A Odēgētria e o peregrino: quando o caminho de Inácio encontra o olhar da Mãe. Artigo de Thiago Gama

Ícone sérvio da Hodegétria, do século XIV. Atualmente no Museu Nacional da Sérvia.

Foto: Wikimedia

15 Novembro 2025

"O Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF) teme, e com razão, uma mariologia que substitua a cristologia. Mas a resposta não está em esvaziar Maria, e sim em compreender sua função cristocêntrica radical. O Papa Bento XVI, citado na Nota, alertou que o título 'Corredentora' poderia 'obscurecer' a origem divina de tudo em Cristo. No entanto, o mesmo documento, no número 64, reconhece que a cooperação de Maria tem um 'caráter materno' que 'Cristo mesmo, na Cruz, lhe atribuiu'. A solução para o impasse não está na supressão do instinto mariano do povo, mas em sua purificação e orientação. Purificação de qualquer sombra de paralelismo com Cristo; orientação para que ela cumpra, sempre e somente, sua missão de Odēgētria", afirma Thiago Gama, doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ), no artigo a seguir.

Eis o artigo.

O asfalto da BR-116 estala sob as botas pesadas, é um som seco, e repetitivo, e o som do atrito dos pés do peregrino no chão que marca a rota de um homem só – Ele saberá o quanto custará passa a planta de seus pés esta jornada. Ele saiu de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, há semanas, e tem no horizonte e no imaginário a Basílica de Nossa Senhora Aparecida, a 1.200 quilômetros, que ele jamais vira. O corpo é um vetor de dor sob a mochila puída e pesada; a mente, um campo de batalha de cansaço. Não é, em absoluto, um trajeto turístico, mas uma romaria na acepção mais visceral da palavra: a busca por um fim para um desalento que a razão não pôde selar nem resolver Ele é, no seu abandono, o homem de quem canta a melodia de Renato Teixeira, que até hoje embala o Brasil profundo.

Mas não é a voz rascante e melancólica do compositor que o acompanha, é a voz potentíssima e limpa de Elis Regina (a maior cantora/ intérprete da História do Brasil) que lhe explode nos ouvidos e na alma, uma convocação que não se esgota no som: Sou caipira, pira, pora / Nossa Senhora de Aparecida / Ilumina a mina escura / E funda o trem da minha vida. Esta mulher, Elis, é o fogo que arde no coração do peregrino, a chama que queima sem consumir o caminhante solitário. É neste ponto de fusão, entre a fé de um homem só no asfalto e a palavra fria de Roma o centro da maior e mais perene instituição religiosa do Planeta, que reside o verdadeiro cisma teológico do nosso tempo.

O Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF), em sua Nota Mater Populi Fidelis, é um documento comedido, prudente e respeitoso. Mas, como bem apontou o rigoroso professor Rodrigo Portella em sua análise publicada no do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, esta prudência em apenas desencorajar os títulos “Corredentora” e “Medianeira” – em vez de declará-los heréticos – tem um “quê de ambiguidade”, um recuo calculado diante da questão em si.

O Dicastério recua porque o Espírito Santo não é ambíguo no chão da Praça Pública, como deve ser, principalmente nos bancos universitários de Filosofia e Teologia. Mas a Mãe, Companheira do Povo, não pede permissão doutrinária para acolher. O homem que caminha desde São Leopoldo não se preocupa com o perigo ecumênico da palavra “Medianeira”; ele se agarra a ela como a última boia no dilúvio. Ele busca o olhar daquela que, segundo a canção, tem o poder de “iluminar a mina escura” e “fundar o trem da vida”. Isto, em sua essência, é uma mediação plena, uma capacidade de dar nova gênese ao destino. E o Dicastério o sabe em sua ratio bimilenar, pelo Depósito de Fé da Igreja, do qual é guardião, por isso se limita a dizer que o uso dos títulos é inconveniente, e não falso (e aqui reside, talvez, a afobação que causou revolta em muitos e, em alguns, até rancor, mas nos acalmemos, e deixemo-nos guiar nosso discernimento pelo Bom Espírito).

O risco tático do DDF é o que Portella identifica como a incoerência do critério. O Dicastério justifica sua prudência dizendo que a expressão que requer “muitas e constantes explicações” e isto se torna inconveniente para o Povo de Deus. Mas o autor, em publicação no IHU, nos força à fricção do pensamento, e ele está certo em nos convidar a este exercício intelectual: a Trindade, a Transubstanciação Eucarística e a natureza de Jesus exigem “muitas e constantes explicações” em níveis que a razão não pode esgotar, em palavras dele. O DDF, ao exigir clareza absoluta da “Mariologia” para não ofender o diálogo ecumênico (razões pastorais), entra num beco sem saída – uma aporia. Porque a fé do povo, o sensus fidei fidelis mariano que gerou o dogma da Assunção, não é como se fora uma tese de doutorado a ser depurada; é uma potência transformadora inegociável.

Essa potência é a mesma que, séculos antes, deflagrou a conversão radical de Inácio de Loyola (1491 – 1556). O jovem militar, ferido na batalha, trocou os romances de cavalaria por vidas de santos, e o que era aventura vazia se transmutou em “encontrar Deus em todas as coisas”. A peregrinação de Inácio a Montserrat, depois a Manresa, é o protótipo da caminhada espiritual que transforma o destino e refundação da vida. A Companheira Maria estava lá, como está para o peregrino do Sul. Ela é a Apresentadora do Filho (a Odēgētria), mas também a porta de entrada para a conversão total. A espiritualidade da companheira, da Medianeira, não é uma teologia de acréscimo à redenção de Cristo, mas uma teologia da proximidade, e assim deve ser entendida. O peregrino não caminha para uma deusa, no seu íntimo, ele sabe muito bem disso, ele sabe que o Corpo Sagrado de Cristo recebido na Santa Hóstia é o Corpo de Cristo, é o próprio Padre quem o declara em bom som aos seus ouvidos, no entanto, para uma mulher onde o coração arde ao compasso da fé, uma Mater Populi fidelis que não tem depósito de graça separado de Deus, cujo ventre foi o canal por onde a graça entrou no mundo. Sejamos humildes, por um milésimo de segundo, e compremos esta história pelo seu valor de face, mesmo ateus, apenas por exercício intelectual de abstração puro. Se Jesus é Filho de Deus, e tem comunhão perfeita com o Pai que lhe gera e é, ao mesmo tempo, Verdadeiramente Homem e Verdadeiramente Deus, o que Maria gestou em seu ventre foi um mistério maior do que a matéria escura do Universo, algo para o qual os físicos não tem resposta até hoje.

O DDF corretamente afirma que o único mediador é Cristo, e que a mediação de Maria é subordinada, participada e maternal. Mas esta maternidade, como o Papa Francisco insiste, não é um obstáculo. É a intercessão que a torna a Advogada de graça (como canta a Liturgia). Ela não dá a graça santificante, mas dispõe o coração para recebê-la. Fazei o que Ele vos disser, diz a Mãe em Caná.

Naquele momento, no Rio Grande do Sul, Elis Regina, com sua voz que funda o trem da vida, é o impulso interno do Espírito Santo (a graça atual) de que a teologia fala. A música é o testemunho de caridade que ilumina a mina escura.

A teologia da Apresentadora do Filho não é um erro. A Companheira Maria nos ensina a amar segundo o amor de Jesus, como ensinava Santa Teresa D'Ávila (1515 – 1582), que via na humanidade de Cristo o caminho para o misticismo. Elis Regina, com a voz que atravessou gerações em tempos de ditadura militar, e é ouvida até o ano da Graça de 2025, é a expressão simbólica desse feminino protológico, o typos (figura exemplar) que Portella menciona.

O coração do peregrino arde, não pela letra fria do DDF, mas pela lógica quente do mistério: se Ele não quer que caminhemos sem uma Mãe, então o caminho, mesmo o asfalto, está fundado no amor d'Ele. O silêncio que a Lei impõe ao título é o som mais alto da Praça Pública, da estrada, e do Universo. É a permissão implícita para o caipira continuar a sua romaria, sabendo que a Companheira está na dobra do seu manto a envolver o pobre homem, que representa, ali, a humanidade inteira.

A chuva chega sem aviso, cortante como lâmina, e o asfalto escuro da serra gaúcha transforma-se em um rio negro e traiçoeiro, o peregrino encolhe os ombros sob o nylon fino da capa, cada gota um impacto preciso contra sua vontade já gasta. Seus pés, dentro das botas encharcadas, são agora apenas um peso distante, uma massa de dor que se arrasta. Todos sabem que a primeira derrota de um soldado de infantaria numa coluna de exército é ter seus pés inundados de água, as feridas serão iminentes, paralisando-o. É neste fundo do poço, quando o corpo já é pura resistência (e somente resistência), que a melodia irrompe com uma força tectônica e implacável, arrastando e enxugando os pés num ato de puro milagre. Não é mais um som nos ouvidos; é uma pulsação visceral, um ritmo primordial que vence o estampido da água. É de sonho e de pó / O destino de um só. A voz de Elis não consola – afirma. Ela não nega o pó, a solidão, o destino estreito. Ela os assume como matéria-prima. E no olhar do homem, fixo na linha infinita e molhada do asfalto, há um clarão. Ele não é um derrotado; é um , e há uma dignidade colossal nisso.

Enquanto isso, na segurança dos escritórios romanos, o Dicastério para a Doutrina da Fé elabora sua Nota com a precisão de um relojoeiro ou um ourives. No número 37, afirma: “A maternidade espiritual de Maria brota da sua maternidade física do Filho de Deus. Gerando fisicamente a Cristo, a partir da aceitação livre e fiel desta missão, a Virgem gerou na fé todos os cristãos que são membros do Corpo Místico de Cristo”. É uma verdade sublime, um princípio teológico de imensa beleza. Mas como traduzi-lo para a linguagem de um homem cujos ossos doem e cuja fé se reduz ao próximo passo? Como dizer a um agricultor que cursou somente o terceiro ano primário, numa escola do interior do Rio Grande, palavras tão carregadas de erudição, que dobra até teólogos experimentados?

A resposta, mais uma vez, reside nas dobras da poesia da canção. Gerar na fé não é um ato metafísico ocorrido num passado imemorial; é o ato contínuo de “iluminar a mina escura” do presente, de “fundar o trem” de uma vida que desabou. A geração espiritual, para o DDF, é um dogma. Para o peregrino, é o fato de ainda conseguir levantar o pé da lama, agora seco, que pediu permissão ao seu Sr., como em Caná, para retirar as feridas daqueles pés inundados de água.

O milagre absoluto veio de Cristo e Deus Pai unidos em perfeita harmonia, e isto nunca esteve em discussão. Mas assim como uma Companheira de viagem, Maria pode pedir, como pediu em Canã: “Não abandone meus filhos!” Aqui não se trata de adentrar em especulações teológicas desencorajadas pelo documento da DDF, trata-se de pura humanidade, de fé e crença real. E, perdoem-me: documentos não tem o poder de reverter milênios de costume e Companhia secular de um povo pobre. Que compreende que o Pai é Abba, mas que entende, também, que a Mãe é Theotokos, aquela que é “Portadora de Deus”, assunto já tratado no Concílio de Éfeso em 431 d.C. A DDF não invalida nada disso. Ela não provoca escândalo nem aporia filosófica. Tudo sempre esteve onde era para estar. Tenham ouvidos para ouvir, e quem quiser, ouvirá!

Rodrigo Portella, em sua arguta análise, atinge o ponto fraco desta desconexão. Ele pergunta, com a fina ironia do scholar“qual a conveniência – já que a Nota doutrinal Mater Populi fidelis usa tal substantivo, de ares adjetivos, para certos títulos/devoções marianas, a acrescentar o prefixo in à palavra -, repito, qual a conveniência de um tal documento, de tão zeloso esclarecimento?”. A pergunta ecoa no vazio da serra. A “inconveniência” do Dicastério é a única conveniência possível para o homem da estrada. O título “Medianeira” pode ser linguisticamente perigoso, pode exigir “muitas e constantes explicações”, mas ele é o atalho direto para o coração que sofre. Ele não quer explicações; quer a Companheira, e a Companheira, na acepção mais divina desta palavra é uma via de mão única: Cristo!

É aqui que a sombra de Inácio de Loyola (Iñigo) se faz presente outra vez, não como o santo glorioso, mas como o homem quebrado na cama de sua casa em Loyola. A bala de canhão que estilhaçou sua perna não foi apenas uma ferida física; foi a demolição de um projeto mundano, na dor insuportável e no tédio da convalescença, ele não pediu os tratados de Escoto ou os debates sobre a Imaculada Conceição. Ele pediu vidas de santos. E foi na história desses homens e mulheres, na narrativa de suas lutas e de sua proximidade com o Divino, que ele encontrou o germe de sua própria conversão. A leitura foi, para Inácio, o que a voz de Elis é para o peregrino: uma mediação poderosa, uma Odēgētria que não explica Deus, mas que o aponta de forma irresistível, diria mais: irreversível.

A mediação dos santos, e de Maria de modo iminente, não é um desvio da mediação única de Cristo – é sua encarnação na trama da história humana, é sua tradução para a linguagem das dores e das esperanças concretas. O DDF, no número 54, tenta proteger este mistério: “Na perfeita imediatez entre um ser humano e Deus na comunicação da graça, nem mesmo Maria pode intervir. Nem a amizade com Jesus Cristo, nem a inabitação trinitária podem conceber-se como algo que nos chega através de Maria ou dos santos”. É uma afirmação ortodoxa e crucial. A graça santificante, a justificação, é obra exclusiva de Deus, que “illabitur animae” – penetra, desliza suavemente na alma –, como lembrava São Tomás de Aquino (1225 – 1274). Porém, o mesmo DDF, no número 38, abre uma fresta de luz: “São João Paulo II relacionava o título de “medianeira” com esta função de intercessão materna, porque ela ‘põe-se de “permeio”’, isto é, faz de mediadora, não como uma estranha, mas na sua posição de mãe, consciente de que como tal pode ― ou antes, “tem o direito de” ― fazer presente ao Filho as necessidades dos homens”. Este “direito” não é jurídico-eclesiástico, não está no Código de Direito Canônico Stricto Sensu; é o direito do amor, o direito conquistado ao pé da Cruz. É o direito que a voz de Elis Regina invoca quando canta, não como uma súplica, mas como um grito de confiança filial que só Elis Regina poderia fazer – Ela, e somente ela. E quanta falta faz Elis...

A chuva começa a ceder. O peregrino sente o peso da água em suas roupas, mas um calor estranho brota em seu peito. Me disseram, porém, que eu viesse aqui / Pra pedir de romaria e prece / Paz nos desaventos. Ele não sabe rezar com as palavras dos livros, ele sequer conhece a Ave-Maria em latim, que nada mais é do que a saudação do Anjo Gabriel ao receptáculo do maior Dom da Humanidade. Sua oração é o seu olhar cansado, o seu corpo em movimento, a melodia que o habita. Ele é a encarnação do sensus fidei fidelis, aquele senso da fé do povo fiel que, como recorda Portella, foi a força motriz por trás de dogmas como o da Assunção. A Igreja, em sua sabedoria, não o censura. A Nota do DDF, em sua ambiguidade calculada, acaba por lhe dar razão ao não condenar, mas apenas desencorajar. É um silêncio que fala mais alto que mil palavras. É o reconhecimento tácito de que, no fim, a teologia que importa é a que se caminha, não a que se escreve. Ele intui o verso, com sua sensibilidade absoluta do poeta espanhol Antonio Machado (1875 – 1939): “Caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao caminhar.”

A noite desce sobre o vale do Paraíba como seu manto pesado, e com ela chega o frio que ossos já cansados sentem como uma agressão íntima, o medo dos perigos de não enxergar bem petrifica o nosso peregrino-caminhante, ele se abriga sob a marquise de um posto de gasolina abandonado, onde não há uma viva alma, encolhido contra a parede de concreto que ainda guarda um vestígio de calor do sol que se foi. Seus dedos, enregelados, mal conseguem abrir a lata de sardinhas que é seu jantar. É neste momento de fragilidade extrema, quando o corpo já não é mais um instrumento de devoção, mas um fardo de carne sofredora, que a teologia abstrata mostra sua insuficiência. Ele não precisa, naquele instante, da definição precisa de “mediação participada”. Ele precisa do olhar de uma Mãe. Ele precisa de seu indicador em riste: Aquele que vês é o Pão da Vida, Só Ele é o Caminho a Verdade e a Vida. Faça como eu o faço, diga um “Sim” inequívoco a Ele. Esta operação mental que advém do puro milagre da graça pode ser prescrutada pela mais refinada teologia da Universidade Gregoriana, em Roma. Mas sentida? Não! Posto que o mestre de Loyola foi categórico:

“Não é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas o sentir e saborear as coisas internamente”. E aqui Inácio, mais de quinhentos anos antes, mata a charada inteira e a falsa aporia entre Maria Co-Redenptrix, que a DDF pede cautela, a devoção popular, a Teologia especulativa sobre a Mariologia. Saboreie e Sinta. É o que diz o Fundador da Companhia. Ele ecoa Paulo com eloquência: “Ainda que falasse a língua dos homens e dos Anjos, sem amor, eu nada seria”. 

E esse olhar lhe chega, mais uma vez, através da canção que se tornou o mantra desta viagem. O meu pai foi peão, minha mãe solidão / Meus irmãos perderam-se na vida / A custa de aventuras. A voz de Elis não canta uma realidade alheia, canta a biografia do homem encolhido sob a marquise. É a sua história de abandono e perda que é elevada ao patamar de oração. E então, o refrão: Ilumina a mina escura. A “mina escura” não é uma metáfora literária, é o poço de desespero que se abre a seus pés na solidão da noite. É a escuridão que o documento do DDF, em seu número 69, reconhece tacitamente ao admitir que Maria, com sua intercessão, pode implorar as “graças atuais” – aqueles “impulsos internos do Espírito Santo” que sustentam o justo e preparam o pecador.

Aqui reside uma das fricções mais produtivas entre a caminhada do peregrino e a letra da Nota. O DDF, temeroso de um maximalismo mariano que obscureça a Cristo, insiste repetidamente que Maria não é uma “causa secundária” na comunicação da graça santificante. A graça, diz o número 50, citando o Catecismo, é “o dom gratuito que Deus nos faz de sua vida infundida pelo Espírito Santo na nossa alma”. É uma operação divina, íntima e imediata. Nenhuma criatura, nem mesmo a mais excelsa, pode ser o canal necessário desta comunicação. Portella, com sua perspicácia habitual, aponta a incoerência: se o critério para banir um título é exigir “muitas explicações”, então o próprio dogma da Assunção, ou a natureza hipostática de Cristo, seriam “inconvenientes”. O Dicastério, ao tentar proteger o mistério, acaba por criar uma aporia pastoral.

O peregrino, porém, resolve a aporia com a simplicidade de quem vive o mistério com a carne, não somente na letra fria do Código de Direito Canônico. Ele não concebe Maria como um canal necessário, no sentido filosófico do termo. Ele a experimenta como uma presença indispensável, no sentido amoroso, assim como um namorado sente a falta do objeto desejante a ponto de perder o fôlego, ou quando como um pai não consegue enxergar os ponteiros do relógio de sua sala quando o filho adolescente está na rua à noite, em alguma festa. São manifestações distintas de amor que a Língua Portuguesa não captura em sua inteireza, mas que o Peregrino sente com uma paixão que ressoa a flecha flamejante que Santa Tereza D’Ávila recebe de Deus em seu coração – é um amor gozoso.

É a diferença fundamental entre uma tese e um abraço. Quando a voz da cantora explode em seu peito – E funda o trem da minha vida –, ele não está pensando na distinção entre graça santificante e graça atual. Ele está experimentando a força para se reerguer e continuar caminhando ao amanhecer. Esta força, a teologia pode classificar como “graça atual”, um auxílio para perseverar. Para ele, é simplesmente a mão da Mãe que guia. Que Mãe daria pedras ao invés de Pão quando seu filho clama faminto por alimento? Maria oferece o pão que sacia eternamente – Jesus.

Santa Teresa D'Ávila, a doutora da oração, compreendia essa linguagem. Em seu Caminho de Perfeição, ela ensina a buscar a humanidade de Cristo como portal para o divino. “Pelo homem, chega-se a Deus”, dizia. A humanidade de Jesus é o caminho, e quem melhor que Maria, a Theotokos, a que gerou esta humanidade santíssima, para nos apresentar este caminho? Ela é a Odēgētria por excelência, aquela que, como descreve a Nota no número 11, “mostra, apontando com sua mão, o único Caminho que é Cristo”. O peregrino, em sua ignorância teológica, é um teresiano perfeito. Ele não se relaciona com um conceito de “Mediação”; ele segue o dedo que aponta para Jesus. A voz de Elis Regina é, para ele, esse dedo apontando.

E o que ela aponta? Aponta para o mesmo Cristo que Inácio de Loyola encontrou não nos livros de teologia, mas na experiência crucificante de Manresa. Lá, Inácio foi despojado de tudo, até de suas próprias consolações espirituais, foi purificado na noite escura – e foi nessa “mina escura” fundamental que ele descobriu o fundamento de sua vida, a “pedra fundamental” sobre a qual construiria a Companhia de Jesus. A experiência de Inácio é a radicalização da experiência do peregrino: a peregrinação exterior que se torna uma descida aos infernos interiores, onde apenas a fé mais nua sustenta. E em nenhum momento dos seus escritos Inácio deixa de recomendar a devoção a Maria, a “Nossa Senhora”, colocando-se sob seu amparo. Ele intuiu que aquele que nos leva ao abismo é o mesmo que nos envia uma Mãe para não nos perdermos nele.

O DDF, no fundo, tenta proteger esta verdade. Ao desencorajar os títulos que poderiam fazer de Maria uma co-protagonista na obra da Redenção, quer, em última análise, salvaguardar que é Cristo, e apenas Cristo, o Fundamento, o Trem da Vida. O peregrino, com sua vida, testemunha que esta proteção é válida. Ele não vai a Aparecida para encontrar Maria em vez de Cristo; vai porque sabe que, encontrando-a, ela o levará inevitavelmente a Ele. É a lógica de Caná, reafirmada pelo Papa Francisco e citada na Nota: “Fazei o que Ele vos disser”. A ordem final é de Cristo. Maria é a que prepara o coração para ouvi-la. A voz de Elis, nesse sentido, é um ato de obediência mariana: ela não para em si mesma; ela impele o homem para a frente, em direção ao encontro final.

A noite é longa e o frio penetrante. Mas dentro do peito do homem, a música arde como uma fogueira. Sou caipira, pira, pora. Ele é o pobre, o simples, o que não sabe rezar. Mas ele tem uma Mãe. E ela está iluminando sua noite. Esta é a teologia que não se escreve em documentos, mas que se caminha com os pés sangrentos. É a teologia que o DDF, no seu zelo doutrinal, hesita em abraçar totalmente, mas que não ousa condenar. Porque condená-la seria condenar o próprio Espírito que sussurra no coração dos pequenos.

O amanhecer revela uma geada prateada sobre a grama à beira da estrada. O peregrino se movimenta com dificuldade, seus músculos protestam contra a noite de frio, cada passo é uma sentença, uma afirmação de um propósito que transcende a dor. Ele já não pensa em Aparecida como um ponto no mapa; ela se tornou uma pulsação interna, um ímã que recalibra seu próprio norte. E, novamente, a canção o invade, mas agora com um novo verso que ressoa com a paisagem gélida: Descabei, joguei, investi, desisti / Se há sorte eu não sei, nunca vi. É a confissão do fracasso, do esgotamento de todas as estratégias humanas. É o “despojamento” do qual falam os místicos, a noite escura onde todas as luzes se apagam para que apenas uma possa brilhar. É o quarto voto de obediência inaciano, a última e derradeira provação. A obediência estrita a Cristo que não invalida Maria, mas a torna um poço de energia para que o Jesuíta se torne a própria forja do seu dever. Ide e espalhai o Evangelho até os confins da Terra. Ou não foi em cumprimento estrito a este mandato que São Francisco Xavier (1506 – 1552) foi parar no Japão e na China em pleno século XVI?

Esta experiência de despojamento radical é o terreno fértil onde a delicada distinção feita pelo DDF entre “intercessão” e “mediação da graça” pode, finalmente, ser compreendida não como uma negação, mas como um refinamento. A Nota, no número 46, é precisa: “a maternidade de Maria na ordem da graça deve entender-se como dispositiva. [...] a sua presença materna nas nossas vidas [...] nos ajuda a dispormo-nos à ação de Cristo no Espírito Santo”. Maria não  a graça; ela dispõe. Ela aplaina o terreno do coração. Ela é como a voz de Elis Regina que, ao cantar a desesperança do homem, não a remove, mas a transforma em um grito de esperança. A voz não é a água; é o copo que a mão sedenta leva aos lábios. Maria é a poesia de Deus que Ele escolheu para dar á luz ao seu Filho Unigênito.

Rodrigo Portella, a partir de uma perspectiva simbólica, já havia vislumbrado essa verdade. Ele escreve: “Maria é mais que uma personagem histórica, pois que é figura protológica, typos, ícone, figura exemplar (...) sua figura apontaria para um amplo universo mediador do sagrado”. O peregrino, em sua simplicidade, é um exegeta desse “universo mediador”. Ele não discute se Maria é “Medianeira de todas as graças”; ele a experimenta como aquela que, na estrada escura, lhe oferece a melodia que ilumina seu caminho. Esta melodia é uma “graça atual”, como dissemos anteriormente, um auxílio que o dispõe a continuar, a crer, a esperar. É a realização prática, no asfalto da BR-116, do que o DDF define com termos técnicos.

É profundamente significativo que o próprio documento, no número 77, ao descrever a piedade popular, encontre sua linguagem mais lírica e verdadeira: “Os pobres “encontram a ternura e o amor de Deus no rosto de Maria. Nela veem refletida a mensagem essencial do Evangelho”. Esta frase, citando a Conferência de Aparecida, é a chave de abóboda que reconcilia a doutrina com a devoção. O peregrino não é um teimoso que se apega a títulos condenáveis; é um pobre que encontrou no rosto da Mãe o reflexo do amor de Deus. A “mensagem essencial do Evangelho” que ele vê refletida em Maria é a da compaixão, da proximidade, da opção pelos pequenos. É o Deus que, em Jesus, se fez caipira entre os caipiras, que podendo nascer num palácio, escolhe uma estrebaria entre animais, que é rejeitado por tudo e por todos. É o Rei dos Rei nascido como enjeitado pelo mundo que não o acolhe. Ele mesmo declarará várias vezes que o Filho do Homem não tem senão apenas uma pedra a recostar a sua cabeça.

Aqui, a figura de Inácio de Loyola retorna com força total. Os Exercícios Espirituais são, antes de tudo, um método de “disposição”. A oração, as meditações, as contemplações, não são fins em si mesmas; são atos que dispõem a alma para que Deus nela possa atuar livremente, é ato puro de gênio psicanalítico feito no alvorecer da modernidade do século XVI – e isto é desconcertante para um historiador que se debruça sobre esta obra.

A “Primeira Semana”, com seu foco no pecado e na misericórdia, visa dispor o exercitante para o arrependimento. A “Eleição” visa dispor a vontade para um discernimento puro. Inácio, mestre da disposição, recomenda insistentemente colocar-se sob o patrocínio da “Mãe de Deus e nossa Senhora”. Ele intui que ela é a disposição personificada, o “sim” perfeito que preparou o advento do Verbo. O peregrino, em sua romaria, está realizando um longo e doloroso exercício espiritual de disposição. E sua “Nossa Senhora” é a canção que o sustenta.

O DDF teme, e com razão, uma mariologia que substitua a cristologia. Mas a resposta não está em esvaziar Maria, e sim em compreender sua função cristocêntrica radical. O Papa Bento XVI, citado na Nota, alertou que o título “Corredentora” poderia “obscurecer” a origem divina de tudo em Cristo. No entanto, o mesmo documento, no número 64, reconhece que a cooperação de Maria tem um “caráter materno” que “Cristo mesmo, na Cruz, lhe atribuiu”. A solução para o impasse não está na supressão do instinto mariano do povo, mas em sua purificação e orientação. Purificação de qualquer sombra de paralelismo com Cristo; orientação para que ela cumpra, sempre e somente, sua missão de Odēgētria.

O sol já está mais alto, aquecendo os ossos do caminhante. Ele olha para a estrada à sua frente, e pela primeira vez enxerga não uma penitenciária, mas um caminho. Ilumina a mina escura. A mina foi iluminada, não porque a dor tenha cessado, mas porque ela foi dotada de sentido. A luz não é sua; é emprestada, refletida, como a luz da lua. É a luz d'Aquela que ele invoca, e que ele, sem saber, já obedece, pois continua a caminhar. Ele é a prova viva de que a teologia mais segura é aquela que, no final, se ajoelha diante do mistério do amor de Deus que se comunica através de uma Mãe, de uma canção, e da poeira da estrada. Ele chegará em Aparecida, ciente de que foi acompanhado por Maria durante todo o seu caminhar, e que lá, ela Apontará: Eis o meu Filho. Fazei Tudo o que ele Vos disser.

“Que fiz por Cristo? Que faço por Cristo? Que farei por Cristo?”

Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola. § 53 (Oração para Obter o Amor do Senhor)

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