07 Abril 2020
"Haverá outros coronavírus. Sem um serviço público de saúde eficiente, que permita que todos sejam selecionados e tratados, não há mais nenhum sistema de produção viável durante uma epidemia de coronavírus. E isso por décadas. A pandemia está nos forçando a entender que não há capitalismo verdadeiramente viável sem um forte sistema de serviços públicos, e a repensar completamente a maneira como produzimos e consumimos, porque essa pandemia não será a última", escreve Gaël Giraud, jesuíta, economista graduado pela Ecole Nationale de la Statistique et de l’Administration Economique - ENSAE e pela Ecole Normale Supérieure, foi diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique - CNRS e foi economista-chefe da Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD) de 2015 a 2019, em artigo publicado por Avvenire, 03-04-2020. A tradução de Luisa Rabolini.
Entre outros livros, Gaël Giraud é autor de Ilusão Financeira. Dos subprimes à transição ecológica (São Paulo, Loyola, 2015).
Trecho do artigo do Padre Giraud, que se questiona, enquanto reorganizamos a "resistência" sanitária à Covid-19, sobre como relançar uma economia pós-liberal. A reflexão está contida no caderno n. 4075 da Civiltà Cattolica, já disponível, que também contém, entre outras, intervenções de Giovanni Cucci, Carlo Casalone e Antonio Spadaro, diretor da revista. Sistema de saúde e mais: esses são os erros do Ocidente a serem corrigidos. Também meio ambiente, educação, cultura e biodiversidade são bens comuns globais. Precisamos de instituições para valorizá-los. O que estamos vivenciando, ao preço de um sofrimento inacreditável de uma parte significativa da população, é o fato de o Ocidente, do ponto de vista sanitário, não possui estruturas e recursos públicos adequados para esta época e situação. Como fazer para entrar no século XXI também do ponto de vista da saúde pública? É isso que os ocidentais devem entender e implementar, em poucas semanas, diante de uma pandemia que, no momento da redação deste texto, promete tomar conta do planeta, devido às recorrentes ondas de contaminação e às mutações do vírus1. Vamos ver como e por quê.
Prevenir eventos como uma pandemia não é rentável no curto prazo. Portanto, não fizemos reserva de máscaras e kits de detecção para aplicar em massa. E reduzimos nossa capacidade hospitalar em nome da ideologia do desmantelamento do serviço público, que agora se mostra pelo que ela é: uma ideologia que mata. Como nunca aderiram a essa ideologia e, graças à experiência da epidemia de SARS em 2002, países como Coreia do Sul e Taiwan criaram um sistema de prevenção extremamente eficaz: a triagem sistemática e o rastreamento, visando a quarentena e a colaboração da população adequadamente informada e instruída, fazendo-a usar as máscaras. Sem confinamento. O dano econômico é insignificante. Em vez da triagem sistemática, nós ocidentais adotamos uma estratégia antiga, a de confinamento, diante de uma pequena fração de infectados e de uma parte ainda menor deles que poderia ter sérias complicações. Porém, por menor que seja, essa última fração é ainda maior que a atual capacidade de atendimento de nossos hospitais. Não havendo outras estratégias, fica claro que não fazer nada equivaleria a condenar centenas de milhares de cidadãos à morte, como mostram as projeções que circulam na comunidade de epidemiologistas.
O isolamento parcial da Europa reacendeu a ideia de que o capitalismo é certamente um sistema muito frágil e, assim, o estado social voltou à moda. Na realidade, o defeito em nosso sistema econômico agora revelado pela pandemia é, lastimavelmente, simples: se uma pessoa infectada é capaz de infectar muitas outras em poucos dias e se a doença tem uma mortalidade significativa, como no caso da Covid-19, nenhum sistema econômico pode sobreviver sem uma saúde pública forte e adequada. Os trabalhadores, mesmo aqueles da camada mais baixa da escala social, mais cedo ou mais tarde infectarão seus vizinhos, seus chefes e os próprios ministros no fim contrairão o vírus. É impossível manter a ficção antropológica do individualismo implícita na economia neoliberal e nas políticas de desmantelamento do serviço público que a acompanham há quarenta anos: a externalidade negativa induzida pelo vírus desafia radicalmente a ideia de um sistema complexo modelado no voluntarismo dos empresários “atomizados”. A saúde de todos depende da saúde de cada um. Estamos todos conectados em uma relação de interdependência. E essa pandemia não é de modo algum a última, a “grande peste” que não voltará por mais um século, pelo contrário: o aquecimento global promete a multiplicação de pandemias tropicais, como afirmam o Banco Mundial e o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) há anos. E haverá outros coronavírus. Sem um serviço público de saúde eficiente, que permita que todos sejam selecionados e tratados, não há mais nenhum sistema de produção viável durante uma epidemia de coronavírus. E isso por décadas. A pandemia está nos forçando a entender que não há capitalismo verdadeiramente viável sem um forte sistema de serviços públicos, e a repensar completamente a maneira como produzimos e consumimos, porque essa pandemia não será a última. O desmatamento - assim como os mercados da fauna silvestre de Wuhan - nos coloca em contato com animais cujos vírus nos são desconhecidos. O degelo do permafrost ameaça disseminar epidemias perigosas, como a espanhola de 1918, o antraz, etc. A própria produção animal intensiva facilita por si só a propagação de epidemias.
No curto prazo, teremos que nacionalizar as empresas não sustentáveis e, talvez, alguns bancos. Mas muito em breve teremos que aprender a lição desta dolorosa primavera: reconverter a produção, regular os mercados financeiros; repensar os padrões contábeis, a fim de melhorar a resiliência de nossos sistemas de produção; fixar uma taxa de imposto sobre carbono e saúde; lançar um grande plano de recuperação para a reindustrialização ecológica e conversão maciça às energias renováveis. A pandemia nos convida a transformar radicalmente as nossas relações sociais. Hoje, o capitalismo conhece "o preço de tudo e o valor de nada", para citar uma fórmula eficaz de Oscar Wilde. Devemos entender que a verdadeira fonte de valor são as nossas relações humanas e aquelas com o meio ambiente. Para privatizá-las, nós as destruímos e arruinamos nossas sociedades, enquanto colocamos em risco vidas humanas. Não somos mônadas isoladas, conectadas apenas por um sistema abstrato de preços, mas seres de carne interdependentes com os outros e com o território. É isso que precisamos aprender novamente. A saúde de cada um de nós afeta todos os outros. Mesmo para os mais privilegiados, a privatização dos sistemas de saúde é uma opção irracional: eles não podem permanecer totalmente separados dos outros; a doença sempre os alcançará. A saúde é um bem comum global e deve ser gerida como tal.
Os "bens comuns", como os definiu especialmente a economista estadunidense Elinor Ostrom, abrem um terceiro espaço entre o mercado e o estado, entre o privado e o público. Eles podem nos guiar para um mundo mais resiliente, capaz de suportar choques como o causado por essa pandemia.
A saúde, por exemplo, deve ser tratada como uma questão de interesse coletivo, com modalidades de intervenção articuladas e estratificadas. No nível local, por exemplo, as comunidades podem se organizar para reagir rapidamente, limitando os grupos de pessoas infectadas pela Covid-19. No nível estadual, é necessário um serviço hospitalar público poderoso. O nível internacional, as recomendações da OMS para combater uma epidemia devem se tornar vinculantes. Poucos países seguiram as recomendações da OMS antes e durante a crise. Estamos mais dispostos a ouvir os “conselhos” do Fundo Monetário Internacional (FMI) do que os da OMS. O cenário atual mostra que estamos errados.
Atualmente, testemunhamos o nascimento de vários "bens comuns": como os cientistas que, fora de qualquer plataforma pública ou privada, se coordenaram espontaneamente através da iniciativa OpenCovid197, para compartilhar informações sobre as boas práticas de screening dos vírus. Mas a saúde é apenas um exemplo: meio ambiente, educação, cultura e biodiversidade também são bens comuns globais. Devemos imaginar instituições que nos permitam valorizá-las, reconhecer nossas interdependências e tornar resilientes as nossas sociedades.
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A mão pública na recuperação após a emergência da Covid-19. Artigo de Gaël Giraud - Instituto Humanitas Unisinos - IHU