07 Outubro 2020
Reportagem revela: decisão de dificultar aborto legal saiu a pedido de ONG envolvida no caso da menina capixaba. É a mesma que recebeu, via Michelle Bolsonaro, dinheiro desviado do combate à covid. E mais: a operação-abafa de Trump.
A reportagem é de Maíra Mathias e Raquel Torres, publicada por Outra Saúde, 05-10-2020.
O Ministério da Saúde admitiu que a portaria que dificultou as regras para a interrupção legal de gestações foi editada para agradar o movimento antiaborto. A pasta respondeu ao jornal O Globo que foi “provocada” por “entidades da sociedade civil” e pela… Defensoria Pública da União. Isso porque a DPU representou a Associação Virgem de Guadalupe e, ao longo do ano, fez três pedidos para que o ministério revisasse a portaria que até então estava em vigor, editada em 2005.
O nome soa familiar? Pois é. A Associação Virgem de Guadalupe é uma das ONGs que recebeu do programa Pátria Voluntária parte do dinheiro doado pelo frigorífico Marfrig ao governo federal para a compra de testes para detecção do novo coronavírus. Foram R$ 14,6 mil.
A entidade ganhou o noticiário também por outro motivo: participou da reunião na sede da prefeitura de São Mateus (ES) que, segundo a Folha, teria sido articulada pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos como parte da pressão para que a criança capixaba de dez anos não tivesse acesso ao direito de interromper a gestação, fruto de estupro. Ao Globo, a presidente da ONG, Mariângela Consoli, admitiu ter participado do encontro, mas disse que “ninguém tocou no assunto” de manutenção da gravidez de risco. Ao jornal, ela também disse que não sabe de onde surgiu a indicação para que a ONG que comanda recebesse recursos do Pátria Voluntária. Segundo outra apuração da Folha, os R$ 7,5 milhões da Marfrig teriam sido distribuídos a ONGs ligadas à ministra Damares Alves.
No caso da derrubada da portaria que estabelecia procedimentos para o aborto legal, é visível a guinada do Ministério da Saúde. Em abril, nos últimos dias da gestão Mandetta, o departamento responsável pelo tema chegou a responder que a demanda de mudança na norma deveria ser encaminhada ao Conselho Nacional de Saúde. Em agosto, já sob Pazuello e depois do caso da criança capixaba, o Ministério decidiu ceder, dificultando o acesso ao aborto legal
A essa altura, a atuação da Associação Virgem de Guadalupe via Defensoria foi reforçada pelo esforço de outra entidade, o Instituto de Defesa da Vida e da Família, que encaminhou ofícios pela mudança nas regras não só para o Ministério da Saúde, mas também para a Presidência da República.
Foi, então, uma questão de tempo: entre o pedido do Instituto e a mudança na norma se passaram apenas oito dias. Coube ao obstetra Antônio Rodrigues Braga Neto, nomeado pelo general Pazuello, dar o sinal verde da área técnica. No dia seguinte, 28 de agosto, a nova portaria foi publicada no Diário Oficial – e ela foi além dos pedidos do movimento antiaborto, importando dos EUA a obrigação de que profissionais de saúde perguntem às mulheres se elas querem ver o feto por ultrassom antes do procedimento.
Esse trecho perverso caiu no dia 24 de setembro, quando o ministério publicou uma outra portaria sobre o assunto. O Supremo estava prestes a julgar a inconstitucionalidade da norma editada em agosto. Lembramos, porém, que o texto não foi tão modificado assim, e ainda prevê que profissionais notifiquem a polícia sempre que uma vítima de estupro chegar ao serviço de saúde buscando o aborto legal sem o seu consentimento.
Ainda sobre o caso Marfrig: o ex-secretário nacional de Vigilância em Saúde, Wanderson Oliveira, rechaçou o posicionamento do Planalto de que o Ministério da Saúde não precisava de testes rápidos para detectar anticorpos contra o SARS-CoV-2 em maio. “Claro que precisava. Lançamos o Diagnostica Brasil em 6 de maio”, afirmou Oliveira à coluna Painel. E continuou: “Agora precisará mais do que nunca. Quanto mais testes fizermos melhor será para a manutenção das atividades econômicas com segurança”.
Recentemente, o governo prometeu mais uma vez testar mais. Mas os dados mostram que estamos processando menos testes. Em setembro, o número caiu 10%. Foram feitos diariamente pouco mais de 31 mil exames do tipo PCR, em contraposição a 34,4 mil em agosto.
Manguezais e restingas voltaram a ficar sem proteção na sexta-feira, quando a Justiça Federal derrubou a liminar da primeira instância que sustava as decisões do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). A decisão foi tomada pelo desembargador Marcelo Pereira da Silva. Detalhe: no ano passado, ele validou a dissolução de um assentamento da reforma agrária criado pelo Incra com a justificativa de “preservação ambiental da área”. A decisão prejudicou 53 famílias do MST, conforme apurou o repórter Rubens Valente.
Ao restabelecer as decisões do Conama tomadas na última segunda-feira, o desembargador colabora com a passagem da boiada que, além de mudar as normas de áreas de proteção permanentes, facilitou a vida do agronegócio com a flexibilização das regras para irrigação e o sinal verde para a queima de agrotóxicos.
No Estadão, especialistas discutem a judicialização do caso. Yara Novelli, do Instituto Oceanográfico da USP, lembra que esta não é a primeira vez que se tenta revogar as regras de proteção de restingas e manguezais. Houve uma investida em 2017, mas na época prevaleceu o parecer técnico. Desta vez, não houve nenhum documento do gênero respaldando a decisão, nem foi formada uma câmara técnica para aprovar novas regras, como aconteceu em 2002. Só foi levado em conta o parecer jurídico.
Nessa seara, o argumento é que as resoluções 302 e 303 do Conama, que falam sobre as áreas de proteção permanente, foram editadas na vigência do antigo Código Florestal, de 1965. “Do ponto de vista jurídico, essas resoluções não tinham validade porque não guardavam relação com o (novo) código”, explica a advogada Rebeca Stefanini, que defende a revogação. Segundo ela, já havia muitas decisões judiciais que levavam em conta apenas o novo Código, justamente por conta disso. Nesse sentido, ela sugere que os esforços para criar normas de proteção que inexistem no Código de 2012 devem ser direcionados ao Legislativo – e não ao Judiciário.
A inadequação das resoluções antigas em relação ao Novo Código Florestal é justamente o argumento da AGU contra a ação ajuizada pelo PT no Supremo. A relatora do caso é a ministra Rosa Weber.
A falta de transparência sobre o estado de saúde de Donald Trump movimentou o noticiário internacional no fim de semana. O primeiro resultado positivo para o coronavírus não foi comunicado ao público pela Casa Branca. A gravidade desse fato varia de acordo com a fonte. Segundo o Wall Street Journal, o presidente fez um teste na quinta, mas só divulgou a informação na madrugada da sexta, depois da confirmação do segundo teste. No intervalo, Trump mentiu para a rede de televisão aliada Fox News, dizendo que ainda aguardava o resultado.
De acordo com Kevin Drum, do site Mother Jones, as informações dadas pela equipe médica permitem uma interpretação mais grave. No sábado, um médico disse que Trump havia sido diagnosticado “72 horas” antes – ou seja, na quarta-feira. Nesse dia, ele participou de um evento de arrecadação de fundos e um comício. Além disso, a campanha de Joe Biden não recebeu qualquer comunicado. O democrata havia estado com Trump na véspera, no primeiro debate das eleições…
Depois da confirmação oficial, a operação-abafa continuou, desta vez sobre os sintomas. Os médicos primeiro disseram que ele estava bem. Horas depois, Trump foi internado em um hospital militar. A equipe disse que era “excesso de cuidado”. No sábado, a versão oficial continuou sendo a de que ele progredia “muito bem”, e poderia até receber alta. Dez minutos depois dessas declarações, um repórter com credenciais para cobrir de perto o presidente soltou um despacho para o resto da imprensa dando conta de que o estado do presidente vinha preocupando muito a equipe médica nas últimas 24 horas, de acordo com uma fonte próxima a Trump. A informação vinha de ninguém menos do que do chefe de gabinete de Trump, Mark Meadows.
As especulações aumentaram. De início, foi comunicado que o presidente estava recebendo o antiviral remdesivir e o coquetel de anticorpos da Regeneron – sobre o qual já falamos aqui. A droga, que oferece ao organismo versões sintéticas das proteínas produzidas pelo sistema imunológico, ainda não teve os testes completos divulgados. Segundo a empresa, o coquetel mostrou sucesso na redução da carga viral para quem ainda não tinha desenvolvido anticorpos.
As coisas começaram a ficar mais estranhas no domingo, quando a equipe médica acabou divulgando que Trump também recebeu dexametasona, um corticoide que deve ser usado apenas nos casos graves da covid-19. A leitura geral dos especialistas é de que o medicamento é incompatível com as alegações oficiais.
Mas Trump continuou firme na construção da narrativa de que está tudo bem e, na tarde de ontem, deu um passeio de carro para cumprimentar apoiadores. Dentro do veículo, que é hermeticamente fechado para prevenir ataques químicos contra o presidente, alguns agentes do serviço secreto viajaram com Trump. Um médico do próprio hospital militar criticou a irresponsabilidade do presidente no Twitter. Não foi o único.
Em tempo: Trump, que impulsionou a defesa da cloroquina mundo afora, não recebeu o tratamento comprovadamente ineficaz para a covid-19 – ao contrário de seu admirador tupiniquim.
A OMS lançou na sexta uma chamada para que os fabricantes solicitem aprovação do uso emergencial para suas vacinas.
Por aqui, o novo procedimento para agilizar o registro das vacinas que foi anunciado pela Anvisa na última quinta-feira está indo de vento em popa. A agência já recebeu documentação das vacinas de Oxford e do laboratório chinês Sinovac. “Foi estabelecido um fluxo contínuo e os documentos podem ser remetidos à medida que são gerados. Isso tem o objetivo de facilitar a análise dos técnicos, para que não tenha atraso nesse processo tão importante”, afirmou Dimas Covas, diretor do Instituto Butantã que desenvolve os testes da Coronavac no Brasil.
A propósito: o Butantã foi procurado pelos governos da Argentina e do Peru, que estão interessados na vacina da Sinovac.
Enquanto isso, ex-ministros da Saúde estão preocupados com uma possível resistência do governo federal em relação à vacina desenvolvida na parceria entre a China e o governo de São Paulo. Temem que a ideologia fale mais alto. “O pior cenário é a vacina paulista ser só para paulista”, resumiu José Gomes Temporão. “Conquistada uma imunização eficaz, é preciso garantir que chegue para todos e não permitir monopólio”, defendeu o deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP).
Na sexta, o ministro da Saúde Eduardo Pazuello anunciou que a entrega da vacina de Oxford acontecerá em janeiro. Antes, o governo havia anunciado que isso poderia acontecer entre novembro e dezembro. Serão 30 milhões de doses.
A campanha anual de vacinação contra a poliomielite foi lançada na última sexta-feira, em um contexto bastante desafiador. Atualmente, a cobertura do imunizante está em perigosos 60%. O objetivo é vacinar 11,2 milhões de crianças. No lançamento, Pazuello fez um apelo para que pais e responsáveis confiem na vacina. Já o secretário de Vigilância disse que a campanha “faz parte de um grande movimento desencadeado” por Jair Bolsonaro, “o Movimento Vacina Brasil” – nome marketeiro da campanha. O Globo lembra que, no início de setembro, a Secretaria de Comunicação da Presidência divulgou uma peça publicitária com a frase “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”, dita por Bolsonaro dias antes e avaliada como um aceno do político de extrema direita ao movimento antivacinação…
Você já ouviu falar no “incidente Cutter”? O caso ocorreu nos Estados Unidos em 1955 e se tornou um marco no fortalecimento da regulação sobre as vacinas.
O laboratório Cutter foi um dos seis habilitados naquele país para produzir a vacina contra a pólio que havia sido criada dois anos antes pelo cientista Jonas Salk. O imunizante é do tipo que inativa o vírus, e a empresa não tinha muita experiência com essa técnica. Acabou produzindo vários lotes com o vírus ativo, causando 260 casos de pólio, 164 deles com paralisia nos membros. Outros efeitos colaterais, como dor de cabeça e rigidez na nuca, foram relatados por 40 mil crianças.
O surto causou a suspensão temporária da aguardada campanha de vacinação – a doença causava a paralisia de 35 mil pessoas por ano nos EUA – e provocou uma revisão nos protocolos de biossegurança. O governo acabou criando um órgão independente, a Divisão de Padrões Biológicos (DBS, na sigla em inglês), que se tornaria o responsável por acompanhar os processos de fabricação e estabelecer regulamentos mais adequados.
Hoje, a DBS é o Centro de Avaliação e Pesquisa Biológica do FDA. Já falamos dele algumas vezes por aqui: seu diretor, Peter Marks, declarou que pediria demissão do cargo caso o governo Trump pressionasse pela liberação de uma vacina contra a covid-19 antes da hora.
Quem toma as decisões na pandemia? Segundo um estudo publicado no BMJ, os homens predominam em mais de 85% dos grupos de especialistas, forças-tarefa governamentais e órgãos consultivos sobre a covid-19 em todo o mundo. A paridade de gênero é respeitada em apenas 3,5% dos 115 casos analisados. Os autores lembram que a iniquidade não é coisa nova, mas que vários compromissos de inclusão de gênero que vinham caminhando foram totalmente deixados de lado na pandemia. Diante da urgência, o sistema respondeu no modo automático de governança.
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Extremismo religioso avança sobre o ministério da Saúde - Instituto Humanitas Unisinos - IHU