09 Novembro 2019
Os católicos, particularmente os da casta clerical, tendem a ser bastante ruins no discernimento de grupo – especialmente quando se trata de identificar os membros da comunidade que possuem os dons espirituais únicos, ordenados aos vários ministérios de serviço na Igreja.
O comentário é de Robert Mickens, publicado em La Croix International, 08-11-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há uma falta de discernimento de verdade quando se trata de carismas.
O sacerdócio ordenado (presbiterado) é um bom exemplo.
Geralmente, o processo começa com a iniciativa de um homem adulto que acredita (ou sua mãe acredita) que Deus o está chamando a ser padre. O homem, então, procurará se afiliar a uma diocese ou se juntar a uma ordem religiosa.
Se ele já conseguir amarrar os seus próprios cadarços e não for um criminoso condenado, ele provavelmente passará na avaliação inicial. Infelizmente, isso não é uma piada.
O mais importante para chegar ao próximo estágio é manifestar a vontade de ser celibatário e convencer as autoridades da Igreja de que ele não “pratica a homossexualidade, apresenta tendências homossexuais arraigadas ou apoia a chamada ‘cultura gay’”.
Se tudo isso se confirmar, o nosso vocacionado provavelmente passará por mais entrevistas e testes psicológicos, e será submetido a outras verificações de antecedentes.
Se não houver sinais evidentes de doença mental ou de transtornos de personalidade, ele será admitido em um programa de seminário ou noviciado. Nesse ponto, a afirmação padrão é de que o seminarista está discernindo, e a diocese ou a ordem religiosa também estão discernindo.
Assim começa uma série de “aros” pelos quais o candidato ao sacerdócio deve pular, a fim de chegar à ordenação. Ele aprenderá essa habilidade muito especial e necessária – criatividade com verdade.
Existem programas elaborados de formação sacerdotal, que são elaborados pelas Conferências Episcopais nacionais. Eles devem receber o selo de aprovação do Vaticano antes de ser implementados.
O regime diário difere um pouco de um seminário para outro. Toda casa de formação tem a sua própria variação do código de vestimenta, do horário e estilo litúrgicos, dos tipos de experiência pastoral, do toque de recolher (ou não) e de várias regras e regulamentos.
Depois de três ou quatro anos de estudos teológicos, então, o candidato deve enfrentar o seu primeiro grande obstáculo. A equipe do seminário recomendará que ele seja ordenado ao diaconato de transição? Ocasionalmente, um ou dois não se mostram à altura. Mas isso é raro.
O segundo e último obstáculo é a ordenação ao presbiterado. O reitor do seminário e a sua equipe podem aconselhar o bispo a não ordenar um homem por razões que considerem graves.
Mas, de novo, e por várias razões, há poucas pessoas que são impedidas.
Normalmente, um candidato questionável já é eliminado nos dois primeiros anos. Se não o for, é porque ele goza do favor do seu bispo.
Durante o Rito de Ordenação, um padre apresenta os candidatos ao bispo.
“Reverendíssimo Padre: pede a Santa Mãe Igreja que ordeneis estes nossos irmãos para o ministério do presbiterado”, diz ele.
“Sabeis se eles são dignos?”, pergunta o bispo.
E o padre responde: “Segundo o testemunho do povo cristão e o parecer dos responsáveis que os apresentam, atesto que foram considerados dignos”.
Como, exatamente, o “povo cristão” foi questionado ou envolvido no processo de constatar que esses homens são dignos? E quais pessoas – seus pais, seus amigos?
Toda diocese e casa de formação é única, é claro. Algumas envolvem os leigos na tarefa de revisar os candidatos ao seminário ou de prepará-los para o ministério. Mas as origens do caminho de um homem ao sacerdócio – ou, pelo menos, a sua exploração – são principalmente de iniciativa do próprio homem.
Obviamente, há pessoas – especialmente padres – que encorajam certos homens (geralmente jovens) a pensar no sacerdócio.
Felizmente, eles veem qualidades nesses homens que os tornariam bons presbíteros. Mas, de novo, essa é a iniciativa de um indivíduo.
E se uma comunidade inteira – digamos, uma paróquia – fosse capaz de fazer algo semelhante?
Em vez de esperar que alguém se apresente por iniciativa própria, que tal se a comunidade se envolvesse em um discernimento orante para identificar aqueles em seu próprio meio que têm os carismas de serviço?
A verdade é que o sistema da Igreja de seleção e preparação de presbíteros é seriamente falho.
Sabemos disso há muito tempo. E, à luz da crise dos abusos sexuais clericais, que tem sido como uma caixa dos horrores de Pandora sempre transbordante, os bispos têm enfatizado que eles melhoraram a seleção dos candidatos e reforçado os padrões de formação abrangente.
Mas o sistema ainda não está funcionando.
Apenas nas últimas semanas, dois padres de arquidioceses dos EUA e da Inglaterra foram acusados de abuso sexual de menores. Um deles foi ordenado há cinco anos, e o outro, há apenas quatro. O padre inglês foi condenado a quatro anos e três meses de prisão. Ambos provavelmente serão expulsos do sacerdócio.
Como eles chegaram à ordenação? Quem discerniu que eles tinham vocação ao sacerdócio? A comunidade foi envolvida nessa decisão de algum modo significativo?
A recorrência do abuso sexual – mesmo que envolva apenas uma pequena porcentagem do clero – é apenas uma prova de que o sistema de seleção e de formação continua inadequado.
Existem outros indicadores também. Entre eles, há patologias que se originam de tendências arraigadas – não apenas em relação à homossexualidade, mas também e principalmente em relação ao clericalismo; mesmo quando o candidato às Sagradas Ordens tenta negá-las ou escondê-las.
O Papa Francisco está tentando implementar a sinodalidade em todos os níveis da Igreja. E por que deveria ser diferente para identificar os melhores candidatos para servir à comunidade em vários ministérios e posições de liderança?
Mas, em vez de focar nos ministérios ou nos próprios papéis de liderança, o trabalho de uma comunidade envolvida no discernimento de grupo pode ter como objetivo algo ainda mais profundo. Ela procuraria, com a ajuda do Espírito Santo, identificar aquelas pessoas que foram agraciadas pelo mesmo Espírito com carismas próprios aos vários ministérios.
“Existem muitos dons diferentes, mas o Espírito é o mesmo”, diz São Paulo à comunidade cristã de Corinto. “Existem diferentes serviços, mas o Senhor é o mesmo (...). Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para o bem de todos” (cf. 1Coríntios 12).
Paulo diz aos Romanos:
“Temos dons diferentes, conforme a graça concedida a cada um de nós. Quem tem o dom da profecia, deve exercê-lo de acordo com a fé; se tem o dom do serviço, que o exerça servindo; se do ensino, que ensine; se é de aconselhar, aconselhe; se é de distribuir donativos, faça-o com simplicidade; se é de presidir à comunidade, faça-o com zelo; se é de exercer misericórdia, faça-o com alegria” (cf. Romanos 12).
Em uma Igreja sinodal, todo o corpo dos fiéis se engajaria no discernimento comunitário para identificar quem tem dons específicos. Os pastores (bispos), então, ratificariam e “ordenariam” essas pessoas para exercer seus carismas – os dons de Deus – para o bem comum.
“Para alguns, seu ‘dom’ foi estabelecê-los como apóstolos, a outros como profetas, a outros como evangelistas e a outros como pastores e mestres. Assim, ele preparou os cristãos para o trabalho do ministério que constrói o Corpo de Cristo” (cf. Efésios 4)
Do modo como é agora, espera-se que os presbíteros e os bispos realizem quase todas as tarefas. Atualmente, porém, existem pessoas não ordenadas – homens e mulheres, celibatários e casados – que claramente têm os carismas da pregação, de presidir a oração, de estar em oração, de curar e assim por diante.
Contudo, as autoridades da Igreja, os bispos, raramente permitem que essas pessoas compartilhem oficialmente esses carismas com o restante da comunidade, porque, durante séculos, eles foram reservados aos ordenados.
A constituição dogmática do Concílio Vaticano II sobre a Igreja diz que os bispos “eles próprios sabem que não foram instituídos por Cristo para se encarregarem por si sós de toda a missão salvadora da Igreja para com o mundo”.
“Mas o seu cargo sublime consiste em pastorear de tal modo os fiéis e de tal modo reconhecer os seus serviços e carismas, que todos, cada um segundo o seu modo próprio, cooperem na obra comum” (Lumen gentium, n. 30).
Mas os bispos também não podem e não devem assumir sozinhos a tarefa de reconhecer os ministérios e os carismas dos fiéis. Isso é algo para toda a Igreja.
Como o Papa Francisco disse à multidão na Praça de São Pedro, logo após sua eleição: “Agora, começamos este caminho: bispo e povo”. É um caminho que deve ser feito juntos.
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Igreja deve aprender a discernir os carismas de serviço: essa pode ser a chave para desenraizar o câncer do clericalismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU