13 Abril 2021
"Definir Hans Küng como o rebelde dos dogmas da Igreja é uma simplificação inaceitável e distorcida de seu pensamento e de sua obra. Seu caráter franco e direto não pode ser negado, mas com isso, Küng sempre mostrou coerência e afeto para com a Igreja, da qual sempre se sentiu membro ativo", escreve Franco Valenti, formado em moral social pela Faculdade de Teologia de Friburgo (Suíça), com especialização em sociologia urbana, membro do grupo de pesquisa Cities for Local Integration Policies (Clip), dirigindo a Dublin Eurofound European Agency e é membro da equipe editorial da Missione Oggi, em artigo publicado por Settimana News, 11-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
A morte de Hans Küng aos 93 anos misturou mais de 50 anos de dialética teológica e confrontos acirrados entre partidários da continuidade do espírito inovador do Concílio Vaticano II e aqueles que, temendo desvios doutrinários, tentaram canalizar os processos no sulco da tradição de controle dos dicastérios romanos.
A lufada de ar fresco suscitou desafios ambiciosos, tanto nas formas de anúncio evangélico como na procura de novas modalidades de ser testemunhas num tempo de profundas transformações sociais e culturais. Após os primeiros anos de entusiasmo, os obstáculos se revelaram imediatamente. Para os guardiões da ortodoxia católica romana, aqueles saltos para frente representavam o risco de deslegitimar as funções de controle e proteção da tradição.
O deslocamento das cercas para ampliar os espaços de legitimidade da pesquisa teológica parecia questionar os axiomas de uma ortodoxia imutável e que devia ser respeitada. As linhas de demarcação dos espaços de salvação, que de católico-cêntrica ia cada vez mais assumindo aspectos mais universais, deixava pressagiar uma dissolvição das verdades reveladas.
A década 1970 viu vários teólogos serem privados da missio canônica de ensino nas faculdades de teologia, especialmente aqueles que se ocupavam de matérias como a moral e a eclesiologia. Outros foram chamados a corrigir parte de suas teses e escritos.
A motivação subjacente era ditada pela necessidade de defender a Igreja do risco de se tornar refém de movimentos marcados por várias formas de relativismo religioso. A questão da Salvação de todos e para todos, desde as origens da criação, abriu uma quæstio cuja disputa ainda persiste.
Hans Küng, graças a sua grande capacidade comunicativa, por um lado, à sua localização em uma área protestante com ensino em universidades estatais, por outro, soube oferecer respostas a questões fundamentais da Igreja do final do milênio, sobre, por exemplo, as estruturas de poder e comando e sobre o significado do celibato sacerdotal em vez da ausência das mulheres nos ministérios da Igreja.
É sobretudo devido ao seu texto sobre a infalibilidade do Papa que, em 1979, foi privado do direito de ensinar em nome e por conta da Igreja Católica. Naquela época, seu colega professor de dogmática era Walter Kasper, que em 1989 tornar-se-ia bispo da diocese de Rottenburg-Stuttgart, onde está localizada a faculdade de teologia católica de Tübingen. O governo do Land Baden-Wurttemberg interveio então para lhe garantir a continuação do seu empenho teológico, assegurando-lhe o cargo de professor.
A sua incessante produção literária, acessível ao grande público, rendeu-lhe uma notoriedade indiscutível e, portanto, bastante problemática para as estruturas eclesiásticas romanas. Ele certamente não era ingênuo, sabia perfeitamente bem quais eram as possíveis consequências de seus desafios. Não é à toa que alguns títulos de suas memórias - e portanto de sua vida - contêm a palavra “batalha”, para designar seu percurso comprometido com a manutenção de uma “liberdade conquistada”.
Foi também uma pessoa animada por uma grande estima por si e pelas suas capacidades, sempre capaz de se colocar no meio da roda, falar com todos, em todos os níveis e sobre todos os temas possíveis, embora reconhecendo seus próprios limites em disciplinas outras que a teologia e a filosofia.
Seu sistema de rigorosa pesquisa e sistematização dos argumentos reflete a estrutura das summae teológicas do passado. Não lhe faltavam clareza e coerência de conteúdos e formas. A Herder Verlag o homenageou com a publicação de 24 volumes de sua produção teológica: um tributo reservado apenas a bem poucas testemunhas importantes do século XX.
Contudo, Hans Küng não foi apenas o crítico da Humanae Vitae, a encíclica que despertou perplexidade em grande parte da teologia além dos Alpes; e nem mesmo o questionamento da infalibilidade do Papa: uma questão ainda aberta a várias interpretações no aprofundamento dos âmbitos em que a infalibilidade encontra sua legitimação, entre serviço à Igreja e gestão dos aparatos. O Concílio de Jerusalém já havia indicado o caminho para resolver questões de sensibilidade dentro da Igreja primitiva.
Hans Küng foi principalmente um teólogo da ecúmena, capaz de colocar no centro de sua atividade a intuição da necessidade de pensar uma ética global, capaz de superar as cercas espinhosas dos limites das religiões. Pouco depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, perante a Assembleia da ONU, reiterou que, diante dos processos de globalização e da ameaça de choques de civilizações, era necessário promover uma ética global, não apenas como um otimista e ingênuo ideal, mas como uma visão realista de esperança.
Seu texto de 1993, redigido durante o Conselho do Parlamento das Religiões em Chicago, continua sendo um documento totalmente válido. Com efeito, a função e o papel das religiões são indiscutíveis, tanto na construção como na legitimação dos conflitos. Mas as religiões também podem ter principalmente um papel no desenvolvimento de caminhos de reconciliação e na reconstrução da confiança mútua.
O século XX, o século dos nacionalismos exasperados, da polarização dos interesses partidários, que chegaram até à determinação de aniquilar povos inteiros da face da terra, viu desaparecerem as promessas do socialismo real e do liberalismo econômico, em confrontos destrutivos entre continentes inteiros do planeta. A cultura, portanto, precisava de um novo paradigma de relações, de uma nova perspectiva para compreender de modo global e holístico todas as interconexões e interdependências que unem povos e países, e, com eles, as religiões professadas.
Seu projeto Weltethos, Ética Global, que se baseia no princípio da humanidade, viu a criação da Fundação que ele instituiu e presidiu até o aparecimento da doença que progressivamente o impediu de ler e escrever. Trata-se de um projeto que mostrou toda a sua validade e relevância, ainda que na Itália, para dizer a verdade, não despertou muito interesse.
A sua difusão atingiu sobretudo contextos de pluralidade confessional e religiosa, suscitando esperanças e movimentos de diálogo em todos os continentes. Não foi apenas a formulação de uma ideia, mas de um programa educacional concreto, capaz de envolver as gerações futuras desta nossa humanidade.
Seu pensamento e ação se adicionaram ao que foi elaborados por outros grandes padres do diálogo inter-religioso, como Raimon Panikkar ou Jacques Dupuis. Para reforçar a dimensão transversal de todos os saberes, na necessidade de diálogo e partilha, em Tübingen nasceu também o Weltethos Institut, uma academia que reúne expectativas e projetos de alunos de todas as faculdades da cidade, apta a reinterpretar, de uma chave policêntrica e global, os valores fundadores de todas as civilizações humanas, na raiz das quais está sempre a ética da regra de ouro: "façam aos outros o que vocês querem que eles façam a vocês" (Mt 7,12 )
A disseminação da mensagem foi confiada a uma exposição de 16 painéis, dos quais 8 dedicados ao conhecimento dos elementos fundamentais das principais religiões do planeta e outros 8 à memória dos valores fundadores de todas as civilizações. Essa exposição foi traduzida para vários idiomas e já foi exibida em vários âmbitos da vida pública, com prioridade nas universidades e escolas de segundo grau. Também não faltaram projetos de catequese para crianças e alunos do ensino fundamental, porque a cultura da tolerância e da pluralidade deve ser praticada desde os primeiros anos de formação, para se tornar um habitus de vida.
A chegada de Francisco ao trono papal reacendeu em Hans Küng o desejo de um abraço fraterno ao homem de fé que fez dos valores do poverello de Assis o seu programa pontifício: uma resposta esperada há anos.
As políticas eclesiais do Papa João Paulo II primeiro e depois de Bento XVI pareciam ter posto a palavra fim à possibilidade de uma reconciliação autêntica, no respeito e na dignidade mútuos.
O encontro com o homem Josef Ratzinger em Castelgandolfo foi, de fato, um primeiro passo para redescobrir o espaço do diálogo. Por outro lado, Küng não havia esquecido as modalidades pelas quais foi solicitado ao grande teólogo moral bávaro Bernard Häring - falecido em 3 de julho de 1998 - corrigir algumas de suas posições "críticas" em matéria de moral.
Em seu livro Meine Erfahrung mit der Kirche, o grande moralista da segunda metade do século XX, narra as pressões sofridas pela Congregação para a Doutrina da Fé.
Definir Hans Küng como o rebelde dos dogmas da Igreja é uma simplificação inaceitável e distorcida de seu pensamento e de sua obra. Seu caráter franco e direto não pode ser negado, mas com isso, Küng sempre mostrou coerência e afeto para com a Igreja, da qual sempre se sentiu membro ativo.
Não aceitou as bajulações de quem o convidava a abrir sulcos intransponíveis. Ele escolheu a perseverança na busca de respostas às perguntas que a fé e a razão lhe faziam todos os dias. Teve a coragem de levantar âncoras – como, aliás, fizeram alguns outros de seus predecessores - para se aventurar no mar das águas turbulentas da contemporaneidade, para poder falar às mulheres e aos homens de hoje de uma salvação universal, desejada por Deus, desde as origens do mundo.
A salvação universal encontra sua conclusão na vinda de Cristo, mas isso não dispersa o sopro de Deus sobre todo o universo, não muda o que é “desde sempre”.
A dialética, às vezes abrupta, na crítica de alguns documentos do magistério, nele não era ditada por preconceito e oposição à autoridade papal: ele sempre quis manifestar a liberdade de pensar de forma diferente sobre as funções e a missão da Igreja em uma humanidade em plena evolução. Ele foi provavelmente um dos teólogos mais lidos por "pessoas" - completamente leigas, pouco crentes ou fiéis e praticantes - nos últimos 50 anos. Não é de forma alguma excluído que a sua obra tenha dado frutos abundantes, fortalecendo a fé trinitária e o amor à Igreja.
Os seus últimos anos foram marcados pela misericórdia, reconciliação e consolação, graças ao afeto e estima que várias vezes lhe expressou o Papa Francisco.
Justamente por ocasião da transmissão da presidência da Fundação Weltethos para o seu sucessor Eberhard Stilz, Hans Küng quis ler a nota que lhe foi enviada pelo Papa Francisco. A emoção por aquelas palavras de afeto e amizade comoveu todos os amigos presentes: finalmente a communio entre as irmãs e os irmãos prevaleceu sobre os mal-entendidos e contraposição muitas vezes alimentados por narrativas partidárias distorcidas.
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Hans Küng e as dialéticas católicas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU