03 Abril 2020
"O contexto em que o mundo vive nestes três primeiros meses de 2020, são atípicos às gerações moderna e contemporânea. No último século é certo que a humanidade sofreu com as duas grandes Guerras mundiais que assolaram o mundo, e ceifaram milhares de vidas", escrevem Luciana Machado Januário, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUCPR e Waldir Souza, doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio e professor da PUCPR.
Em trinta dias praticamente as nações do mundo conheceram a morte chegar calmamente na China, instalando-se definitivamente em todos os continentes com o nome de Coronavírus, ceifando vidas coletivamente. Nenhum dinheiro, economia são capazes de retirar o pavor, a angústia, e a dor que há em cada ser humano. A grande nação dos EUA, a capital mais abastada economicamente do mundo contemporâneo, finalmente descobre que não é capaz de alimentar e fazer respirar seu povo, com o ouro produzido. Por outro lado, os ecossistemas aproveitam a ausência das mãos humanas e, recriam-se pouco a pouco. Este vírus parece ter chegado para ensinar algo novo a humanidade, tão distante do Sagrado, de si mesma e do outro. Se antes o medo era de uma guerra nuclear que destruiria a todos de igual forma, agora o medo é da solidão, a saudade do coletivo (comunidade), do contato (toque) com o outro ser humano. Vivemos neste contexto difícil de incertezas, com o desafio ético e Bioético de garantir mesmo em meio à crise, que a linguagem teológica da esperança, da compaixão. Conscientes da nossa humanidade limitada, e de que nem sempre seremos capazes de aliviar o sofrimento do outro neste momento, mas certos de que com o agir humano, que apresenta a face do próprio Cristo sofredor, geraremos gestos de justiça, de vida, caridade e respeito.
O contexto em que o mundo vive nestes três primeiros meses de 2020 são atípicos às gerações moderna e contemporânea. No último século é certo que a humanidade sofreu com as duas grandes Guerras mundiais que assolaram o mundo, e ceifaram milhares de vidas.
Entretanto, desta vez, a guerra é contra algo invisível aos olhos, que ceifa milhares de vida em incertos noventa dias, é o Novo Coronavírus “uma doença provocada pela variação originada na China foi nomeada oficialmente pela Organização Mundial de Saúde [1] (OMS) como Covid-19” (OMS, 2020, s/p) . Esta nova variação do vírus foi reconhecida em “11 de fevereiro, e ainda não está claro como ocorreu a mutação que permitiu o surgimento do novo vírus”.
A OMS criou um alerta em dezembro de 2019 a partir da notificação pelas autoridades chinesas de que Wuhan, uma das cidades mais populosas da China, estava acometida de um surto de pneumonia declarada como misteriosa.
A partir da descoberta do vírus, das formas de transmissão, os números foram crescendo rapidamente, e a propagação em todos os países do mundo foi inevitável. Em “onze de março a OMS declarou através de seu diretor geral Tedros Adhanon Ghebreyesus o vírus como sendo uma pandemia, na data declarada eram cento e dezoito mil casos, espalhados em quatorze países”. (OMS, 2020, s/p)
Com base nas informações da OMS, muitos países foram tomando medidas na tentativa de conter a propagação do vírus, uma das medidas mais usadas em alguns países foi o chamado “isolamento social”. Com o objetivo de evitar novas contaminações, porém nem todos acolheram esta medida, e o vírus continuou a se disseminar rapidamente, levando países como a Itália, Espanha e EUA a mortes coletivas.
Uma das maiores pandemias do século XX vem trazendo consigo uma mudança devastadora nas questões humanas e éticas. As relações entre os infectados com a família e com a sociedade são cortadas bruscamente, uma vez que vírus é extremamente agressivo, e pode ser transmitido facilmente.
Com relação aos rituais de despedida, talvez seja uma das mais angustiantes e marcantes visões e sensações desta pandemia, pois devido ao alto risco de contágio, não há visitas nem despedidas. Nenhum ritual é permitido, as pessoas infectadas enfrentam o sofrimento e o angustiante processo do morrer, completamente sozinhos em seus leitos, e igualmente sozinhos encaminhados pela própria funerária local aos cemitérios.
Considerando o curto espaço de tempo desta pandemia, não foi possível criar estratégias novas de enfrentamento nas questões que remetem ao espiritual. Nem mesmo na questão de novos recursos, mesmo que tecnológicos a serem utilizados como forma de garantir a dignidade da despedida de pacientes e familiares, bem como de novos rituais de sepultamento.
Ainda se constitui um desafio ético e humano, criar ferramentas novas, que entrem em acordo com o momento e a realidade que vivemos. Porém é diante destas experiências dolorosas que a esperança, a acolhida, o apoio social, mesmo que exercidos virtualmente neste momento, é de extrema importância manter o “cuidado de proteção” aos que sofrem suas perdas.
A contemporaneidade vem nas últimas décadas buscando superar os desafios éticos e humanos, nas questões da saúde principalmente com o auxílio da Bioética e sua multidisciplinaridade. A Bioética clínica auxilia na identificação de dilemas que surgem no decorrer no cuidado à pacientes, criando diálogo para a análise e, oferecendo pontos para a resolução destes.
O momento presente do vírus COVID-19 é assustador, milhares de pessoas morrem em poucos dias acometidos desta doença, e com esta rapidez infelizmente inviabilizam medidas adequadas à pacientes, familiares e profissionais da saúde. Entretanto medidas éticas e Bioéticas devem ser fomentadas, diz o professor Alexandre A. Martins [2], diante dos dilemas que envolvem este momento:
Em algumas partes do mundo, o corona vírus já se espalhou tanto que o número de pessoas, especialmente idosos, com Covid-19 precisando de cuidados médicos, particularmente em Unidades de Terapia Intensiva (UTI), sobrecarregou o sistema de saúde, criando inúmeros dilemas éticos. A Itália é um dos exemplos dessa sobrecarga, mas muitos outros país estão a espera do mesmo cenário, inclusive o Brasil. (UNISINOS,2020, s/p).
Para Martins [3] (UNISINOS,2020, s/p) é importante olhar e “apreender com as lições que vêm da Itália é importante, uma vez que precisamos nos preparar para o colapso do sistema de saúde diante de um surto de pessoas com Covid-19 que precisarão ocupar leitos de UTI”. Um dos dilemas mais impactantes para os profissionais da saúde na Itália, foi as questões de deliberação, na tomada de decisões em que, os médicos em função da escassez dos recursos, foram obrigados a destinar leitos de UTI há quem tinha maior possibilidade de sobrevivência.
Por isso é extremamente urgente fomentar a discussão em torno das emergências éticas e Bioéticas que envolvem a saúde pública no Brasil, levando em consideração a proliferação rápida do vírus.
Para Martins [4] (UNISINOS,2020, s/p):
Novamente a experiência da Itália nos ajuda. Lá, depois de perceberam que essa responsabilidade de decisão – que muitas vezes é entre a vida de um e a morte de outro –, não pode ficar apenas nos ombros de um profissional da saúde diante dos seus pacientes (uma fonte de moral stress), várias instituições de saúde criaram um guia de recomendações de ética clínica, entra as quais se recomendam critérios de admissão em UTI, quando se deve desligar ou manter os aparelhos de ventilação mecânica, princípios de proporção clínica e de cuidados, critérios de sucesso terapêutico e transferência de paciente entre centros e unidades de cuidado.
Certamente as necessidades materiais como máscaras, respiradores mecânicos, a rotina estressante das horas de trabalho em prol da vida de seus pacientes, impactaram os psicológicos destes profissionais. A sensação de injustiça em relação à disponibilidade destes materiais, as questões a equidade social ao acesso à saúde, são fatores prejudiciais à saúde mental dos profissionais da saúde, envolvidos diretamente neste momento de crise.
No que se refere à prática humanizada dos Cuidados Paliativos modernos, a partir de Cicely Saunders [5], a finitude e a morte devem ser tratadas de forma a dignificar este momento, atendendo os pacientes na sua estrutura integral, no qual ela cunhou como “dor total”. Nesta prática o paciente é tratado em suas dores físicas, psicológicas, sociais e espirituais, que alcança de forma humanizada pacientes, familiares e profissionais da saúde.
Porém neste momento em que a COVID-19 não dispõe de métodos concretos e eficazes para a não contaminação dos que cercam este paciente, não é permitido pelas autoridades sanitárias de nenhum País, o acompanhar estes pacientes seja em forma de visitas. Nem mesmo nos seus últimos instantes de vida, muito menos dar ao falecido e aos familiares, momentos de despedida com os Ritos fúnebres.
Fica um dilema ético a ser superado com o passar do tempo, agora de forma diferente é necessário adaptar-se as condições impostas por cada País/Estado/Cidade, levando em conta a segurança dos que permanecem vivos. Evitando a proliferação do vírus.
Uma das mais tristes realidades do COVID-19, é que ele vem retirando dos mortos a dignidade, e deixando nos familiares e amigos o vazio existencial de não poder lidar com o corpo de seu ente querido, com o apoio social da presença de amigos e parentes no velório. Os rituais de despedida fazem parte da maioria das culturas, embora talvez exercidos de forma diferente, criam uma espécie de validação social.
O fato de não poder ir ao local que o ente querido foi sepultado, não poder estar acompanhando o corpo em datas especiais destinadas aos mortos, não ter a ritualística que os reconecta com o Sagrado, não ter como consolo o aparato social de amigos, vizinhos e parentes, está sendo um abismo de dor a ser superado.
Para Andrea Cerato [6] “essa pandemia mata duas vezes, primeiro, ele isola você de seus entes queridos logo antes de morrer, então, não permite que ninguém se aproxime." Ela ainda conta a impossibilidade se quer de vestir os falecidos conforme solicitação da família, ou na existência de um Testamento Vital solicitando determinada vestimenta, é impossível atender, pois os corpos são imediatamente selados.
Massimo Mancastroppa [7], lamenta que "muitas famílias nos perguntam se podem ver o corpo uma última vez, mas é proibido", os mortos não podem ser enterrados com suas roupas favoritas e mais elegantes. “Em vez disso, resta-lhes o sombrio anonimato de um traje hospitalar, cobrindo o cadáver com as roupas que a família nos dá, como se os vestíssemos", diz ele. "Uma camisa por cima, uma saia por baixo."
Na Cidade de Bergamo, que tem o maior número de casos na Itália, segundo a OMS [8] os militares tiveram que intervir, pois os cemitérios da cidade estão agora cheios. Uma noite, na semana passada, os moradores assistiram em silêncio enquanto um comboio de caminhões do Exército dirigia lentamente mais de 70 caixões pelas ruas. Cada um continha o corpo de um amigo ou vizinho sendo levado para uma cidade próxima para ser cremado.
Como responder de forma satisfatória acolhendo as pessoas enlutadas, eis um dos novos desafios éticos e Bioéticos dos Cuidados Paliativos, como adotar as novas ferramentas diante de uma realidade tão complexa? Quais as novas estratégias de lidar com a morte e luto?
São respostas que ainda não existem neste momento, mas que convidam cada ser humano a se reconstruir, pois é um momento árduo da história de toda a humanidade, na qual será lembrado por muitas gerações. É através das novas formas de enfrentamento, na missão de curar as feridas existenciais deixadas por este momento, que seremos lembrados.
Muitos de nós daqui alguns anos, iremos deixar uma lágrima discreta rolar ao relembrar de parentes, vizinhos, amigos e de tantas outras vidas ceifadas por este vírus, mas com uma convicção de esperança, de compaixão e da certeza que, de alguma forma, cumpriu sua missão enquanto ser humano. Que levou luz para acalentar e transformar o medo em paz, compaixão como presença silenciosa, e solidariedade mesmo que em preces a todos que trabalhavam arduamente para a recuperação de seus pacientes.
O momento atual de crise em todas as esferas da vida humana, assola a todos os países, ricos e pobres, grandes ou pequenas nações. Nunca em nenhum contexto da humanidade, o ser humano esteve tão nivelado, todos iguais diante da morte, que não escolhe nação, raça, crença ou poder econômico num mesmo momento, derrotado por um inimigo invisível, um vírus ainda sem possibilidade de cura.
Na chamada quarentena ou isolamento social, imposto por muitos países às suas nações, em prol de uma não contaminação em massa, fizeram ressurgir a preocupação sobre qual o valor da vida humana, e qual o sentido da existência humana. As relações sobre o ser humano e sua relação com o poder e com a tecnologia, não fazem mais sentido, uma vez que o dinheiro não é capaz de salvar vidas, e as grandes nações de poder econômico descobriram quão pequenas são diante do invisível e da morte.
Em poucos meses, aprendemos a lidar com outras realidades, até então somente vistas em filmes de ficção científica. A experiência de solidariedade, de reconhecimento do outro, possibilitam a linguagem teológica da esperança, de compaixão e de cooperação.
Traz novamente à tona a força da esperança e da fé, explicitadas pela religiosidade, pois é no distanciamento que o ser humano se percebe parte integrante da vida do cosmos, e que não pode nem consegue sobreviver sozinho. E refaz de forma positiva o reconectar-se com o seu mais íntimo, com o interior, com o “núcleo do núcleo” como chamava Edith Stein [9] a alma humana.
Neste contato de chegar no núcleo mais profundo do nosso interior, é possível novamente fazer a experiência da contemplação, das criaturas e da natureza, impulsionando-nos a repensar nossa postura no mundo e diante dos outros seres humanos.
Para a Teologia a linguagem de esperança se faz presente mesmo nas maiores adversidades da vida. O amplo leque de mudanças em curso trazidos pelo COVID-19, atingem praticamente todas as esferas da vida, certamente traz incertezas, mas também oportunidades.
Assim sendo, os novos desafios éticos e bioéticos não podem ser separados da centralidade da pessoa humana. Apesar de estarmos mergulhados neste tempo de crise, trata-se de um olhar para as novas possibilidades de construir novas respostas, para as novas perguntas que surgem, sempre alicerçados na dignidade da vida humana, na experiência de uma espiritualidade profunda, que gere cuidado, amor e compaixão.
[1] Organização Mundial da Saúde (OMS). Disponível aqui.
[2] Professor de bioética e ética social na Marquette University em Wisconsin, nos EUA.
[3] Disponível em IHU acesso em 29 de mar. 2020.
[4] Disponível em IHU acesso em 29 de mar. 2020.
[5] SAUNDERS, Cicely. Velai Comigo – Inspiração para uma vida em cuidados paliativos. Tradução Franklin Santana Santos – Editor FSS: Salvador, 2018. Editor FSS. p.07.
[6] Andrea Cerato é proprietária de uma Funerária em Milão na Itália. (Fonte BBC World Service 25 março 2020).
[7] Massimo Mancastroppa agente funerário de Cremona. BBC World Service 25 março 2020.
[8] OMS, 2020, s/p.
[9] STEIN, Edith. Ser Finito e Ser Eterno. Coordenação João Ricardo Moderno. Tradução: Zaíra Célia Crepaldi. 1ª Ed. Rio de Janeiro- Forense Universitária, 2019. p.395.
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Os novos desafios éticos e bioéticos que surgem com a pandemia do Covid-19 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU