07 Abril 2021
A Igreja deve tornar a vida das pessoas mais fácil, e não mais difícil. Essa frase condensa as divergências entre dois dos maiores teólogos católicos do mundo, o suíço Hans Küng, 79, e o alemão Joseph Ratzinger, 80, o papa Bento XVI -para quem a Igreja deve ser uma comunidade, se preciso for, de poucos, mas de bons e fiéis.
Em entrevista concedida a Leandro Beguoci, enviado especial do jornal Folha de S. Paulo a São Leopoldo, na Unisinos, ele diz que proibir métodos anticoncepcionais é ser co-responsável por um eventual aborto e que o celibato de padres é algo medieval. Küng ainda critica a visita do papa ao Brasil, por impor sua força em estabelecer padrões de moral sexual.
O teólogo chegou ao Brasil no sábado, quando concedeu esta entrevista exclusiva cujos principais trechos estão abaixo. Durante a semana, falará sobre seu tema predileto - a relação entre religiões e ética mundial- em sete conferências em seis cidades: São Leopoldo (RS), hoje, Porto Alegre e Curitiba, amanhã, Brasília na quarta e na quinta, quando irá à Câmara dos Deputados e deve se encontrar com o presidente Lula; ainda na quinta vai ao Rio e a Juiz de Fora (MG), na sexta.
Apesar do encontro cordial que teve com o papa em 2005, a relação entre Küng e a Igreja Católica ainda não é estável. Ele não falará em nenhuma PUC (Pontifícia Universidade Católica). Sua vinda é patrocinada, principalmente, pela Universidade Federal do Paraná e pelo Instituto Humanitas Unisinos, ligado aos jesuítas.
Uma das frases mais conhecidas do sr. diz que só haverá paz no mundo quando houver paz entre as religiões. A humanidade precisa de religião para ter paz?
Há muitos argumentos contra a religião. Um deles é que ela legitima e provoca guerras, preconceitos, violência. Por outro lado, as religiões também têm uma função positiva. João Paulo II oi contra a guerra no Iraque. Onde as religiões estiveram favoráveis à paz, propiciaram a paz. As religiões podem ser instrumentalizadas, assim como a música.
No início de seu pontificado, Bento 16 sugeriu que o islamismo é uma religião violenta.
Acho que ele sabe que cometeu um erro. Afinal, ele sempre se ocupou muito pouco do Islã, dedicou todo o seu tempo para estudar os teólogos católicos. Da mesma maneira que existe muita violência na história do Islã também existe na história do cristianismo. O papa aprendeu com o erro. Na visita à Turquia, visitou a mesquita Azul [a mais importante de Istambul], onde prestou seu respeito à religião islâmica.
Por que quem não tem religião deve se preocupar com isso?
Hoje, constatou-se que a religião é um fator político e que ignorá-la é um erro. Ela mobiliza milhões de pessoas. Condeno posições extremas.
Uma delas é a religiosidade agressiva. Ela condena a separação entre Estado e religião, como os islâmicos que procuram transformar todo o povo muçulmano em extremista e como os imperialistas da Igreja Católica Romana que querem fazer da Europa, no sentido de João Paulo 2º, um continente católico, como se todos os países devessem ser a Polônia.
Outra posição extrema é a excessivamente laicizante. Alguns franceses laicistas ainda não conseguiram digerir a Revolução Francesa. Essa é uma das posições tomadas no Parlamento Europeu por pessoas que se manifestaram contra a menção ao cristianismo como uma das raízes da Europa. A posição correta seria a que reconhece a importância da religião, mas não faz dela um fator de dominação.
O sr. defende a idéia de uma ética mundial, válida para crentes das mais diversas religiões, além dos ateus. Essa tese tem receptividade no Vaticano?
O papa também quer o diálogo entre as religiões. Quando estivemos juntos, discutimos esse ponto. Algo concreto que se pode fazer, e isso o papa também deseja, é uma nova forma de associação das lideranças religiosas mundiais que poderiam, juntas, afirmar princípios éticos comuns.
Essa é a idéia do projeto de ética mundial que defendo. O princípio básico de que você não deve fazer ao outro aquilo que não quer que ele lhe faça é comum a várias religiões e a muitas pessoas não-crentes.
Ainda há quatro princípios importantes. O primeiro é não matar, e isso não vale só para quando se discutem questões como a do aborto, mas também para as guerras, para as favelas do Rio e para a periferia de Berlim.
O segundo é não mentir, o terceiro, não roubar, e o quarto, não abusar da sexualidade.
Não se vai resolver o problema da violência apenas com recursos policiais. Devemos mostrar esses princípios nas escolas, dizendo que eles não vêm de cima para oprimir os jovens, mas vêm para libertá-los.
Quando o papa esteve no Brasil em maio deste ano, ele não se reuniu com líderes das igrejas evangélicas pentecostais. Como construir esse consenso com religiões que se comportam como rivais?
Seria muito bom que o papa tivesse encontrado os líderes dessas religiões. Ele teria ouvido, muito provavelmente, quais são os pontos fracos da Igreja Católica, por que perdeu tantos fiéis. Como é que se pode pensar que não vão surgir várias comunidades menores quando, em São Paulo, há um padre para 200 mil pessoas?
Um fator que dificulta o surgimento de novos padres é exatamente essa lei medieval do celibato. A Igreja precisa repensar essas coisas. Quando se toma uma posição de que a missa precisa ser celebrada segundo os preceitos romanos, acaba sendo muito chato. Por outro lado, você tem cultos dos pentecostais que são muito mais animados na sua liturgia, com gestos, canções. Quando a gente simplesmente imita essa liturgia, não é bom. Mas aproveitar elementos é bom.
Muitos atribuem a perda de fiéis no Brasil à teologia da libertação, que teria se preocupado mais com a pobreza do que com a alma.
A teologia da libertação foi uma das primeiras que falou de uma participação popular na liturgia. Se ouvesse tido mais espaço para ela na América Latina, provavelmente teríamos muito menos pentecostais.
Mas, desde o início, fui crítico em relação à predominância de elementos marxistas na teologia da libertação, em relação às ilusões de que se poderia ter uma grande revolução.
Quais são os maiores desafios da Igreja e deste papa?
O grande desafio da Igreja é não retroceder. O desafio do pontificado seria trazer novos impulsos para isso. Mas, até o momento, não aconteceu. Não se pode ignorar que nós, da Igreja Católica, , estamos em meio a uma grande crise. Manifestações do papa, como foram feitas no Brasil, mostram simplesmente a fachada de uma Igreja que nas suas estruturas mais profundas está em uma situação muito difícil.
O que o sr. tem em comum com Bento XVI?
Nós dois sempre servimos à mesma comunidade de fé cristã e sempre buscamos um cristianismo autêntico.
A diferença se refere principalmente ao método. O papa defende o modelo romano como o único para todas as igrejas, seja na China ou na América Latina, o que, para mim, não é católico, no sentido de católico como algo universal. Minha opção é por um modelo pautado no Evangelho, no Novo Testamento, e isso possibilita muito mais o diálogo com as igrejas pentecostais e protestantes.
Há muitas católicas que fazem aborto. Que tipo de resposta a Igreja deveria dar a elas?
A solução não está nem em permitir tudo nem em reprovar tudo. Se o objetivo é evitar o aborto, o que é muito desejável, então seria preciso favorecer os métodos anticoncepcionais. Quem proíbe esses métodos é co-responsável pela existência de tantos abortos.
É tarefa da Igreja encontrar uma posição intermediária entre o tudo é permitido e o tudo é proibido, para trazer as pessoas para uma posição intermediária nas suas vidas. Esse caminho do meio seria, no caso de uma mulher que se vê diante da questão do aborto, tomar ela mesma a decisão. Depois, que ela não ficasse sofrendo problemas de consciência e de culpa, mas se visse satisfeita pela decisão. Mesmo segundo a teologia moral tradicional, uma consciência que comete um erro está justificada. A Igreja deve tornar a vida das pessoas mais fácil, e não mais difícil.
E aos homossexuais?
Também há posições extremas, ambas erradas. Por um lado, seria um erro ignorar que existem propensões homossexuais. No que diz respeito à vida individual, não cabe à autoridade clerical decidir.
Outra posição extrema é a que transforma a homossexualidade em um motivo de propaganda ou de exibicionismo e, por isso, muitas manifestações homossexuais não contribuíram em nada para a visão mais correta desse tema justamente porque se mostram de uma maneira desavergonhada, que repercute mal na opinião pública.
Há espaço para o debate sobre esses temas dentro da Igreja?
A verdade última pertence apenas a Deus. É impossível para qualquer ser humano, desde o fiel mais simples até o papa, dispor integralmente da verdade. É claro que existem algumas verdades realmente válidas, como esses princípios éticos que valem como consenso para toda e qualquer pessoa. Agora, há várias maneiras para se aplicar uma verdade. É natural que haja controvérsias sobre isso na Igreja. No que diz respeito às verdades complexas, não poderia ser simplesmente resolvido por uma ditadura, mas no debate. Se o papa se pronuncia contra a ditadura do relativismo, também precisaria ter claro que muitas pessoas têm muito mais medo é de a ditadura do absolutismo, que muitas vezes vem de Roma.
Que tipo de relação o sr. tem com o papa?
Durante o pontificado de João Paulo II [1978-2005], tivemos uma relação muito tensa, ou nenhuma. Eu esperava muito que Ratzinger reagisse positivamente à carta que lhe enviei logo depois da sua eleição, pedindo uma conversa aberta, que João Paulo II jamais me concedeu. As nossas relações, hoje, estão muito mais distensionadas. Ele sabe que não abro mão de fazer críticas, mas posso fazê-las de maneira muito mais solidária. A posição dele é muito diferente da de seu antecessor. Mandei o segundo volume das minhas memórias para Roma e recebi uma resposta muito amigável.
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“A Igreja deve tornar a vida das pessoas mais fácil”. Entrevista com Hans Küng - Instituto Humanitas Unisinos - IHU