"A pandemia está nos forçando a entender que não existe capitalismo verdadeiramente viável sem um sistema de serviço público forte e a repensar completamente a maneira como produzimos e consumimos, porque essa pandemia não será a última", escreve Gaël Giraud, jesuíta, economista graduado pela Ecole Nationale de la Statistique et de l’Administration Economique - ENSAE e pela Ecole Normale Supérieure, foi diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique - CNRS e foi economista-chefe da Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD) de 2015 a 2019, em artigo publicado por Civiltà Cattolica, 04-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Entre outros livros, Gaël Giraud é autor de Ilusão Financeira. Dos subprimes à transição ecológica (São Paulo, Loyola, 2015).
Segundo o economista, "a privatização generalizada da saúde levou nossas autoridades a ignorar os avisos feitos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre os mercados de fauna silvestre em Wuhan. Não se trata de dar lições ex post a ninguém, mas de entender nossos erros para agir da maneira mais inteligente possível no futuro".
"O isolamento parcial da Europa - afirma Gaël Giraud - reviveu a ideia de que o capitalismo é certamente um sistema muito frágil e, portanto, o estado de bem-estar está de volta à moda. Na realidade, infelizmente, a falha em nosso sistema econômico agora revelada pela pandemia é bastante simples: se uma pessoa infectada é capaz de infectar muitas outras em poucos dias e se a doença tem uma mortalidade significativa, como no caso da Covid-19, nenhum sistema econômico pode sobreviver sem uma saúde pública forte e adequada".
Pois - analisa o economista francês - "é impossível manter a ficção antropológica do individualismo implícita na economia neoliberal e nas políticas de desmantelamento do serviço público que a acompanham há quarenta anos: a externalidade negativa induzida pelo vírus desafia radicalmente a ideia de um sistema complexo modelado no voluntarismo dos empresários 'atomizados'".
O que estamos experimentando, ao preço do sofrimento inédito de uma parte significativa da população, é o fato de o Ocidente, do ponto de vista sanitário, não possuir estruturas e recursos públicos adequados para esta época e situação. Como fazer para entrar no século XXI também do ponto de vista da saúde pública? É isso que os ocidentais devem entender e implementar, em poucas semanas, diante de uma pandemia que, no momento em que escrevemos, promete se disseminar por todo o planeta, devido a ondas recorrentes de contaminação e mutações de vírus [1]. Vamos ver como e por quê.
Precisamos primeiro reiterar, para evitar confusão, que a posição de muitos especialistas em saúde pública é coerente em um ponto [2]: a pandemia de Covid-19 deveria ter permanecido uma epidemia mais viral e letal do que gripe sazonal, com efeitos leves na grande maioria da população e muito grave apenas em uma pequena fração dela. Porém - se considerarmos alguns países europeus e os Estados Unidos em especial - o desmantelamento do sistema de saúde pública transformou esse vírus em uma catástrofe sem precedentes na história da humanidade e em uma ameaça a todos os nossos sistemas econômicos. O que os especialistas afirmam de que teria sido relativamente fácil conter a pandemia praticando a triagem sistemática das pessoas infectadas desde o início dos primeiros casos; monitorando seus movimentos; colocando pessoas-alvo em quarentena; distribuindo massivamente máscaras para toda a população em risco de contaminação, para diminuir ainda mais a propagação. Transformar um sistema de saúde pública digno desse nome em uma indústria médica em fase de privatização é um problema grave. Isso não impede que "heróis" e "santos" continuem e trabalhem na saúde pública: temos uma excelente representação disso nestes últimos dias.
A privatização generalizada da saúde levou nossas autoridades a ignorar os avisos feitos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre os mercados de fauna silvestre em Wuhan. Não se trata de dar lições ex post a ninguém, mas de entender nossos erros para agir da maneira mais inteligente possível no futuro.
Prevenir eventos como uma pandemia não é rentável no curto prazo. Portanto, não nos precavemos nem de máscaras nem testes a serem aplicados em massa. E reduzimos nossa capacidade hospitalar em nome da ideologia do desmantelamento do serviço público, que agora se mostra pelo que realmente é: uma ideologia que mata. Como nunca aderiram a essa ideologia e, graças à experiência da epidemia de SARS em 2002, países como Coreia do Sul e Taiwan criaram um sistema de prevenção extremamente eficaz: triagem e rastreamento sistemáticos, visando quarentena e colaboração da população adequadamente informada e instruída, fazendo com que usassem as máscaras. Sem confinamento. O dano econômico resulta insignificante.
Em vez de uma triagem sistemática, nós ocidentais adotamos uma estratégia antiga, a de confinamento [3], diante de uma pequena fração de infectados, e uma parte ainda menor deles que poderia ter graves complicações. Porém, por menor que seja, essa última fração é ainda maior que a atual capacidade de atendimento de nossos hospitais.
Não havendo outras estratégias, fica claro que não fazer nada equivaleria a condenar à morte centenas de milhares de cidadãos, como mostram as projeções que circulam na comunidade de epidemiologistas, incluindo as do Imperial College de Londres [4]. Embora alguns aspectos deste documento sejam questionáveis, ele tem o mérito de esclarecer que a inação é simplesmente criminosa. Foi essa perspectiva que levou Emmanuel Macron, na França, e Boris Johnson, no Reino Unido, a abandonar sua estratégia inicial de "imunização de rebanhos" [5] e a "acordar" o governo Trump. Mas tarde demais: esses países agora correm o risco de pagar um preço muito alto em termos de vidas humanas pela demora em intervir adequadamente.
O isolamento parcial da Europa reviveu a ideia de que o capitalismo é certamente um sistema muito frágil e, portanto, o estado de bem-estar está de volta à moda. Na realidade, infelizmente, a falha em nosso sistema econômico agora revelada pela pandemia é bastante simples: se uma pessoa infectada é capaz de infectar muitas outras em poucos dias e se a doença tem uma mortalidade significativa, como no caso da Covid-19, nenhum sistema econômico pode sobreviver sem uma saúde pública forte e adequada.
Os trabalhadores, mesmo os mais baixos da escala social, mais cedo ou mais tarde infectarão seus vizinhos, seus chefes e os próprios ministros eventualmente contrairão o vírus. É impossível manter a ficção antropológica do individualismo implícita na economia neoliberal e nas políticas de desmantelamento do serviço público que a acompanham há quarenta anos: a externalidade negativa induzida pelo vírus desafia radicalmente a ideia de um sistema complexo modelado no voluntarismo dos empresários “atomizados".
A saúde de todos depende da saúde de cada um. Estamos todos conectados em uma relação de interdependência. E essa pandemia não é de modo algum a última, a "grande peste" que não voltará por mais um século, pelo contrário: o aquecimento global promete a multiplicação das pandemias tropicais, conforme afirmam o Banco Mundial e o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (Ipcc) há anos. E haverá outros coronavírus.
Sem um serviço de saúde público eficiente, que permita que todos sejam selecionados e tratados, não há mais nenhum sistema de produção viável durante uma epidemia de coronavírus. E isso por décadas. O apelo lançado em 12 de março pelo Mouvement des Entreprises de France (Medef) - o sindicato dos empregadores franceses - para "tornar o sistema de produção mais competitivo" revela um profundo mal-entendido sobre a pandemia.
Se os profissionais de saúde adoecem, existe o risco de colapso do sistema hospitalar, como parece estar acontecendo na Itália em Bergamo, Brescia e, em menor grau, em Milão. Portanto, é necessário que o Estado promova a difusão de medicamentos anti ou retrovirais, para permitir rapidamente, em qualquer lugar, aliviar a carga do sistema hospitalar à beira do colapso. E que os cidadãos de todos os países finalmente demonstrem um senso de responsabilidade.
Para que o confinamento seja rigoroso, juntamente com os comportamentos de higiene pessoal elementares já conhecidos, todos devem entender seu significado e utilidade. O confinamento diminui efetivamente a propagação do vírus e - vamos repetir -, na ausência de um sistema de rastreamento, permanece a estratégia menos negativa a curto prazo. No entanto, se pararmos nisso, se torna inútil: se sairmos do confinamento, digamos, em um mês, o vírus ainda estará em circulação e causará as mesmas mortes que teria causado hoje na ausência de confinamento.
Esperar, através do isolamento, que a população se imunize - mais ou menos, a mesma estratégia inicialmente proposta por Johnson, mas "em casa" - levaria meses de confinamento. Para entender isso, basta retornar ao parâmetro essencial de uma pandemia, R0, o "número de reprodução básico ", ou seja, o número médio de infecções secundárias produzidas pelo indivíduo infectado. Desde que R0 seja maior que 1, ou seja, enquanto um indivíduo infectado pode infectar mais de uma pessoa, o número de pessoas infectadas aumenta exponencialmente. Se deixarmos a contenção sem mais demora antes que R0 caia abaixo de 1, teremos centenas de milhares de mortes que a pandemia ameaçou causar desde o início.
No entanto, para que a imunização coletiva leve o R0 abaixo de 1, é necessário imunizar cerca de 50% da população, algo que - dado o tempo médio de incubação (5 dias) - provavelmente exigiria mais de 5 meses de reclusão, se assumirmos que existem milhões de infectados hoje. Uma opção insustentável em termos econômicos, sociais e psicológicos. É todo o sistema de produção de nossos países que entraria em colapso, a partir de nosso sistema bancário, que é extremamente frágil.
Sem mencionar o fato de que, neste momento, os mais pobres entre nós - refugiados, pessoas em condições de rua etc. - são obrigados a morrer não por causa do vírus, mas porque não podem sobreviver sem uma sociedade ativa. Sem esquecer que não temos garantia de que nossos circuitos de suprimento de alimentos possam suportar o choque da quarentena por tanto tempo: queremos forçar os trabalhadores de renda média / baixa a colocar suas vidas em risco para continuar, por exemplo, a transportar alimentos para gerentes que permanecem tranquilamente em casa ou em suas residências de campo? Portanto, é necessário organizar uma "primeira" liberação do confinamento, o mais tardar em algumas semanas. Contudo, assumir esse risco coletivamente faz sentido apenas sob uma condição: dessa vez, aplicando a estratégia adotada na Coreia do Sul e em Taiwan com o máximo rigor. O tempo que estamos ganhando ao nos trancar em casa deve ser usado para:
– levar de volta R0 (que provavelmente era cerca de 3 no início do contágio) o mais próximo possível de 1;
– incentivar a reconversão de alguns setores econômicos, para produzir respiradores pulmonares em série agora necessários nos setores de terapia intensiva para salvar vidas;
– permitir que os laboratórios ocidentais produzam imediatamente equipamentos e materiais de triagem, enquanto se organizam para construir o sistema necessário em poucas semanas. No momento, existem duas enzimas, em especial, cujos estoques são muito insuficientes e, portanto, limitam nossa capacidade de realizar a triagem [6];
– produzir as máscaras de proteção, essenciais para impedir a propagação do vírus quando saímos de casa.
Se colocarmos um fim ao nosso confinamento coletivo quando nossos meios de detecção não estiverem prontos ou se ainda estiverem faltando máscaras, correremos novamente o risco de uma tragédia. Infelizmente, é impossível medir R0 hoje. Portanto, devemos esperar até estarmos organizados para a triagem e planejar a saída ordenada da quarentena o mais rápido possível.
O que acontecerá naquele momento? Aqueles que são "liberados" devem passar por exames sistemáticos e usar máscaras por várias semanas. Caso contrário, a saída do confinamento terá um resultado pior do que aquele do início da pandemia. Aqueles que ainda são positivos serão colocados em quarentena, juntamente com as pessoas com que convivem. Outros podem ir trabalhar ou descansar em outro lugar. Os testes deverão continuar durante o verão do hemisfério norte para garantir que o vírus seja erradicado na chegada do outono.
A pandemia está nos forçando a entender que não existe capitalismo verdadeiramente viável sem um sistema de serviço público forte e a repensar completamente a maneira como produzimos e consumimos, porque essa pandemia não será a última. O desmatamento - assim como os mercados da fauna silvestre de Wuhan - nos coloca em contato com animais cujos vírus não nos são conhecidos. O degelo do permafrost ameaça espalhar epidemias perigosas, como a "espanhola" de 1918, o antraz, etc. A própria criação animal intensiva facilita a propagação de epidemias.
No curto prazo, teremos que nacionalizar as empresas não sustentáveis e, talvez, alguns bancos. Mas muito em breve teremos que aprender a lição desta dolorosa primavera: reconverter a produção, regulando os mercados financeiros; repensar os padrões contábeis, a fim de melhorar a resiliência de nossos sistemas de produção; estabelecer um imposto sobre carbono e saúde; lançar um grande plano de recuperação para a reindustrialização ecológica e conversão maciça às energias renováveis.
A pandemia nos convida a transformar radicalmente nossas relações sociais. Hoje, o capitalismo sabe "o preço de tudo e o valor de nada", para citar uma eficaz fórmula de Oscar Wilde. Devemos entender que a verdadeira fonte de valor são nossas relações humanas e aquelas com o meio ambiente. Para privatizá-las, nós as destruímos e arruinamos as nossas sociedades, enquanto colocamos em risco vidas humanas. Não somos mônadas isoladas, conectadas apenas por um sistema abstrato de preços, mas seres de carne interdependentes com os outros e com o território. É isso que precisamos aprender novamente. A saúde de cada um diz respeito a todos os outros. Mesmo para os mais privilegiados, a privatização dos sistemas de saúde é uma opção irracional: eles não podem permanecer totalmente separados dos outros; a doença sempre os alcançará. A saúde é um bem comum global e deve ser gerida como tal.
Os "bens comuns", como definiram em particular o economista estadunidense Elinor Ostrom, abrem um terceiro espaço entre o mercado e o estado, entre o privado e o público. Eles podem nos guiar para um mundo mais resiliente, capaz de suportar choques como o causado por essa pandemia.
A saúde, por exemplo, deve ser tratada como uma questão de interesse coletivo, com modalidades de intervenção articuladas e estratificadas. No nível local, por exemplo, as comunidades podem se organizar para reagir rapidamente, circunscrevendo os grupos de pessoas infectadas pela Covid-19. No nível estatal, é necessário um serviço hospitalar público poderoso. No nível internacional, as recomendações da OMS para combater uma epidemia devem se tornar vinculantes. Poucos países seguiram as recomendações da OMS antes e durante a crise. Estamos mais dispostos a ouvir os "conselhos" do Fundo Monetário Internacional (FMI) do que os da OMS. O cenário atual mostra que estamos errados.
Nestes últimos dias, testemunhamos o nascimento de vários "bens comuns": como os cientistas que, fora de qualquer plataforma pública ou privada, se coordenaram espontaneamente através da iniciativa OpenCovid19 [7], para compartilhar informações sobre boas práticas de triagem de vírus.
Mas a saúde é apenas um exemplo: meio ambiente, educação, cultura e biodiversidade também são bens comuns globais. Devemos imaginar instituições que nos permitam valorizá-los, reconhecer nossas interdependências e tornar nossas sociedades resilientes.
Algumas organizações desse tipo já existem. A Iniciativa Drugs for Neglected Disease Initiative (Dndi) é um excelente exemplo. Uma organização criada por alguns médicos franceses há 15 anos para a manutenção de medicamentos para doenças raras ou esquecidas: uma rede colaborativa de terceiros, na qual cooperam o setor privado, o público e as ONGs, que consegue fazer o que nem o setor farmacêutico privado, nem os estados nem a sociedade civil podem fazer sozinhos.
Em um nível individual, descobrimos o medo da escassez de bens. Esse pode ser um aspecto positivo nesta crise? Isso nos liberta do narcisismo consumista, de "quero tudo imediatamente". Isso nos leva de volta ao essencial, ao que realmente importa: a qualidade das relações humanas, a solidariedade. Também nos lembra de como a natureza é importante para nossa saúde mental e física. Quem mora trancado em 15 metros quadrados em Paris ou Milão sabe bem disso. O racionamento imposto a alguns produtos nos lembra a limitação dos recursos.
Bem-vindo a um mundo limitado! Durante anos, os bilhões gastos em marketing nos fizeram pensar em nosso planeta como um supermercado gigantesco, onde tudo está à nossa disposição por tempo indeterminado. Agora experimentamos brutalmente a sensação da privação. É muito difícil para alguns, mas pode ser uma oportunidade de economia.
Por outro lado, inclusive um certo romantismo "colapsológico" [8] será rapidamente mitigado pela percepção concreta do que a brutal dificuldade da economia implica na situação atual: desemprego, falência, existências quebradas, morte, sofrimento cotidiano daqueles em que o vírus deixará marcas por toda a vida. Na esteira da encíclica Laudato si do Papa Francisco, desejamos que esta pandemia seja uma oportunidade de direcionar nossas vidas e nossas instituições para uma feliz sobriedade e para o respeito pela finitude do nosso mundo. O momento é decisivo: pode-se temer o que Naomi Klein definiu de "estratégia de choque". Sob o pretexto de apoiar as empresas, alguns governos não devem enfraquecer ainda mais os direitos dos trabalhadores; ou, para fortalecer ainda mais a vigilância policial sobre as populações, reduzir permanentemente as liberdades pessoais.
Vamos tentar fazer uma hipótese nessa situação de algumas opções possíveis de política econômica:
Alguns economistas alemães preveem uma queda de 9% do PIB na Alemanha em 2020. O número é razoável e há poucas razões pelas quais as coisas possam ser diferentes na França e, pior ainda, na Itália, Inglaterra, Suíça e Holanda. Isso deve levar a Alemanha e a Holanda - os defensores da convicção de que uma maior austeridade orçamentária ajusta a economia, enquanto a macroeconomia mais básica prova o contrário - a rever seus dogmas, se a escalada de vítimas em seus respectivos países ainda não for suficiente para fazê-los abrir os olhos.
Nos Estados Unidos, Donald Trump e seu secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, propõem ao Congresso a distribuição de um cheque de US $ 1.200 a cada cidadão dos EUA. Parece um "dinheiro caindo do céu" ou, supondo que o banco central trate desse problema monetário, "um alívio quantitativo para as pessoas". Medidas que eventualmente já deveriam ter sido tomadas em 2009. Também podemos ver na iniciativa do governo Trump o esboço de uma renda mínima universal para todos. Uma proposta que foi feita por muitos há muito tempo.
Na Europa, a suspensão das regras do Pacto de Estabilidade, a emissão de "títulos corona" ou a ativação de empréstimos do Mecanismo Europeu de Estabilidade são todas medidas essenciais.
No entanto, as iniciativas mencionadas são insuficientes. É necessário entender que o sistema de produção ocidental está, ou será, parcialmente bloqueado. Diferentemente da crise do mercado de ações de 1929 e da crise das hipotecas subprime de 2008, essa nova crise afeta principalmente a economia real. Na maioria das empresas, aos 30% dos funcionários impedidos de trabalhar não corresponderiam a 30% menos de produção, mas zero produção. Se uma empresa inserida em uma cadeia de valor parar de produzir, toda a cadeia é interrompida. Estamos vendo que as cadeias de suprimentos just-in-time (ou seja, sem estoques) nos tornam extremamente frágeis. Vamos pensar na cadeia de produção e fornecimento de alimentos. Certamente, alguns governos estão prontos para enviar a polícia ou o exército para obrigar os trabalhadores a arriscar suas vidas, a fim de não interromper as cadeias de suprimentos. Os trabalhadores colocados nos postos mais baixos na cadeia de produção e fornecimento são os primeiros expostos e os primeiros sacrificados.
Uma enorme admissão de impotência!
Na maioria dos países forçados a praticar o confinamento, o sistema de produção é, portanto, parcialmente bloqueado, ou será em breve. As cadeias de valor globais estão desacelerando e algumas serão cortadas. O trabalho é involuntariamente "em greve". Não somos apenas confrontados com uma escassez de demanda keynesiana - porque aqueles com dinheiro não podem gastá-lo, pois precisam ficar em casa -, mas também com uma crise de oferta. Essa pandemia, portanto, nos introduz em um tipo de crise novo e sem precedentes, no qual a queda da demanda e a da oferta são combinadas. Nesse contexto, a injeção de liquidez é tão necessária quanto insuficiente. Estar satisfeito com isso seria equivalente a dar muletas a alguém que acabou de perder as pernas ...
Somente o Estado, portanto, pode criar novos postos de trabalho capazes de absorver a massa de funcionários que, quando finalmente saírem de casa, descobrirão que perderam o emprego. A ideia do Estado como empregador de última instância nem sequer é nova: foi estudada com muita seriedade pelo economista britânico Tony Atkinson. Obviamente, para que isso tenha sentido, precisamos pensar seriamente sobre o tipo de setores industriais para os quais queremos favorecer a saída do túnel. Esse discernimento deve ser feito em cada país, à luz das características específicas de cada tecido econômico.
Portanto, é legítimo e indispensável que os estados ocidentais, hoje como ontem, usem uma despesa em déficit para financiar o esforço de reconstrução do sistema de produção que será necessário ao final deste longo parto; e terão que fazê-lo de maneira aguda e seletiva, favorecendo este ou aquele setor. Obviamente, sua dívida pública aumentará. Devemos lembrar que, durante a Segunda Guerra Mundial, o déficit público dos Estados Unidos atingiu 20% do PIB por vários anos consecutivos. Mas o déficit seria muito maior na ausência de enormes gastos por parte do governo para salvar a economia.
Também podemos observar que o plano de ajuste estrutural imposto à Grécia há alguns anos foi absolutamente inútil: a relação dívida pública/PIB de Atenas atingiu em 2019 os mesmos níveis de 2010. Em outras palavras, a austeridade mata - nós o vemos bem com nossos olhos agora, em nossos setores de reanimação - mas isso não resolve nenhum problema macroeconômico.
Nesse ponto, um possível erro seria apreciar a eficácia do autoritarismo como uma solução. "E se nossas democracias estiverem mal preparadas? Muito lentas? Bloqueadas pelas liberdades individuais?”. Esse refrão já ecoava antes da pandemia. Se considerarmos a China, a situação certamente está melhorando, mas a epidemia ainda não foi derrotada, nem mesmo Wuhan.
Por outro lado, é verdade que dois hospitais foram construídos em Pequim em poucos dias e que o governo chinês não está nas mãos do lobby financeiro, mas devemos renunciar à democracia para colher os benefícios desses dois pontos favoráveis? Uma vez abandonado o confinamento controlado, outra armadilha perigosa seria simplesmente restaurar o modelo econômico de ontem, contentando-se em melhorar marginalmente nosso sistema de saúde para fazer frente à próxima pandemia. É urgente entender que a pandemia de Covid-19 não é apenas um "cisne negro" - era perfeitamente previsível, embora não fosse absolutamente prevista pelos oniscientes mercados financeiros -, mas também não é um "choque exógeno".
É uma das consequências inevitáveis do antropoceno. A destruição do meio ambiente que a nossa economia extrativista exerce há mais de um século tem uma raiz comum com essa pandemia: nos tornamos a espécie dominante sobre a Terra e, portanto, somos capazes de quebrar as cadeias alimentares de todos os outros animais, mas somos também o melhor veículo para os elementos patogênicos. Em termos de evolução biológica, para um vírus é muito mais "eficaz" infectar os seres humanos do que as renas do Ártico, já ameaçadas pelo aquecimento global. E isso será assim cada vez mais, porque a crise ecológica dizimará outras espécies vivas. É sobretudo a destruição da biodiversidade, na qual estamos há tempo empenhados, a favorecer a disseminação de vírus [9].
Hoje muitos estão conscientes disso: a crise ecológica nos garante pandemias recorrentes. Apenas se contentar com máscaras e enzimas no futuro próximo equivaleria a tratar apenas o sintoma. O mal é muito mais profundo e é sua raiz que deve ser medicada. A reconstrução econômica que teremos de realizar depois de sair do túnel será uma oportunidade inesperada para implementar as transformações que, mesmo ontem, pareciam inconcebíveis para aqueles que continuam olhando para o futuro pelo retrovisor da globalização financeira. Precisamos de uma reindustrialização verde, acompanhada de uma realocação de todas as nossas atividades humanas.
Mas, por enquanto, e para acelerar o fim da crise sanitária, é necessário fazer o que for possível e, portanto, continuar com os esforços para blindar e proteger a população.
Gaël Giraud, esteve na Unisinos, em setembro de 2016. Ele participou do IV Colóquio Internacional IHU Políticas Públicas, Financeirização e Crise Sistêmica, que ocorreu nos dias 13 e 14 de setembro daquele ano. Veja os vídeos de suas conferências:
[1] Ver P. Baker – E. Sullivan, “U.S. Virus Plan Anticipates 18-Month Pandemic and Widespread Shortages”, no New York Times, 17 de março de 2020.
[2] Ver J.-D. Michel, "Covid-19: fin de partie?!", 18 de março de 2020; T. Pueyo, "Coronavirus: The Hammer and the Dance. What the Next 18 Months Can Look Like, if Leaders Buy Us Time", 19 de março de 2020.
[3] Já em 1347 Pierre de Damouzy, médico de Margarida da França, condessa de Flandres, recomendou o confinamento aos habitantes de Reims para escapar da peste negra. Ver Y. Renouard, "La Peste noire de 1348-1350", na Revue de Paris, março de 1950, 109.
[4] Ver N. M. Ferguson – D. Laydon et Al., “Impact of non-pharmaceutical interventions (NPIs) to reduce COVID-19 mortality and healthcare demand”, Londra, Imperial College, 16 de março de 2020.
[5] Sabe-se que a primeira tentação do governo Johnson foi lançar o Reino Unido em um experimento de imunização coletiva. O governo francês também foi tentado por essa "solução", embora de maneira menos explícita. Sobre esse assunto, vera T. Vey, "La France mise sur l’immunité de group pour arrêter le coronavirus", em Sciences, 13 de março de 2020.
[6] Trata-se da transcriptase reversa (AMV ou MMLV) e do Taq (ou Pfu) que amplifica a reação química, permitindo identificar a presença de Covid-19. Essas são as duas enzimas que diferentes laboratórios estão tentando produzir ininterruptamente.
[7] “Low-cost & Open-Source Covid19 Detection kits”, ver este link e também hashtag no Twitter: #OpenCovid19.
[8] A colapsologia é um discurso multidisciplinar interessado no colapso de nossa civilização. Parte da ideia de que as ações humanas têm um impacto duradouro e negativo no planeta. Baseia-se em dados científicos, mas também em intuições, por isso às vezes é acusada de não ser uma verdadeira ciência, mas um movimento.
[9] Ver J. Duquesne, “Coronavirus: ‘La disparition du monde sauvage facilite les épidémies’”, entrevista com Serge Morand, pesquisador do Cnrs-Cirad, in Marianne, 17 de março de 2020.