o divórcio já na época apostólica fosse usada com uma certa flexibilidade, isto é, em caso de "luxúria" (cf. Mt 5, 32; 19, 9) e no caso de separação entre um parceiro cristão e um não cristão (cf. 1Cor. 7, 12-15).

É evidente que já na Igreja primitiva se percebia que existem situações em que continuar a convivência se torna irrazoável.

E a credibilidade do Papa Francisco seria imensamente danificada se os reacionários do Vaticano o impedissem de traduzir logo em ações as suas palavras e os seus gestos embebidos de caridade e de sentido pastoral. O enorme capital de confiança que o papa acumulou nos primeiros meses do seu pontificado não deve ser desperdiçado pela Cúria.

Inúmeros católicos esperam que o papa examine a discutível posição teológica e pastoral de Müller; que vincule a comissão para a defesa da fé à sua linha teológica pastoral; que as louváveis consultas dos bispos e dos leigos em vista dos próximos sínodos sobre a família levem a decisões dotadas de fundamento bíblico e próximas da realidade.

O Papa Francisco dispõe das necessárias qualidades para liderar como capitão o navio da Igreja através das tempestades destes tempos: a confiança dos fiéis lhe servirá de apoio. Ele terá contra ele o vento da Cúria e, muitas vezes, deverá avançar em ziguezague, mas a esperança é que, confiando-se à bússola do evangelho (não à do direito canônico), ele possa manter a rota na direção da renovação, do ecumenismo e da abertura ao mundo. A Evangelii gaudium é uma etapa importante nesse sentido, mas certamente não é o ponto de chegada.