“Na Igreja primitiva era impensável uma pessoa não comparecer à assembleia litúrgica no domingo. Todos conhecemos o episódio de Tomé. Por que ele foi repreendido por Jesus? Porque ele abandonou o caminho da comunidade, porque Jesus não está no túmulo; está na comunidade. Então, domingo é um dia de encontro marcado com o ressuscitado. Os cristãos não podem ficar sem se reunir com seus irmãos no domingo”, diz a religiosa da Congregação das Irmãs Discípulas do Divino Mestre, especialista em liturgia
A celebração da Páscoa, desmembrada em três dias durante o Tríduo Pascal, é o ponto alto da profissão de fé cristã: anunciamos a morte, o sepultamento e a ressurreição de Jesus Cristo. A celebração litúrgica e a vivência espiritual destes três dias fazem memória não só aos fatos históricos em torno da vida de Jesus, mas abrem espaço para transformar e confirmar na fé os cristãos e batizar aqueles que encontram nas palavras do Ressuscitado o sentido último da existência. “A noite está sendo iluminada. Acendemos a fogueira, o Círio, e a escuridão começa a abrir espaço para a luz. Enquanto realizamos este gesto, existe um movimento interno em nós: o diálogo com a nossa própria realidade de escuridão; vamos abrindo espaço, no nosso coração, para que a luz que está clareando a noite clareie também a escuridão que nos habita. Nós, então, rezamos em comunhão por tantos que precisam desta luz. É importante esse mergulho na noite porque só quem caminha durante a noite pode saber da importância da luz. Enquanto tudo é claro, não sabemos a importância da luz. Assim é a nossa experiência humana: quando tudo está às mil maravilhas, tudo está bem, mas quando passamos pelo fundo do poço, pelo fundo do túnel, ansiamos pela luz e a buscamos”, resume Irmã Maria da Penha Carpanedo.
Em preparação para a celebração e vivência do Tríduo Pascal, a religiosa da Congregação das Irmãs Discípulas do Divino Mestre, atuante na formação litúrgica das comunidades em todo o país, ministrou, na semana passada, o minicurso virtual, intitulado o “Tríduo Pascal – Coração do Ano Litúrgico”, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Na ocasião, ela explicou o sentido litúrgico e espiritual destes três momentos da vida de Jesus.
O primeiro dia do Tríduo, a Sexta-feira Santa, resume, “revela a verdadeira natureza do mundo, que preferiu e continua a preferir as trevas à luz, o pecado ao bem, a morte à vida. Condenando Cristo à morte, este mundo condenou a si mesmo à morte. Aqui não cabe fazer um moralismo pequeno. Temos que pensar no grande mal do mundo. Bastaria pensar no que está acontecendo com o povo Yanomami. Diante disso, como poderíamos pensar que o mal é coisa do passado? Existe um mal que está instalado na estrutura do mundo e nós somos minados por este mal, o qual acabamos reproduzindo também em nossa vida pessoal. A Sexta-feira Santa denuncia que o mal ainda está presente na humanidade”.
O Sábado Santo, dia da sepultura do Senhor, segundo a Irmã Penha, por vezes parece que “desapareceu do horizonte espiritual da Igreja”, “às vezes, se reduz a um dia de limpar a Igreja”, mas é uma data que “evoca uma experiência muito dura”, da qual “talvez tenhamos medo”. Espiritualmente, afirma, “não podemos pular este momento; temos que passar por dentro, passar pelo túnel da sepultura, para chegar à Páscoa”.
Na Vigília Pascal, celebrada na noite do sábado para o domingo, os cristãos fazem “uma experiência forte” da presença de Deus na história, herdada dos antepassados. Segundo ela, os textos de Santo Agostinho mostram essa herança. “A Vigília Pascal em Hipona era uma apoteose espiritual, não no sentido de ostensiva, mas no sentido de grandeza espiritual”.
A seguir, publicamos a exposição de Irmã Penha no formato de entrevista, destacando os principais elementos da apresentação. Ela explica as origens desta celebração litúrgica, suas transformações e reformas ao longo dos séculos, e esclarece dúvidas sobre a possibilidade de vivenciar este momento em comunidades onde não há presença de sacerdotes. “Muitas comunidades Brasil afora comemoram sem proferir as palavras da consagração porque, não sendo missa e não tendo a ordenação, não podemos fazer isso. Mas isso não significa que não possamos celebrar a memória da Ceia de Jesus. (...) na comunidade de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, as comunidades ribeirinhas não têm comunhão, mas elas fazem uma partilha em memória de Jesus. O que não pode é não fazer nada. Podemos celebrar; pelo batismo somos habilitados. Não vamos fazer a eucaristia, mas é preciso entender que a liturgia não é só missa. Liturgia é celebração da Palavra, benção da mesa, ofício, uma benção da casa. Existem muitas formas de fazer o memorial de Jesus na comunidade de fé”, esclarece.
O minicurso na íntegra está disponível aqui.
Maria da Penha Carpanedo coordena o serviço de redação da Revista de Liturgia e atua na formação litúrgica das comunidades e nas Escolas de Liturgia, sob a perspectiva da iniciação cristã.
IHU – O que é o Tríduo Pascal?
Maria da Penha Carpanedo – O Tríduo Pascal é uma ressignificação da nossa experiência humana cristã e compreende três dias: Sexta da Paixão, Sábado da Sepultura e Domingo da Ressurreição do Senhor.
O Tríduo Pascal transforma a nossa perversidade. O Papa Francisco insiste nisto: não somos responsáveis pela nossa salvação; ela é gratuidade e dom de Deus. Na celebração do Tríduo Pascal, entramos nessa imensa gratuidade de Deus em Jesus, que entra na nossa humanidade e se humaniza para nós nos divinizarmos. Gosto de pensar que o contrário do humano não é o divino; o contrário do humano é a perversidade, o desumano. O divino coincide com o humano se trilharmos o jeito que Jesus viveu como humano. O Tríduo nos coloca nesta esperança de transformarmos, a partir de nós, o mundo que ainda está sob o jugo do mal.
O Tríduo não é, como muitas vezes as pessoas pensam, uma preparação para a Páscoa. A preparação para a Páscoa é a Quaresma, que termina na quinta-feira à noite, com a Ceia Pascal. A Quaresma nos prepara para a Vigília Pascal; é o tempo de revisitarmos a nossa condição batismal. Nos tornamos pessoas novas pelo batismo, mas o turbilhão da vida e os afazeres, por sua vez, fazem com que nos esqueçamos disso. Então, Deus, todos os anos, nos dá a Quaresma para realinharmos a nossa vida com o nosso batismo.
O ponto alto do ano litúrgico é a Vigília, a noite batismal em que novos membros são acolhidos na Igreja, quando renovamos o nosso batismo. Mas, nos demais dias, celebram-se os aspectos desse mistério. A sexta-feira põe ênfase na morte, o sábado, na sepultura, e o domingo, na ressurreição.
Na quinta-feira à noite começa o Tríduo, a festa da Páscoa celebrada em três dias. A quinta-feira conta como um momento, mas não como um dia do Tríduo. Desde as origens, a celebração da quinta-feira tem um caráter de primeiras vésperas, de abertura do Tríduo. Nos primeiros séculos, ela era muito simples, mas, com o tempo, foi ganhando peso. Hoje, a celebramos em tom festivo: tem flores, velas, antífona de entrada, o canto do Glória, a cor litúrgica é o branco e não mais o roxo, indicando que a Quaresma ficou para trás e inicia-se a festa da Páscoa.
Nesta noite, repetimos, no plano simbólico, aquilo que depois se realiza na cruz: na ceia, Jesus, simbolicamente, se entrega; na cruz, existencialmente, ele se entrega. Neste dia, renovamos a consciência que o Concílio nos devolveu, de que a missa é Ceia. Nós passamos muitos séculos sem perceber isso, com o padre de costas para o altar, comendo sozinho e o povo nem sequer tinha acesso à mesa da comunhão. Na consciência que a missa é Ceia, há a exigência de comungarmos no pão e no vinho, de usarmos pão e não partículas, de comungar daquela missa e não pegar do sacrário. Inclusive, depois da missa da quinta-feira, o sacrário fica aberto para não acontecer que, na noite da Páscoa, comunguemos do sacrário. Mesmo depois da reforma, ainda insistimos na falta de clareza de que a missa é Ceia. Se é Ceia, comemos da comida que é colocada nessa mesa.
Neste dia também tem o Lava-pés, que é outra versão da eucaristia: Jesus eterniza o gesto de Maria de Betânia na Ceia de Betânia, quando ela lava os pés dele com perfume.
O primeiro dia do Tríduo é a Sexta-feira Santa, a Páscoa da cruz, como chamavam os Padres da Igreja. Este dia expressa, de um lado, tristeza e luto pela condenação e morte de Jesus. Frequentemente, é com sentimento da nossa própria justiça e integridade que contemplamos a tristeza solene destes ofícios. Há dois mil anos, homens ‘maus’ mataram Jesus. Mas a Sexta da Paixão revela a verdadeira natureza do mundo, que preferiu e continua a preferir as trevas à luz, o pecado ao bem, a morte à vida. Condenando Cristo à morte, este mundo condenou a si mesmo à morte. Aqui não cabe fazermos um moralismo pequeno. Temos que pensar no grande mal do mundo.
Bastaria pensar no que está acontecendo com o povo Yanomami. Diante disso, como poderíamos pensar que o mal é coisa do passado? Existe um mal que está instalado na estrutura do mundo e nós somos minados por este mal, o qual acabamos reproduzindo também em nossa vida pessoal. A Sexta-feira Santa denuncia que o mal ainda está presente na humanidade. Mas, de outro lado, a Sexta-feira Santa assume uma dimensão de ação de graças pela fidelidade do Filho ao Pai até a doação de sua vida. A morte do Cristo nos é revelada como uma morte para nossa salvação. O Cristo nos dá sua morte porque, na verdade, é em nosso lugar que Ele morre. Ele quer assumir e compartilhar da nossa condição humana até o fim, menos no pecado, porque em Jesus Cristo não há pecado, logo, não há morte. É somente por amor a nós que ele aceita morrer. Sua morte é então a revelação suprema de sua compaixão e de seu amor. A condenação é transformada em perdão.
A Sexta-feira da Paixão, em perspectiva bíblica, sobretudo do Evangelho de João, é “Paixão gloriosa”, celebra o Amor Maior, madrugada da Ressurreição. Ao fazer memória da bem-aventurada Paixão do Senhor, a Igreja comemora o seu próprio nascimento do lado de Cristo na cruz.
O segundo dia do Tríduo é o Sábado Santo. O Sábado Santo, mesmo depois da reforma, acabou ficando como um dia “apagado” na celebração do Tríduo Pascal. Às vezes, se reduz a um dia de limpar a Igreja, mas, Cristo morreu, foi sepultado e ressuscitou. Então, faz parte do mistério de Jesus a Kénosis do Sábado Santo, o dia do repouso. Deus descansou no sétimo dia, na primeira criação. Jesus repousa do seu cansaço e trabalho no sétimo dia, para gerar uma nova criação no primeiro dia depois do sábado. O foco deste dia é a sepultura do Senhor, a certificação de sua morte, pertencente à forma mais antiga da fé, o Credo da Igreja: “Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras” (1Cor 15,3-4). Na liturgia ressoa o convite: “Cristo por nós padeceu, morreu e foi sepultado: vinde todos, adoremos!”
Este texto, de Alexandre Schemémann, da Igreja Oriental, é maravilhoso para compreendermos a mística do Sábado Santo, que evoca uma experiência muito dura; talvez tenhamos medo dessa identificação:
“O ‘grande e santo Sabbat’ é o dia que liga a Sexta-feira Santa à comemoração da cruz, ao dia da ressurreição. Para muitos, a verdadeira natureza e o sentido desta ligação, a necessidade real deste dia intermediário, permanece obscura.
Para a grande maioria daqueles que vão à Igreja, os dias ‘importantes’ da grande semana são a Sexta-feira e o Domingo, a cruz e a ressurreição. Estes dois dias, entretanto, ficam de alguma forma distintos. Há um dia de tristeza e depois um dia de alegria. Nesta sucessão, a tristeza é simplesmente substituída pela alegria. Mas segundo ensinamento da Igreja, expresso na sua tradição litúrgica, a natureza desta sucessão não é uma simples substituição. A Igreja proclama que o Cristo ‘venceu a morte pela morte’; isto quer dizer que, antes mesmo da ressurreição, coloca-se um acontecimento no qual a tristeza não é simplesmente substituída pela alegria, mas ela própria é transformada em alegria. O grande Sábado é precisamente este dia de transformação, o dia em que a vitória germina de dentro mesmo da derrota, uma vez que antes da ressurreição nos é dado contemplar a morte da própria morte.”
O sepultamento é doloroso demais e não podemos negar este lugar; ele tem que ser assumido. Jesus entra nesse lugar do cumprimento da nossa finitude humana e transforma o significado da nossa vida. É uma pena que o Sábado Santo passe meio desapercebido.
Neste dia, em várias comunidades, são rezados os Ofícios; um deles é o Ofício da descida à mansão dos mortos, mas também há textos patrísticos e salmos belíssimos para este dia. Essas são maneiras de entrarmos no mistério da sepultura de Jesus antes de passar da Sexta para o Domingo. Não podemos pular este momento; temos que passar por dentro, passar pelo túnel da sepultura, para chegar à Páscoa. Infelizmente, na experiência de algumas comunidades, há adoração ao Santíssimo, coisa que é proibida pela Igreja. A adoração vai até a meia noite da quinta.
O terceiro dia é o domingo da ressurreição. A Vigília é celebrada na missa vespertina, aquela que já está em conexão com o dia seguinte. A Vigília Pascal é o eixo estruturador do ser cristão: a noite em que se admitem novos membros mediante a iniciação cristã através do batismo, da crisma e da eucaristia.
A referência da Vigília é o êxodo, este grande acontecimento na trajetória do povo hebreu, quando Deus escutou o grito de sofrimento do povo e decidiu libertá-lo. Toda a Bíblia faz referência a esse evento fundante.
A memória daquela noite em que as mulheres enfrentaram a cidade de Jerusalém, depois da morte de Jesus, é um chamamento a entrarmos na noite, em nossas noites, nas noites escuras do povo, de tanta gente que é vítima das trevas. Não podemos ter medo da noite porque ela abriga o mistério da luz que vence as trevas. Essas primeiras testemunhas da fé, que enfrentaram a escuridão, não estavam enfrentando somente a escuridão da noite cósmica, mas a escuridão da noite, da perda, da decepção, da angústia de ter perdido o mestre. Foi neste mergulho da noite que elas descobriram que Jesus estava aqui. Este é o chamamento que temos a cada ano: de entrarmos na noite da Vigília e, entrando na noite deste mistério, entramos nas nossas noites. Quem já não passou por uma noite na vida?
Começamos a Vigília nos reunindo em um lugar fora da Igreja. O ato de se reunir no meio da noite e o acendimento do Círio são significativos. Neste momento, cantamos ou rezamos:
“A luz de Cristo, que resplandecentemente ressuscita,
Dissipe as trevas do nosso coração,
Dissipe as trevas da nossa mente.”
A noite está sendo iluminada. Acendemos a fogueira, o Círio, e a escuridão começa a abrir espaço para a luz. Enquanto realizamos este gesto, existe um movimento interno em nós: o diálogo com a nossa própria realidade de escuridão; vamos abrindo espaço, no nosso coração, para que a luz que está clareando a noite clareie também a escuridão que nos habita. Nós, então, rezamos em comunhão por tantos que precisam desta luz. É importante esse mergulho na noite porque só quem caminha durante a noite pode saber da importância da luz. Enquanto tudo é claro, não sabemos a importância da luz. Assim é a nossa experiência humana: quando tudo está às mil maravilhas, tudo está bem, mas quando passamos pelo fundo do poço, pelo fundo do túnel, ansiamos pela luz e a buscamos.
Depois do acendimento do Círio, vem a procissão luminosa, precedida pelo Círio aceso, acompanhada pela assembleia que gradativamente acende suas velas e traz à memória a coluna de fogo que guiava os israelitas na saída do Egito. Há um diálogo com o êxodo: repetimos o mesmo gesto do povo hebreu naquela noite: quando eles estavam confusos, a coluna de fogo aparecia e guiava o povo em direção à saída da escravidão.
A benção do Círio se desdobra no Exulte [Proclamação da Páscoa], o grande elogio à noite feliz, que viu a ressurreição. Reconhece-se nela a noite do Êxodo, na qual Jesus já estava presente quando Deus retirou os filhos de Israel do Egito e, transpondo o mar Vermelho, os conduziu a terra da liberdade.
Começamos dizendo que a Vigília Pascal é uma vigília batismal porque tem relação com o batismo. Quando somos batizados, recebemos uma luz. No início da Igreja, o batismo tinha o nome de sacramento da iluminação; ele era a iluminação da pessoa. O elemento da vela, da coluna de fogo, traz, para nós, a significação do nosso batismo. Estamos ressignificando o batismo nesta noite, estamos reacendendo a vela do nosso batismo neste primeiro rito.
O segundo bloco do rito da Vigília Pascal é a liturgia da Palavra. Nenhuma liturgia da Igreja tem uma liturgia tão grande quanto a da Vigília Pascal: são oito leituras, isto é, um longo relato da história de Deus com seu povo. Antes das leituras é feita uma introdução muito bonita, que está no Missal Romano: “Tendo iniciado solenemente esta vigília, ouçamos, no recolhimento desta noite, a Palavra de Deus. Vejamos como ele salvou outrora o seu povo e, nestes últimos tempos, enviou o seu Filho como Redentor. Peçamos que o nosso Deus leve à plenitude a salvação inaugurada na Páscoa”.
A plenitude da salvação acontece para nós dentro da liturgia. Tudo se realizou em Cristo plenamente, mas o Cristo cresce na comunidade que crê. Nós não superamos Cristo, mas ele cresce em nós. Essa plenitude acontece na própria celebração se aceitarmos corresponder a esse dom. Por isso, a oração pede a nossa abertura. O fio condutor que perpassa todas as leituras desta noite é o batismo.
O livro do Gênesis, que é a primeira leitura, sobre a criação do mundo, de Adão e Eva, perpassa pelo batismo: a nova criação, o novo homem e a nova mulher. No Êxodo, a passagem pelo mar Vermelho é a imagem da nossa passagem pela água do batismo. Depois tem a leitura do Sacrifício de Abraão. Cada leitura é acompanhada de um salmo que ajuda a comunidade a entrar em oração e todas elas se conectam com o pedido feito no Evangelho: “Ide e batizai todas as nações, tornai todos discípulos”. Esta é a missão da Igreja. Na noite em que a Igreja renova seu batismo, renova também o desejo de que esse batismo chegue a mais gente, a todas as nações.
Na sequência das leituras, lê-se a Carta aos Romanos, 6,3-11, que é muito importante porque Paulo faz uma verdadeira teologia do batismo. É a última leitura que ouvimos depois da oração da Vigília. Em seguida, tem o relato do Evangelho. Na Vigília, escutamos os sinóticos. Neste ano, que é o ano A, vamos escutar Mateus, que relata o encontro das mulheres com Jesus no túmulo. Nos outros dois sinóticos, as mulheres não se encontram com Jesus; elas escutam o anúncio do anjo. Mas, em Mateus, há o encontro. O encontro das mulheres com o ressuscitado é maravilhoso: elas se prostram, se inclinam, abraçam seus pés e Jesus repete para elas o mesmo anúncio que o anjo anunciou anteriormente: “Vão aos meus irmãos e digam a eles que me esperem na Galileia”.
Essas mulheres, que não tinham nenhum poder, nenhum reconhecimento, e nada do que faziam tinha valor jurídico, foram autorizadas não só pelo anjo, mas pelo próprio Jesus, a serem testemunhas da ressurreição. O Evangelho de Mateus narra que elas saíram e foram correndo anunciar. É uma coisa muito forte. Se pensarmos isso do ponto de vista batismal, aqui estamos no coração daquilo que o batismo nos propõe: essas mulheres são discípulas fiéis que acompanharam Jesus até a Galileia, foram até a cruz, assistiram ao sepultamento, e agora vão ao túmulo, enfrentando a noite perigosa de Jerusalém. É um testemunho tão grande de seguimento, de fidelidade. É o que o batismo pede de nós: ele nos coloca no seguimento de Jesus e é para isso que vamos renovar o batismo nesta noite.
Na primeira oração do primeiro domingo da Quaresma, pedimos: “Concedei-nos, ó, Deus onipotente, que, ao longo desta Quaresma, possamos progredir no conhecimento de Jesus Cristo e corresponder ao seu amor por uma vida santa”. Aí estamos diante do testemunho eloquente da comunidade primitiva, onde o conhecimento de Jesus está estampado não no conhecimento teórico e racional, mas em um conhecimento de vida, de entrega total e de identificação com a sua vida, seu destino: essas mulheres vão sem medo encontrar com o ressuscitado. Isso é muito forte.
Nesta noite, a homilia se detém no Evangelho. Aliás, o Evangelho deveria ser sempre o ponto de partida de uma homilia. Claro que pode ter diálogo e algum link com outras leituras ou outros elementos da celebração.
O terceiro momento da celebração é a liturgia batismal, com a benção da água. Neste momento, percorre-se a história da salvação pela via das águas: a água da criação, do dilúvio, a água que sai do lado direito do templo, do mar Vermelho, do Jordão, do lado aberto de Cristo, até a água que está na nossa fonte batismal. Quando chega aí, ao invés de fazer memória, faz-se o pedido para que quem mergulhar nela possa se tornar como Jesus. É uma benção preciosa e fundamental. Nesta noite, os catecúmenos serão batizados, crismados e os fiéis serão aspergidos depois de renovarem as promessas do batismo. Com isso, reafirmamos a nossa inserção no mistério crucificado-ressuscitado, no qual participamos por meio do batismo e da confirmação.
A liturgia eucarística é o quarto momento da celebração, o ponto alto da Vigília; é o novo maná que alimentava o povo de Deus pelo deserto e é nosso alimento. A eucaristia desta noite é a ação de graças mais alta que a Igreja dá ao Pai pelo mistério pascal de Jesus. A eucaristia da noite pascal se reveste de uma importância porque é nesta eucaristia que os novos membros estão sendo integrados na Igreja pela participação da Ceia do Senhor e porque nós, que já fomos batizados há mais tempo, entramos nesta eucaristia de modo mais profundo, retomando todo seu sentido em nossa vida.
Temos que ter muito cuidado porque, como a liturgia é muito longa, parece que muitos estão querendo concluí-la neste momento, mas isso seria uma pena, porque, de fato, aí é que está o momento culminante da celebração. Que bom seria se pudéssemos usar somente hóstias grandes para fazer a fração do pão, porque foi isso que Jesus fez: tomou o pão, deu graças, partiu-o e o deu aos seus discípulos – e repartiu o pão na mesa.
Tem uma oração eucarística que, na intercessão sobre o povo, diz: “Olhai para a tua Igreja que está em torno deste altar”. Quando uma celebração eucarística diz isso, ela não está fazendo uma metáfora. Está imaginando que a assembleia está mesmo em torno do altar. O verdadeiro lugar do altar seria no centro do espaço, de modo que a assembleia fique de fato em torno e, sobretudo na comunhão, possa se aproximar dessa mesa sagrada, da qual todos podemos nos aproximar.
Esta é a nossa Vigília, uma experiência forte que herdamos dos nossos antepassados. Infelizmente, durante aproximadamente mil anos, a Vigília Pascal não aparecia aos nossos olhos. Muitas pessoas, até hoje, em lugares distantes, não fizeram uma experiência profunda de participar da Vigília Pascal. Nós temos que, novamente, nos deixar tomar pela Vigília. Não é uma coisa tão simples. Mas nossos antepassados, como Astério de Amaseia, quando falam da Vigília Pascal, mostram que eram pessoas que mergulhavam na experiência da Páscoa, como mostra este texto.
Texto de Astério de Amaseia (Foto: Reprodução YouTube)
Esta não é uma poesia vazia; está carregada da experiência de participar da Vigília da noite da Páscoa. Só quem participa profundamente pode produzir um texto dessa grandeza. O mesmo pode-se dizer dos textos de Santo Agostinho. A Vigília Pascal em Hipona era uma apoteose espiritual, não no sentido de ostensiva, mas no sentido de grandeza espiritual.
IHU – Qual é o papel das mulheres nestes três momentos da vida de Jesus?
Maria da Penha Carpanedo – Vou iniciar esta exposição com um relato da manifestação de Jesus depois da morte, no primeiro dia da semana, segundo Lucas:
“No primeiro dia da semana, bem de madrugada, as mulheres foram ao túmulo de Jesus, levando os perfumes que haviam preparado. Elas encontraram a pedra do túmulo removida. Mas, ao entrar, não encontraram o corpo do Senhor Jesus e ficaram sem saber o que estava acontecendo. Nisso, dois homens com roupas brilhantes pararam perto delas. Tomadas de medo, elas olhavam para o chão, mas os dois homens disseram ‘Por que estais procurando entre os mortos aquele que está vivo? Ele não está aqui. Ressuscitou! Lembrai-vos do que ele vos falou, quando ainda estava na Galileia: ‘O Filho do Homem deve ser entregue nas mãos dos pecadores, ser crucificado e ressuscitar ao terceiro dia.’’ Então as mulheres se lembraram das palavras de Jesus. Voltaram do túmulo e anunciaram tudo isso aos Onze e a todos os outros. Eram Maria Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago. Também as outras mulheres que estavam com elas contaram essas coisas aos apóstolos. Mas eles acharam que tudo isso era desvario, e não acreditaram. Pedro, no entanto, levantou-se e correu ao túmulo. Olhou para dentro e viu apenas lençóis. Então voltou para casa, admirado com o que havia acontecido.”
Essas mulheres aparecem em todos os relatos da Paixão. São as que haviam seguido Jesus desde a Galileia até a cruz e O acompanharam também no sepultamento. Elas são imagem da comunidade discípula de Jesus, que se mantêm fiel até a cruz, lideradas por Maria Madalena. Hoje, as pesquisas são avançadas sobre este aspecto e Lucas dá um testemunho bonito sobre esse discipulado em 8,1-3:
“Jesus percorria cidades e povoados, pregando e anunciando a boa notícia do Reino de Deus. Os doze iam com ele, e também algumas mulheres que tinham sido curadas de espíritos maus e de doenças: Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete demônios; Joana, mulher de Cusa, alto funcionário de Herodes; Suzana e muitas outras, que serviam a Jesus com os bens que possuíam.”
Este texto é muito importante porque Lucas coloca as mulheres no mesmo nível dos apóstolos. Elas tinham um papel importante e tudo indica que eram mulheres que tinham autonomia, em uma época em que as mulheres não tinham nenhuma autonomia, sobretudo do ponto de vista econômico. Em todos os relatos da ressurreição, são as mulheres que vão ao túmulo por primeiro. Mas quem está indo ao túmulo é a comunidade, uma comunidade que tem o protagonismo feminino.
IHU – Como a comunidade faz a experiência de Cristo após a Paixão e Ressurreição?
Maria da Penha Carpanedo – Depois da morte de Jesus, a comunidade descobriu que ele estava vivo porque a comunidade se reunia e, nessas reuniões semanais e diárias, lembravam e repetiam as palavras e gestos dele. Fazendo isso, foram descobrindo que Jesus estava vivo e sua presença era perceptível no meio da comunidade. A lembrança das palavras de Jesus é um elemento central nas comunidades de origem. A memória da Palavra evolui para uma liturgia da Palavra. No relato dos discípulos de Emaús está a estrutura da liturgia que temos hoje: o ponto alto é Cristo, a Palavra, o Verbo e, a partir do Verbo encarnado e crucificado, lembramos as Escrituras. Até hoje é assim.
Jesus não está mais fisicamente presente, mas ele se manifesta nas Escrituras e nos gestos da comunidade, no partir do pão. Quando a comunidade repete o que Jesus fez, reconhece a presença dele. Portanto, a liturgia é lugar de manifestação. Assim como a Bíblia tem a competência de ser lugar da manifestação de Deus, a liturgia também é lugar da revelação de Deus em Jesus.
Na carta apostólica Desiderio desideravi, o Papa Francisco diz que “desde o início, a Igreja compreendeu, iluminada pelo Espírito, que tudo que é visível em Jesus, o podia ser visto com os olhos e tocado com as mãos. Suas palavras e seus gestos, a concretude da Palavra encarnada, havia passado para a celebração dos sacramentos”. Ele está repetindo, de modo mais encorpado, as palavras de Leão Magno: “O que era visível em nosso Redentor passou agora para os mistérios”. Mistérios significa a mesma coisa que sacramentos e, poderíamos traduzir ainda, de modo mais próximo, de liturgia, porque toda celebração cristã faz parte dos mistérios e dos sacramentos. O Concílio Vaticano II ampliou a noção de sacramento. O Ofício da manhã é uma celebração que tem uma dimensão sacramental. Da mesma forma, uma celebração no domingo, mesmo quando não se pode realizar a missa, é um sacramento da Igreja. Toda vez que nos reunimos para, em nome de Jesus, fazer memória dos seus gestos e palavras, e reconhecer neles a nossa vida, estamos promovendo a presença de Jesus no meio de nós.
IHU – Qual é a importância do domingo na vida da Igreja?
Maria da Penha Carpanedo – O primeiro rito propriamente cristão foi o domingo, que é a primeira referência memorial da Igreja. O sábado era o dia consagrado para Israel e lembrava o último dia da criação; o domingo é o primeiro dia da criação. Os cristãos descobriram o túmulo vazio no dia posterior ao sábado e, portanto, esse dia passa a ser uma referência. João, por exemplo, diz que a ressurreição de Jesus dá início a uma nova criação, a um novo homem e a uma nova mulher, a uma nova humanidade; é o novo Adão, a nova Eva. Estamos no âmbito de uma recriação e os cristãos passam a guardar o domingo na memória de Jesus e na libertação que ele trouxe para a humanidade.
Até o segundo século da era cristã, o domingo era a única festa memorial e litúrgica da Igreja. Era a Páscoa semanal. O domingo foi o embrião do ano litúrgico e do Tríduo Pascal. Segundo o Concílio, o domingo é fundamento e núcleo do ano litúrgico.
Os sinais sacramentais da presença do ressuscitado eram basicamente três: a reunião, a Palavra e a Ceia. Quando João narra o encontro de Jesus com Tomé, não aparece a Ceia, mas a reunião e a Palavra. Porém, nas trilhas de Lucas, a Ceia é importante neste dia semanal do memorial da Páscoa. Na Igreja primitiva, era impensável uma pessoa não comparecer à assembleia litúrgica no domingo. Todos conhecemos o episódio de Tomé. Por que ele foi repreendido por Jesus? Porque abandonou o caminho da comunidade, porque Jesus não está no túmulo; está na comunidade. Então, domingo é um dia de encontro marcado com o ressuscitado. Os cristãos não podem ficar sem se reunir com seus irmãos no domingo.
Aos poucos, o domingo foi recebendo atenção principal das comunidades cristãs porque os cristãos vinham do judaísmo e, para os judeus, a festa da Páscoa era muito importante porque vinha do coração do povo. Os cristãos tinham essa saudade de uma festa anual da Páscoa e, aos poucos, o domingo mais próximo da data histórica da morte de Jesus foi sendo privilegiado e destacado. Foi aí que começamos a ter, na Igreja, um domingo maior, que tem uma abrangência em relação ao ano, isto é, um domingo para celebrar a Páscoa de maneira mais solene.
IHU – Como ocorreu a evolução desta celebração solene para o Tríduo Pascal?
Maria da Penha Carpanedo – No final do segundo século da era cristã já havia a experiência de fazer uma Vigília Pascal mais solene do que aquela feita nos outros domingos, celebrada sempre à noite, do sábado para o domingo. Até o século três, a Páscoa era a única festa anual da Igreja, preparada por um tempo de jejum e prolongada por 50 dias de festa. Havia, nesta vigília, uma escuta da história da salvação, uma liturgia batismal e a eucaristia pascal para os batizados. A celebração da noite da Páscoa foi, com o tempo, se desdobrando em três dias, em uma espécie de reconstituição dos últimos passos da vida de Jesus: o Tríduo da morte, sepultura e ressurreição. A Quaresma foi introduzida somente no quarto século, para compor o ano litúrgico e, a partir desse período, foi instituído o ano litúrgico completo, tal como o celebramos hoje.
A partir do sétimo século, começa a haver uma decadência, um distanciamento da liturgia por causa do emprego do latim e outros fatores, que fizeram com que o povo não tivesse mais acesso à liturgia da Igreja. Havia uma dificuldade de sustentar a fé porque não se entendia o que se rezava. Houve uma interrupção muito grave e dramática para a experiência espiritual do Ocidente. Ao longo da Idade Média, o Tríduo passou por tal transformação, que o domingo da Páscoa já não contava como parte do Tríduo. Eram considerados como Tríduo a quinta-feira, a sexta-feira e o sábado. O sábado da sepultura desapareceu do horizonte espiritual da Igreja e tomou o lugar do domingo, denominado “Sábado de Aleluia”. Quem já passou dos 50 anos sabe que era muito comum o povo proclamar o Aleluia durante o sábado, mas isso ainda é resquício da decadência litúrgica que começou no século oitavo e durou até praticamente até o Vaticano II.
O Tríduo pascal, como o conhecemos hoje, foi recuperado por Pio XII (1876-1958) em 1951, fruto do movimento litúrgico que começou no início do século XIX. O Vaticano II tem 60 anos de movimento litúrgico que o precedeu e o preparou, além do movimento bíblico e do movimento ecumênico. Em 1955, este papa fez uma reforma da Semana Santa.
A vigília pascal, no início do cristianismo, era feita em uma noite iluminada; a mãe de todas as vigílias da Igreja. Era impensável fazer uma vigília pascal durante o dia. Mas, com a decadência litúrgica, a vigília passou a ser celebrada no sábado às 15h, ao meio-dia e, em uma determinada época, foi celebrada às 9h da manhã. Em sua reforma, Pio XII cuidou de resolver o problema das horas: a verdade da hora. Isto é, Jesus ressuscitou à noite. Ninguém viu a ressurreição; só a noite. As mulheres não viram a ressurreição; elas viram o túmulo vazio. Nesse sentido, a noite é a testemunha da ressurreição, e Pio XII tratou de trazer a vigília pascal para o coração da noite. Essa reforma foi confirmada, desenvolvida, assumida, incentivada e normatizada pelo Concílio Vaticano II.
IHU – Na missa da Ceia do Senhor, na Quinta-feira Santa, algumas comunidades fazem procissão com o Santíssimo, como se fosse Corpus Christi, ao invés do traslado. O que isso significa?
Maria da Penha Carpanedo – Isto é uma agressão, uma distorção e uma desobediência à Igreja porque esse traslado tem uma solenidade austera: Cristo vai dentro de um cibório; não vai exposto. As normas da Igreja sobre isso são claras: nenhuma ostentação nesta hora porque Jesus está entrando na sua Paixão a partir deste momento. A memória que fizemos é disto. Então, fazer procissão com o Santíssimo, no estilo de Corpus Christi, é uma distorção e a Igreja não dá suporte para isso.
O mistério do Tríduo não é o mistério da presença real, mas o mistério da cruz, da sepultura, da ressurreição. Isso é muito maior do que o mistério da presença real. A presença real é uma consequência disso. Mas, às vezes, isso acontece porque a liturgia é inacessível, o povo está sem evangelização, sem acesso à Palavra da Bíblia, mas também à Palavra da Igreja na sua liturgia, e vai pegando somente as migalhas de evangelização.
IHU – Outras comunidades fazem procissão com o Santíssimo pelas ruas da comunidade. Isto é correto?
Maria da Penha Carpanedo – Que pena fazer isto no domingo da Páscoa. A Igreja tem uma procissão do Santíssimo por ano: a festa de Corpus Christi. A procissão na Páscoa não é prescrita em documento nenhum. Poderíamos destacar outros elementos da fé porque o domingo da Páscoa tem inúmeros elementos, e deixar o restante do ano para fazer adoração ao Santíssimo.
IHU – Fazer a Vigília no Horto das Oliveiras é possível?
Maria da Penha Carpanedo – Isto está previsto na quinta-feira à noite. Nos ofícios das comunidades tem até um ofício do Horto. Essa adoração depois da ceia não é um ato devocional. O documento “A Sagrada Comunhão e o culto do mistério eucarístico fora da missa” diz claramente que podemos retomar o Evangelho que escutamos durante a Ceia. É uma espécie de mistagogia [arte de conduzir os fiéis para dentro do mistério celebrado, revelando-o através de cada rito, gesto e símbolo] do mistério da entrega de Jesus na última Ceia. Então os salmos e os ofícios podem ser retomados. Quando Jesus sai da Ceia, ele sai cantando os salmos. Quais ele deveria ter cantado? Certamente os que a liturgia coloca nesses ofícios: salmos de confiança, de entrega nas mãos do Pai. A Igreja retoma as orações de Jesus nos salmos. Isso é legítimo, litúrgico e está na proposta da Igreja.
IHU – Em algumas comunidades, criaram o costume de, no momento do canto do Glória, colocar arranjos de flores nos oratórios da Igreja. Como vê esse movimento?
Maria da Penha Carpanedo – Em um jogo de futebol, ninguém quer entrar no campo e mudar as regras; nós entramos no jogo para jogar. O que precisamos é saber qual é a regra do jogo. Na liturgia, tem uma tendência nesse sentido de querer trazer outros elementos. Não vou opinar sobre esse caso porque não sei como fazem, mas a questão é: o que isso vai acrescentar em uma celebração que já tem tantos elementos para prestarmos a atenção? Será que é isso que vai fazer a celebração ficar mais profunda? São essas questões que temos que fazer.
Às vezes, quando vamos preparar a Vigília Pascal, o pessoal fica querendo inventar coisas diferentes, mas o que mais querem de diferente em uma celebração na qual quase não damos conta de tantos elementos? Precisamos entrar neste lugar onde a Igreja nos coloca sobre o significado dessa abundância de palavras, sobre o rito eloquente do batismo. É isto. Mergulhar nisso e não querer trazer mais elementos que vão nos distrair deste eixo da Vigília. As flores maiores podem ser usadas na Páscoa. Na quinta, tem flores, mas não na exuberância que tem na Páscoa.
IHU – Como celebrar a Quinta-feira Santa em comunidades sem padre, em que os leigos não podem proferir as palavras da consagração?
Maria da Penha Carpanedo – Há mil possibilidades. Muitas comunidades Brasil afora comemoram sem proferir as palavras da consagração porque, não sendo missa e não tendo a ordenação, não podemos fazer isso. Mas isso não significa que não possamos celebrar a memória da Ceia de Jesus. Nós já temos, no Brasil, ritos muito bem-organizados para a celebração da Palavra para o ano litúrgico inteiro. Existem roteiros bem consistentes, onde a comunidade se reúne. Só o fato de se reunir para lembrar essa Ceia, já vale a pena. Depois, tem a Palavra que podemos escutar. Podemos fazer uma partilha de alimentos. Muitas comunidades recebem a comunhão de uma comunidade vizinha e fazem a comunhão eucarística. Mas, por exemplo, na comunidade de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, as comunidades ribeirinhas não têm comunhão, mas elas fazem uma partilha em memória de Jesus. O que não pode é não fazer nada. Podemos celebrar; pelo batismo somos habilitados. Não vamos fazer a eucaristia, mas é preciso entender que a liturgia não é só missa. Liturgia é celebração da Palavra, benção da mesa, ofício, uma benção da casa. Há muitas formas de fazer o memorial de Jesus na comunidade de fé.