06 Outubro 2020
Resoluções revogadas pelo conselho colocaram em risco a área que abrange a costa do Amapá até o Maranhão, um cinturão de mangues protegidos na Amazônia.
A reportagem é de Izabel Santos, publicada por Amazônia Real, 04-10-2020.
Das 3 horas e 12 minutos que durou a 135ª Reunião Ordinária do Conama, apenas 24 minutos foram destinados para discutir as resoluções 302 e 303, que fixam parâmetros de proteção para áreas de restingas e manguezais. Com uma composição majoritariamente formada pró-governo Bolsonaro, os conselheiros decidiram extinguir normas de proteção ambiental, abrindo espaço para a destruição do bioma em todo o País e, em particular, na Amazônia, que possui a maior faixa contínua de mangue do Brasil. A decisão gerou protestos instantâneos e embora uma juíza em primeira instância tenha suspendido os atos na terça-feira (29), o desembargador federal Marcelo Pereira da Silva, do Tribunal Regional Federal (TRF) da 2a. Região, tornou válida a revogação das resoluções protetivas no dia 2.
Os atos revogatórios anulam as resoluções 302 e 303, de 2002, mas a forma como o tema foi abordado na reunião do Conselho Nacional do Meio Ambiente indica que o “passar a boiada” do ministro Ricardo Salles continua a todo vapor. Há uma pressa para mudar a legislação ambiental, enquanto a atenção da opinião pública se volta para a pandemia do novo coronavírus.
“Com a retirada da proteção estrita a mangues e restingas, cria-se uma abertura sem precedentes para a ocupação irregular dessas áreas para atividades humanas”, alerta o ambientalista e diretor da Wildlife Conservation Society (WCS) Carlos César Durigan. As áreas de restinga e manguezais têm sofrido pressão constante, sobretudo com um crescente processo de ocupação. “Isso envolve expansão agrícola e pecuária, como a criação de búfalos, algumas áreas de prospecção de petróleo, e pressões de diversas ordens, como a ocupação imobiliária, construções diversas como hotéis e resorts, ocupação industrial.”
Ao suspender a revogação das resoluções, a juíza federal Maria Amélia Almeida Senos de Carvalho, da 23ª Vara Federal Criminal, havia decidido pela antecipação dos efeitos da tutela para suspender os efeitos da revogação na 135ª Reunião Ordinária do Conama, “tendo em vista o evidente risco de danos irrecuperáveis ao meio ambiente”. Ela julgou a ação popular n. 5067634-55.2020.4.02.5101/RJ movida contra a União e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Rodrigo da Silva Roma, Leonardo Nicolau Passos Marinho, Renata Miranda Porto e Juliana Cruz Teixeira da Silva, autores da ação, argumentam que “a revogação de tais normas viola o direito constitucional a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, assegurado no artigo 225 da Constituição Federal, assim como a Política Nacional do Meio Ambiente traçada na Lei 6.938/81 e no Código Florestal (Lei 12.651/12)”.
Nesta quinta-feira (1), a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou prazo de 48 horas para que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, preste informações sobre a decisão do Conama, conforme publicou o site Congresso em Foco. A decisão da ministra atende a um pedido de liminar elaborado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), que solicitou a suspensão da revogação das normas de preservação e a intimação de Salles para que preste esclarecimentos.
O governo federal alega que a consultoria jurídica do Ministério do Meio Ambiente considera que as resoluções 302 e 303 não são mais necessárias, uma vez que os mangues e restingas já são protegidos pelo Código Florestal e também pela Lei da Mata Atlântica (11.428/2006). O mesmo entendimento tem a bancada ruralista no Congresso.
Na sexta-feira (2), o desembargador federal Marcelo Pereira da Silva, do TRF-2, aceitou o recurso protocolado pelo governo Bolsonaro e as resoluções 302 e 303 permanecem, assim, revogadas. Em seu despacho, o desembargador entende que as resoluções protetivas dos mangues e restingas perderam efetividade depois do Código Florestal, que entende ser um “marco regulatório da proteção da flora e da vegetação nativa do Brasil”.
A revogação das resoluções 302 e 302 coloca em risco um dos ecossistemas mais singulares do mundo: os manguezais da Amazônia. A área, que vai do Amapá ao Maranhão, possui mais de 11 mil quilômetros quadrados entre a desembocadura do rio Oiapoque e o Golfão Maranhense, formado pela ilha de São Luís e as baías de São Marcos e São José de Ribamar. O ecossistema é uma faixa de transição entre o ambiente marinho e o terrestre sendo uma barreira entre o mar, os campos alagados e a terra firme. Os manguezais são berçários marinhos ricos em biodiversidade e únicos. Eles também protegem cidades do avanço das marés, potencializadas pelo aumento dos nível do mar provocado pelas mudanças climática.
“Tudo isso pode afetar significamente um dos maiores criadouros naturais de peixes e crustáceos do mundo. Também pode impactar significativamente a biodiversidade e a vida das pessoas que dependem destes recursos”, explica Durigan. A ação do ministro do meio ambiente do Brasil abre caminho para a exploração econômica do local com atividades como a carcinicultura (criação de camarões), expansão imobiliária e obras de infraestrutura.
Durigan destaca que a área é reconhecida como um sítio Ramsar e que a revogação pode impactar outras áreas com a mesma condição. “De certa forma, [o ministro Salles está] desfazendo o compromisso de cuidar [do sítio Ramsar], o MMA propõe medidas que vão de fato enfraquecer a gestão destas áreas”, explica. “Assim, a área pode ter o reconhecimento do Ramsar revogado”.
Segundo o “Atlas dos Manguezais do Brasil”, do ICMBio, os manguezais estão distribuídos da seguinte maneira no bioma amazônico: Maranhão (36%), Pará (28%) e Amapá (16%). De acordo com a publicação, a área situada no norte do Brasil constitui a maior porção contínua do ecossistema sob proteção legal em todo o mundo.
Para o professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) Ulf Mehling, a tentativa de se flexibilizar a proteção de restingas e manguezais aponta para o perigo de grandes obras. “A realização de projetos na escala de portos, construção de estradas próximo ou dentro dos manguezais e outras medidas do tipo podem ter efeitos bastante graves simplesmente por afetar o fluxo de água nos manguezais. Esse tipo de impacto pode resultar em degradação seríssima dos manguezais da região amazônica, que têm significância ecológica mundial. Imagino que reduzir a proteção legal pode levar a projetos desse tipo serem retirados da gaveta, ou pode estimular novas ideias nessa direção”, alerta Mehling.
Nas regiões Nordeste e Sudeste do Brasil, os manguezais já ocupam áreas menores e estão mais próximos dos grandes centros urbanos. A derrubada das resoluções do Conama abriria espaço para a especulação imobiliária, como a construção de resorts e obras de infraestrutura portuária. No Norte, isso poderia ocorrer na região do Curuçá, no Pará, onde já se especulou sobre a construção de um porto de águas profundas.
A também professora da UFPA Moriah Menezes lembra da polêmica em torno do Porto do Espadarte, na área da Reserva Extrativista Mãe Grande de Curuçá, no Pará. O empreendimento deveria ser construído pela mineradora Vale, mas foi suspenso ainda na fase de estudos, em 2015, por decisão da Justiça Federal. O objetivo da empresa é escoar pelo local ferro, manganês, ferro gusa e cobre. A área que pode ser abrangida pelo impacto da obra está no arquipélago formado na foz do rio Curuçá, formado pelas ilhas dos Guarás, Ipemonga e Mutucal.
“Com a retirada do status de proteção permanente, abriria espaço para esse tipo de obra”, diz Moriah, que adverte sobre a construção de estradas no litoral amazônico. Sem legislações que restringem a ocupação de restingas e manguezais, a ocupação humana avança rapidamente. “Isso também abre possibilidade para grandes obras de aterro, como já acontece no Rio de Janeiro, e possibilita a realização de grandes construções.”
Na Amazônia, manguezais e restingas são expostos a impactos humanos, principalmente na vizinhança de praias e áreas urbanas. Ulf Mehling, da UFPA, também avalia que a atual legislação ambiental não ajuda o suficiente na preservação dessas áreas. “E, pelo que observo, apenas a discussão sobre revogar medidas de proteção ambiental leva a um aumento dos problemas de uso inadequado e ilegal dessas áreas, mais ainda depois da desmontagem de ICMBio e do Ibama”.
“Qualquer perda de áreas de restinga vai ter efeitos sérios para a fauna e flora desses ecossistemas. O interesse econômico do governo nessas áreas aqui na Amazônia deve ser pequeno – acho possível que o atual governo simplesmente quer (sic) mostrar que eles estão dispostos a acabar com legislação que protege o meio ambiente, procurando aplausos da clientela deles”, conclui Ulf Mehling.
Foi o que se viu na reunião da 135ª Reunião Ordinária (gravada), quando os membros do governo no Conama votaram em peso por medidas que prejudicariam o ambiente, seguidos por votos de representantes das Confederações Nacionais da Indústria e da Agricultura (CNI e CNA, respectivamente). Em maio de 2019, o presidente Jair Bolsonaro alterou a composição do Conama, retirando sua diversidade. De 100 membros, ela passou a ser integrada por 23 pessoas, a maioria dela de órgãos ministeriais. Na reunião do Conama, também foi revogada a resolução que tratava de licenças ambientais para uso de irrigação.
Até 2014, o Brasil possuía 54 unidades de conservação em áreas de manguezais que formam um cinturão protegido. Os locais são importantes porque abrigam comunidades tradicionais que vivem do extrativismo e fazem uso sustentável dos recursos naturais. Eles vivem da pesca de peixes, crustáceos e moluscos como fonte de alimentação.
Segundo o diretor do Instituto Peabiru, João Meirelles, os manguezais da Amazônia são fonte de sustento para cerca de 100 mil pessoas em comunidades tradicionais de áreas costeiras. Ele explica como funciona a dinâmica de convivência entre as pessoas os locais. “Elas não moram no mangue, elas visitam o mangue. O fato de não estar ocupado não quer dizer que ele não seja usado. Ele serve a muitas populações”, diz Meirelles.
João Meirelles e sua equipe desenvolvem projetos de pesquisa em manguezais no Pará desde 2006 com a participação de diversas instituições. Eles chegaram a identificar, inclusive, espécies de animais que não se sabia que ocorriam, por exemplo, na Reserva Extrativista Marinha Mãe Grande de Curuçá, na costa paraense. “As mais afetadas podem ser as pequenas comunidades de cerca de 60 municípios entre Amapá e Maranhão que vivem dos mangues. Se eles acabarem haverá uma migração enorme e empobrecimento das pessoas”, destaca o diretor do Instituto Peabiru.
Além de berçários de biodiversidade, os manguezais também protegem as cidades dos efeitos das maiores marés, que são as da Amazônia, onde o nível é de quatro a oito vezes maior que no restante do Brasil. “A maior maré do Brasil é em São Luís, que tem oito metros. Em Belém, é de quatro metros. E os mangues mais altos, ricos em biodiversidade e densos do Brasil, estão na Amazônia, e protegem as cidades do impacto da maré”, explica Meirelles.
A Advocacia Geral da União informou à reportagem da Amazônia Real que “irá adotar as medidas processuais cabíveis assim que for notificada”. No entanto, Meirelles não acredita que as medidas do ministro Ricardo Salles se sustentem. “Essas medidas que vêm sem base científica, sem consulta ampla, não têm vida longa. Não tem nada que as sustente. Esse é um momento importante para chamar atenção da população para entender a dinâmica dos mangues, a importância deles e como são vitais para as nossas vidas”, destaca João.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Manguezais, ameaçados pela “boiada” de Salles, são ecossistemas mais singulares do mundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU