22 Julho 2020
"Podemos ter misericórdia da antiga e moderna 'elefantíase' projetada sobre a infalibilidade papal, desde que saibamos reconhecer, nos passos do Concílio Vaticano II, mas já no próprio legado paradoxal do Vaticano I, que a infalibilidade mais autêntica é apenas aquela da misericórdia. É a peculiaridade não ordinária de um pastor que, no seguimento do Senhor e nos passos de Maria, possa se reconhecer e se apresentar primeiro como 'miserorum miseratus'", escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 21-07-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Conciliar na história o anúncio da verdade com o silêncio sobre aquilo do que ainda não temos condições de suportar o peso"
– (E. Benvenuto)
O que significa lembrar, depois de 150 anos, da "definição de infalibilidade papal" pelo Concílio Vaticano I? Alguns textos que apareceram nos últimos tempos nos ajudam a instruir adequadamente a "causa". As perguntas perspicazes levantadas por Fulvio Ferrario no FB, a leitura histórica de Daniele Menozzi, a entrevista com Carlo Fantappié em Avvenire nos ajudam a olhar prospectivamente para o evento. No fundo, deixo um texto duplo, com mais de 20 anos, escrito por S. Dianich e pelo saudoso E. Benvenuto e que se encontra no verbete "infalibilidade" no Dicionário "Teologia" de San Paolo, elaborado por Barbaglio-Bof-Dianich. Com base nessas leituras, parece-me útil tentar formular uma série de considerações, que ajudem a entender a complexidade e a delicadeza do tema.
A primeira coisa útil, diante do pronunciamento de 150 anos atrás, é manter o olhar amplo. Não se fechar nas evidências/inevidências teóricas – embora sejam fortes – e não se fixar em uma perspectiva de leitura meramente funcional, eu diria puramente política e eclesiástica. O "dogma da infalibilidade" – se é que podemos chamá-lo assim – diz algo de novo e o diz de maneira extrema, quase "acima das linhas". Portanto, merece não ser reduzido, com as fórmulas fáceis, mas arriscadas, com as quais dizemos "nada mais é do que ...". Vamos tentar partir do reconhecimento que aquele texto forte e aquele gesto extremo sempre são outra coisa!
No plano estritamente dogmático, duas observações deveriam acompanhar a análise. O modelo de pronunciamento permanece no estilo do "magistério negativo" – não afirma, mas nega uma negação – e o faz de acordo com uma série de afirmações paralelas, mesmo que não cobertas por esse grau de autoridade, como "inerrância", "indefectibilidade", "indissolubilidade" e agora também "infalibilidade". De certa forma, se excluirmos a longa temporada do antimodernismo, que em formas quase paroxísticas ainda perpetuaria por mais 80 anos esse nobre estilo clássico, 1870 também marca o fim desse estilo. É o próprio Vaticano I que é um testemunho vivo, atribulado e consciente – pelo menos em seus padres mais lúcidos – da "crise do magistério negativo". Já então era evidente que não seria mais suficiente "negar o erro", como o magistério eclesial havia feito por séculos, em 99% de suas intervenções. O mesmo projeto do Concílio Vaticano I havia concebido, pelo menos no início, a ideia de poder ser uma espécie de "antologia" de todas aquelas "condenações" do século XIX. Mas depois se entendeu que tal caminho estava impedido, pelo menos como tarefa conciliar primária.
A relação com a história e seu significado é decisiva para a Igreja. Uma posição equilibrada entre a antecipação de cada juízo e sua procrastinação – entre uma igreja ética e uma igreja escatológica, entre uma igreja não indiferente e uma igreja indiferente – sempre coloca em jogo a autoridade e suas formas de exercício. Dogma e história se enfrentam e lutam para encontrar uma mediação. Um incondicionado, um absoluto, um transcendente toma necessariamente forma eclesial, mas de que modo e sob que condições? O esforço para acompanhar a história pode encontrar e reconhecer outro princípio fora de si. No entanto, isso tem dificuldade de se especificar de uma forma adequada, não apenas em um "outro lugar", mas com um "antes" e com uma leitura idealizada e nostálgica desse antes. Os desenhos "intransigentes" da leitura do papado projetaram sobre infalibilidade muito mais do que aquilo que é. De certa forma, transformaram um mosquito em um camelo. E somos todos vítimas – e um pouco também carrascos – dessa falta de proporções. E sabe-se que quando as pequenas coisas se tornam grandes, as coisas grandes se tornam pequenas ...
Essa prerrogativa papal, que na realidade é uma prerrogativa eclesial e que, como tal, também é referida na fórmula oficial de proclamação, orienta a leitura do "corpo místico" de um modo bastante unilateral. A Igreja levará quase um século para encontrar uma leitura diferente, em um outro Concílio – na descontinuidade do Vaticano I, pois ficou imediatamente claro que se tratava não da continuação daquele concílio "inacabado", mas de um "outro concílio". A pirâmide se invertia: o serviço papal da unidade recuperava aquela força eclesial que havia sido exaurida, por quase um século, no viés político e institucional. Outro modelo da Igreja – não societas inaequalis, mas "povo de Deus" – permitiu ler de maneira diferente também as prerrogativas excepcionais de seu servus servorum Dei. Para entender a Igreja, é claro que, sem negar nem o povo nem seu pastor supremo, uma coisa é "começar pelo papa" e outra é "começar pelo povo".
Karl Rahner nos anos 1970, por ocasião do centenário do Vaticano I, e quase 30 anos depois dele E. Benvenuto, no texto que citei no início, e que continua sendo uma "pérola evangélica" na reflexão do final do século passado, destacaram o problema que a definição de 1870 levanta no plano estritamente epistemológico. Por um lado, de fato, parece estender à Igreja aquele "autotestemunho" que somente pode ser afirmado de Cristo em sentido estrito. Estender uma prerrogativa singularíssima reservada ao Filho de Deus para a Igreja e o Papa é uma operação ousada e arriscada.
Por outro lado, a série muito apurada de "condições" às quais está subordinada a "operatividade garantida" da infalibilidade papal esclarece perfeitamente que o equilíbrio entre "auto implicação" e "fundamento" é bastante difícil de manter. O fato de, em 150 anos, tenha-se recorrido apenas uma vez à fórmula técnica da "infalibilidade papal" – em 1950, para a Assunção – mostra o valor mais simbólico do que efetivo do pronunciamento. Ao dizer mais poder do que ato, afirma uma autoridade pelo menos “em potência” incondicional e intrínseca, mas também reconhece, "em ato", todas as condições extrínsecas e não disponíveis, que historicamente contribuem para determiná-lo.
Que o Papa, sob certas condições, possa ser garantido de todo erro, após o Concílio Vaticano II, não pode ser o princípio de compreensão da Igreja. Vice-versa, na indefectibilidade da verdade, que pertence a Cristo e à Igreja, recuperada como vida nutrida pela oração litúrgica, pela escuta a palavra, pela articulada relação eclesial e pelo diálogo surpreendente com o mundo, ao Bispo de Roma é reservada, excepcionalmente e sob condições absolutamente definidas, uma possibilidade de interpretação autêntica e efetiva desse "determinado permanecer na verdade". Que é antes e indubitavelmente de Cristo, depois do corpo da Igreja, casta meretrix e, por fim, está em seus intérpretes autorizados e com autoridade, sobre os quais o Bispo de Roma exerce seu serviço para a unidade.
Mas, como aconteceu com o magistério em um sentido geral, também para o Papa terminou o tempo da "negação das negações", do qual faz parte também a terminologia da "infalibilidade". Como ao magistério eclesial como um todo, não é mais suficiente "afirmar a verdade mediante a condenação do erro"; assim, também para o papa, para a qualificação de "não poder dizer a coisa errada" – que lhe tenha garantido pelo dogma somente sob certas condições – substitui-se o calor vibrante da palavra bíblica, a força elementar da ação ritual, a intensidade calorosa da relação de comunhão eclesial, a profecia cheia de surpresa ao reconhecer os percursos do Espírito de santidade, que age abertamente e por vias secretas no mundo.
Podemos ter misericórdia da antiga e moderna "elefantíase" projetada sobre a infalibilidade papal, desde que saibamos reconhecer, nos passos do Concílio Vaticano II, mas já no próprio legado paradoxal do Vaticano I, que a infalibilidade mais autêntica é apenas aquela da misericórdia. É a peculiaridade não ordinária de um pastor que, no seguimento do Senhor e nos passos de Maria, possa se reconhecer e se apresentar primeiro como "miserorum miseratus".
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Infalibilidade, autoridade e história: 150 anos após uma “regulada exceção”. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU