23 Outubro 2018
No palco de uma unidade da igreja evangélica Sara Nossa Terra, a empresária Sarah Alarcon lamenta para os fiéis que acompanhavam o culto: "Estamos num momento em que o povo de Deus está brigando por política. Nós temos que orar, que pedir para Deus fazer o melhor cenário e colocar as melhores pessoas. Xingar não vai mudar a realidade. Se orássemos mais teríamos um país muito mais unido. A falta de oração está fazendo nós perecermos".
A reportagem é de Leandro Machado e Luiza Franco, publicada por BBC News Brasil, 23-10-2018.
Minutos antes, na porta do templo, a empresária, e eleitora de Jair Bolsonaro, dizia-se farta de testemunhar brigas de evangélicos. "As pessoas têm que parar de se meter na escolha dos outros e orar mais", dizia.
Segundo pesquisa Datafolha de quinta-feira, 71% dos evangélicos do país declaram voto em Jair Bolsonaro no segundo turno. Ele vence com folga em todos os subgrupos - evangélicos tradicionais, pentecostais, neopentecostais e outros setores. Outros 29% dos evangélicos escolhem Haddad.
Em nível nacional, Bolsonaro lidera os levantamentos de intenção de voto com 59%, ante 41% de Haddad.
Nos últimos dias, a BBC News Brasil conversou com evangélicos de diversas igrejas entender o papel da religião na opção de voto em cada um dos candidatos.
Entre os apoiadores ouvidos pela reportagem, muitos associam o candidato do PSL à perspectiva de "resposta" a algumas mudanças de comportamento ocorridas nos últimos anos, como o crescimento do movimento LGBT, feminismo, discussões de identidade de gênero e novos formatos familiares, como as homoafetivas.
Outro argumento recorrente é o de que Bolsonaro seria um exemplo de político "ficha limpa", sem envolvimento em casos de corrupção, em contraponto ao partido de Lula.
Já os evangélicos contrários ao deputado argumentam que sua plataforma política e seus discursos estão em desacordo com valores cristãos importantes, como amor ao próximo, a pregação da paz e a igualdade entre os seres humanos. Eles alegam que o voto evangélico em Bolsonaro, político que já defendeu a tortura contra opositores, desrespeita a trajetória do principal símbolo do cristianismo, Jesus Cristo.
Mesmo diante desta divisão, pastores ouvidos pela BBC News Brasil dizem que não costumam acontecer brigas nas igrejas. Eventuais discordâncias e debates só ocorrem em redes sociais, como WhatsApp. Um deles conta que, na sua igreja, onde eleitores de Bolsonaro são maioria, aqueles que não votam no capitão reformado costumam ficar em silêncio devido à pressão do grupo oposto.
A campanha e apoiadores de Bolsonaro conseguiram colar no candidato do PT a imagem de um governo que iria ensinar sexo na escola e estimular homossexualidade, o que nunca foi cogitado por Haddad. Para isso, informações falsas sobre o petista foram disseminadas, como o fato de ele ser ministro da Educação quando o governo propôs distribuir a professores um material contra homofobia apelidado por opositores de "kit gay" - no entanto, a cartilha nunca chegou a ser enviada aos profissionais ou escolas.
Na semana passada, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) proibiu Bolsonaro de divulgar vídeos associando Haddad ao "kit-gay".Esse boato foi citado por todos os evangélicos com quem a BBC News Brasil conversou.
A empresária Sarah, da igreja Sara Nossa terra, explica seu voto com três fatores: questões comportamentais, a recente crise econômica e um desejo de "ordem" social. "Para decidir meu voto, entrei em oração e escutei a Deus. Fiquei pensando no país que quero para o meu filho de nove anos. Não quero que ele aprenda sobre sexo na escola", diz ela.
Sobre declarações agressivas de Bolsonaro, que já se disse a favor da tortura e "homofóbico com muito orgulho", a empresária justifica: "A gente está elegendo um presidente. Não vou dormir com ele."
Na mesma igreja, a universitária Vitória dos Santos, 19, tem críticas a declarações belicosas e preconceituosas do candidato, mas não pretende mudar sua escolha. "Tenho amigos gays e vejo o desespero deles, mas o PT não dá", diz ela, que decidiu seu voto conversando com amigos da igreja e pastores. "Aqui, na Igreja, a gente tem um trabalho de valorização da família", afirma.
Do outro lado da cidade, em Itaquera (zona leste paulistana), o comerciante Agnaldo Floriz, 40, fiel da pequena igreja Palavra da Vida Eterna, cita outro argumento que pesou: uma notícia falsa que recebeu pelo WhatsApp, mas que acreditou ser verdadeira. "Você sabe que o Haddad prometeu distribuir mamadeira em formato de pênis para as crianças?".
Ao lado, o vendedor Renato Rodrigues, 38, defende sua opção de voto: "Bolsonaro tem padrão cristão, de respeito à família. Ele não quer induzir o homem a ser mulher. Vou seguir meus líderes, (o pastor Silas) Malafaia e (o deputado federal) Marco Feliciano."
O sucesso do candidato do PSL também se explica pelo apoio de líderes de grandes igrejas, como o bispo Edir Macedo, da Universal do Reino de Deus, e o pastor Silas Malafaia, da Vitória em Cristo. Para pedir votos ao deputado, eles também citaram o chamado "kit-gay".
Os professores estão instruindo (os alunos): 'olha, você tem direito de escolher ser menina se você é menino. Ou você, menina, pode escolher ser menino'. É isso que estamos vendo nas escolas", disse Edir Macedo.
Malafaia falou de corrupção, mas também repetiu o discurso conservador em defesa da família tradicional, formada por homem, mulher e filhos. "Esse cara (Bolsonaro) tem gana de melhorar o Brasil, temos que dar um basta a essa gente que roubou durante 13 anos. Bolsonaro é a favor dos valores de família, é contra essa bandidagem de erotizar criança em escola, que toda a esquerda quer."
À medida que a proporção de evangélicos no país foi aumentando, também cresceu sua representação política. De acordo com dados do Datafolha, três em cada dez (29%) brasileiros com 16 anos ou mais atualmente são evangélicos. Em 2017, a Frente Parlamentar Evangélica tinha 178 integrantes, de um total de 510 deputados na Câmara.
Nos últimos dias, o grupo fez uma carta declarando apoio a Bolsonaro. "A pauta do candidato coincide com a visão desta frente pró-vida. Por esta razão, e por entender que um governante de esquerda limitaria o direito de crença e liberdade religiosa, nos pronunciamos novamente em prol da candidatura de Bolsonaro. Mais que uma questão natural, é uma questão espiritual. A defesa dos valores cristãos, da vida e da família está acima de tudo!", diz o texto.
Em Pinheiros, o pastor batista Celso Eranides conta que votou em Ciro Gomes (PDT) no primeiro turno, mas está inclinado a Bolsonaro no segundo. Ex-aluno de letras da USP, afirma que seu círculo social é composto pelos dois lados do polo político: tem amigos acadêmicos petistas e evangélicos bolsonaristas.
"O que faço? O discurso de Bolsonaro é impositivo, mas o outro lado também é. A ideologia de gênero veio com muita força", diz à BBC News Brasil. "Essa turma da esquerda não defende a gente, da família tradicional. Não quero que meu filho de nove anos aprenda sobre sexo na escola".
O pastor conta ser a favor do casamento gay civil, mas tem receio de ser obrigado a realizar cerimônias religiosas desse tipo, por uma "questão espiritual". Não há no programa de governo petista qualquer menção sobre obrigar igrejas a realizar casamentos entre pessoas do mesmo sexo.
"Fico conjecturando… O que é democracia para mim? É alternância de poder. As pessoas falam essa idiotice (de que Bolsonaro representa a tortura), mas o país é outro hoje. Quero acreditar que as instituições funcionam. Não existe mais isso. Odeio militar, acho o discurso deles (esquerda) é idiota. Além disso, Bolsonaro será eleito democraticamente, da mesma forma que um torneiro mecânico foi eleito (Lula). E acho que Bolsonaro não fica mais de quatro anos."
Para o segmento minoritário contra Jair Bolsonaro, o principal argumento é o de que a postura do candidato é oposta ao que a Bíblia prega.
O escritor Miguel Del Castillo, que frequenta a igreja Comunidade de Jesus, diz que muitos evangélicos têm "fechado os olhos para o discurso de violência de Bolsonaro". Para ele, a retórica replicada pelo candidato sobre "pessoas de bem" não bate com os valores cristãos.
"Partimos do pressuposto de que nenhum ser humano é intrinsecamente bom. É a doutrina do pecado universal, para o qual Jesus se apresenta como redenção. Se todos são pecadores, esse discurso de que há 'pessoas de bem' é contraditório. Jesus falava em amar inclusive os inimigos."
Já o pastor Levi Araújo, da Igreja Batista da Água Branca, em São Paulo, afirma que o candidato do PSL "alimenta e fortalece um grupo neo-fascista que é um perigo para o Brasil".
Em sua opinião, o voto evangélico em Bolsonaro contraria preceitos cristãos. "Jesus Cristo de Nazaré foi torturado. Como um cristão vota em um candidato que já disse ser a favor da tortura e da ditadura?", diz.
"Bolsonaro é machista e misógino, e Jesus foi o primeiro líder religioso a reconhecer e valorizar o papel das mulheres. Bolsonaro é xenófobo; Jesus foi imigrante", afirma.
Bolsonaro já fez reiteradas declarações em defesa da tortura e da ditadura, mas nega ser machista e xenófobo.
Já o antropólogo Flávio Conrado, evangélico que se identifica com o campo político da esquerda, resume seus motivos para não votar em Bolsonaro: "Por causa do extremismo das posições que ele expressa em relação aos direitos humanos."
Na visão dele, a polarização também está presente nas igrejas. "O risco para os evangélicos é que sejamos cada vez mais taxados como intolerantes, o que não somos."
Em setembro, um grupo de teólogos e reverendos presbiterianos, batistas e de outras denominações publicou a Carta Pastoral à Nação, em que pedem para a população escolher candidatos "pelo alinhamento deles com os valores do Reino de Deus, evidenciados na defesa dos mais pobres e dos menos favorecidos".
Diz ainda, entre outras coisas, que "o nome de Deus não pode ser usado em vão, ainda mais para fins políticos".
Teólogo e fundador da ONG Rio de Paz, Antonio Carlos Costa também tem exposto suas críticas ao capitão reformado nas redes sociais.
Diz ser crítico ao PT há anos e não declara explicitamente voto em Haddad. Nestas eleições, no entanto, decidiu mudar seu comportamento porque, na opinião dele, Bolsonaro usa a fé cristã "para defender ideias radicalmente anti-cristãs" e que ele teve "posições antidemocráticas ao longo de sua vida."
"A minha questão é teológica", diz ele, num vídeo. "Como instituição, a igreja deve respeitar a diversidade de opinião de seus membros (...) Estamos criando barreiras intransponíveis para milhões de pessoas que deveriam ser objeto da nossa preocupação".
Para o cientista político Claudio Couto, da Fundação Getúlio Vargas, a transferência dos votos dos fiéis para um candidato apoiado pelos líderes não é automática. "Esse eleitorado não segue bovinamente a determinação do seu líder religioso", diz.
Já Amy Erica Smith, professora de ciência política da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, diz que os evangélicos criticam líderes que se posicionam politicamente.
"Isso muda um pouco quando o entrevistado fala do seu pastor especificamente. Há uma tendência a perdoar mais nos casos concretos", diz ela, que há anos estuda a intersecção entre religião e política no Brasil.
Dados de sua pesquisa com evangélicos nas eleições de 2014 apontam que o apoio de líderes não importou para a decisão da maioria dos ouvidos. "A transferência não é automática."
Ela diz que, quanto mais conservadora a igreja, mais coeso tende a ser o perfil de voto das pessoas que a frequentam.
No caso de 2018, quanto mais a pessoa frequenta sua igreja, maior a chance de ela declarar voto em Bolsonaro e não em Haddad. "É forte a correlação entre preocupação com questões sexuais e de gênero com o apoio a Bolsonaro, e não a Haddad", diz.
No entanto, isso não acontece porque o pastor orienta as escolhas dos fiéis, mas porque eles, em geral, convivem muito e têm valores e formas de pensar parecidas. "A orientação do pastor faz parte, mas não é o fator mais importante."
Neste ano, Smith conduziu uma pesquisa online com religiosos. Concluiu que, entre aqueles que frequentam igrejas, 29% dos católicos, 38% de evangélicos não pentecostais e 46% de pentecostais sabiam que seus líderes apoiavam algum candidato. Quase todos disseram que esse candidato era Jair Bolsonaro.
"Isso indica que há muito ativismo dentro das igrejas dos apoiadores de Bolsonaro", diz.
Na avaliação dela, a maior parte dos evangélicos gostaria, em tese, de votar em um cristão, mas considerações ideológicas podem pesar mais, como parece ocorrer neste ano - apesar de ter sido batizado por um pastor em Israel, Bolsonaro se declara, oficialmente, católico.
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Os valores e 'boatos' que conduzem evangélicos a Bolsonaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU