02 Abril 2020
Em situações de crise como desastres ou pandemias, os cidadãos podem perder muito. As elites aproveitam tais momentos para aprovar reformas impopulares que agravam as divisões econômicas e sociais. Mas também supõem uma oportunidade de mudança. É o que a jornalista Naomi Klein denomina de “doutrina do choque” ou “capitalismo da catástrofe”. A canadense ofereceu um encontro virtual no último dia 26 de março, de sua casa em New Jersey, no qual compartilhou sua visão da crise do coronavírus e a situação de isolamento vivida por grande parte do planeta. “Esta é uma crise global que não respeita fronteiras. Infelizmente, os líderes em todo o mundo estão buscando uma forma de explorá-la. Sendo assim, nós também devemos compartilhar estratégias”, destacou.
A reportagem é de Diana Moreno, publicada por El Salto, 01-04-2020. A tradução é do Cepat.
“Acredito no distanciamento social, precisamos ficar em casa. E uma das razões é que nossos líderes não prestaram atenção aos sinais de advertência e impuseram uma brutal austeridade econômica no sistema público de saúde, deixando-o dissecado e sem a capacidade de lidar com este tipo de situação que estavam vendo”, opina Klein. Recorda que o sul da Europa foi o “marco zero das políticas de austeridade mais sádicas”, após a crise financeira de 2008. “Causa surpresa que seus hospitais, apesar de ter atenção médica pública, estejam tão mal equipados para enfrentar esta crise?”, questiona.
Para recordar como a gestão desta crise sociossanitária está em mãos erradas, Klein oferece o exemplo estadunidense. O vice-presidente Mike Pence, considerado por Klein o artífice da pilhagem de Nova Orleans, após o Furacão Katrina, é agora a pessoa designada por Trump para dar resposta à crise do coronavírus. E o banqueiro e atual secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, encarregado do plano de resgate para enfrentar a pandemia, foi um dos que mais se enriqueceram durante a crise de 2008. “Há uma tendência em colocar o foco só em Donald Trump, mas é importante compreender que está cercado por este gabinete de ex-diretores executivos e políticos com um longo histórico de serviço aos interesses das corporações”, destaca Klein.
O sistema capitalista “sempre esteve disposto a sacrificar a vida em grande escala em prol do lucro”, destaca. Dão razão a alguns milionários estadunidenses que recentemente pediram que os trabalhadores voltem aos postos de trabalho para salvar a economia, ainda que a pandemia cobre vidas. “Essa é a história do colonialismo, do tráfico transatlântico de escravos, das intervenções estadunidenses pelo mundo... É um modelo econômico ensopado de sangue”, denuncia a intelectual. E agora as pessoas começam a perceber: “As pessoas que antes não enxergavam, estão ligando a televisão e vendo os comentaristas e políticos da Fox News dizer que talvez devessem sacrificar seus avós para que possamos subir os preços das ações. E se pergunta: que tipo de sistema é este?”.
Não é algo novo, destaca Klein, mas o mais radical é a escala do sacrifício. “Agora, em razão da nossa profunda crise ecológica, por causa da mudança climática, é a habitabilidade do planeta que está sendo sacrificada. É por isso que devemos pensar que tipo de resposta iremos exigir, e esta precisa estar baseada nos princípios de uma economia verdadeiramente regenerativa, baseada no cuidado e na reparação”, destaca.
A jornalista afirma que há momentos em que acredita viver no que chama de distopia do Vale do Silício. “O fato de que estejamos distanciados significa que agora muitos de nós estamos passando nossas vidas presos às telas. Nossas relações sociais estão mediadas por plataformas corporativas como YouTube [plataforma por meio da qual ofereceu o encontro online], Twitter, Facebook, etc. Nossa ingestão calórica diária é entregue pela Amazon Prime. E as pessoas que estão fazendo esse trabalho são incrivelmente vulneráveis”. Klein supõe que para aqueles que mais se beneficiam com isso, como Jeff Bezos, a única debilidade deste sistema é que a entrega de comida e pacotes tenha que ser realizada pelos humanos: “Prefeririam que fossem drones ou robôs que não pudessem adoecer”.
Desse modo, estamos vendo o mundo que o Vale do Silício desejava, destaca Klein. E é uma visão muito sombrio. “Esta não é a forma como queremos viver. Deveríamos enxergar uma oportunidade na rejeição a esse futuro, na forma como saímos desta crise”. “Quando as pessoas falam sobre quando as coisas voltarão à normalidade, precisamos recordar que a normalidade era crise”, adverte. “É normal que a Austrália ardesse há alguns meses? É normal que a Amazônia ardesse alguns meses antes? É normal que tenha sido cortada repentinamente a energia de milhões de pessoas na Califórnia porque seu provedor privado acredita que essa seria uma boa maneira de prevenir outro incêndio florestal? O normal é mortal. A ‘normalidade’ é uma imensa crise. Precisamos catalisar uma massiva transformação para uma economia baseada na proteção da vida”.
Para Klein, portanto, cumpre-se o ditado de que os momentos de crises são também de oportunidade para avançar para a sociedade que queremos, para essa transformação. “A boa notícia é que estamos em uma posição melhor que em 2008 e 2009. Trabalhamos muito nos movimentos sociais, durante esses anos, para criar plataformas de pessoas”, destaca.
“Houve estratégias admiráveis idealizadas pelas pessoas para utilizar a tecnologia na ajuda mútua”, disse. Enaltece os protestos de enfermeiras ocorridos desde que começou a crise sociossanitária, as reivindicações de trabalhadores por seus direitos, as greves de aluguel e os panelaços no Brasil contra Bolsonaro.
“Precisamos desenvolver novas ferramentas de desobediência civil que nos permitam atuar a distância”, disse. “Estou muito esperançosa com as formas que as pessoas têm para colaborar nesse momento, e isso carrega uma ironia, porque é certo que nunca estivemos tão distantes fisicamente, mas talvez é por causa da distância física que estamos tão decididos a chegar do outro lado”.
Klein opina que os governos deveriam cair pelo que está acontecendo. “Precisamos estar indignados, muito indignados. Precisamos nos inspirar nos tipos de movimentos de massas que derrubaram os governos em momentos de crise anteriores”, sugere, e se mostra convencida de que não conseguiremos alcançar a segurança, a não ser que lutemos por isso. “Não é um lugar para o qual podemos voltar. É um lugar que temos que construir juntos e um lugar pelo qual temos que lutar”, conclui.
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“O normal é mortal. A ‘normalidade’ é uma imensa crise”, afirma Naomi Klein - Instituto Humanitas Unisinos - IHU