11 Janeiro 2012
Não é preciso abraçar uma crença para apreciar a jornada dos filmes transcendentes – como A Árvore da Vida, Homens e Deuses e outros filmes de 2011 que superam as nossas expectativas.
[Ambos os filmes estarão em exibição na Páscoa IHU 2012. Confira aqui a programação].
A análise é de John Anderson, crítico de cinema da revista Variety e do jornal The Washington Post, e colaborador regular da seção Arts & Leisure do jornal The New York Times. O artigo foi publicado na revista America, dos jesuítas dos EUA, 16-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Desde 1895, a magnificação da imagem humana e a exaltação da experiência humana para os propósitos do cinema influenciaram como as pessoas veem a si mesmas, definem seus relacionamentos, se comportam, beijam, caminham, agem de forma atrativa e percebem o seu lugar no universo.
Essa imagem nem sempre é edificante, é claro. Muitos exemplos de comportamento humano nos filmes são negativos. Mas não há como escapar de que o espectador possa desenvolver uma conexão íntima com a tela. As inibições se dissolvem. Vínculos se formam. Almas silenciosamente se revelam, o que explica a fúria com que algumas pessoas reagem a intrusões em seus casulos induzidos pelos filmes provocados pelos toques de celular, por vozes que cochicham e pela truculenta luz das mensagens de texto, tudo o que abre um buraco na escuridão aveludada de uma sala de cinema (como se alguém invadisse o confessionário para vender um seguro de vida).
Em condições ideais para ir ao cinema, o espectador rodeado por outros ainda habita o seu próprio espaço semelhante a um útero e ocupa um estado referente a questões espirituais tão receptivo quanto ele ou ela é capaz de ocupar ao longo de um dia secular qualquer.
Neste ano, não houve uma falta de estímulos relevantes no multiplex, embora alguns deles tenham vindo dos lugares mais curiosos. Cowboys & Aliens, por exemplo, que provavelmente arrecadou 100 milhões de dólares ou um pouco menos do que a Universal gostaria, proclamou uma mensagem bastante convincente sobre a "fraternidade do homem": quando confrontado com um inimigo comum, até mesmo cowboys, índios e bandidos podem se unir para salvar o mundo de alienígenas malvados e gosmentos – improváveis aliados de fato, mas criados à imagem de Deus, mesmo assim. Quem criou os malvados e gosmentos alienígenas? Essa não era uma questão teológica que o filme tenha se preocupado em investigar.
Mas Cowboys não era um filme sério, e certamente não era sobre a natureza do universo mais do que o grotescamente rentável Crepúsculo (ou qualquer outro filme de vampiros) é uma consideração séria da vida após a morte (seria melhor assistir Walking Dead no canal AMC). A exploração da religião, quer seja implícita ou explícita, sempre fez parte dos filmes, com o objetivo de alcançar uma credibilidade emprestada destinada a validar o conceito mais remoto.
Neste ano, a tática de exploração pareceu estar a caminho de se tornar entrincheirada e intratável. Entre essas obras que poderiam ser definidas como "paródias bíblicas" estava 11-11-11, lançado, naturalmente, no dia 11 de novembro de 2011, envolvendo falsos profetas, a Besta, o Homem do Pecado e muito pouco que fosse revelador.
Em seu rastro, estava o exaustivo Imortais, uma mistura de mitologias grega e romana, violência excessiva, história preguiçosa e deidades como artistas marciais. Foi o suficiente para render ao politeísmo um mau nome. Esses são exemplos ridículos de uma tendência que, em outros lugares, no entanto, descobriu filmes com intenções espirituais genuínas (algumas realizadas, outras não). Muitas vezes, estavam dotados de um senso de aspiração que era inspirador.
O principal deles foi A Árvore da Vida, a meditação polarizadora de Terrence Malick sobre tudo, desde a infância do próprio diretor no Texas suburbano dos anos 1950 até a própria Criação. Ninguém pareceu indiferente ao que Malick estava fazendo. As respostas variaram de extrema alegria à hostilidade direta (em Connecticut, uma operadora de cinema teve que colocar um cartaz na sua bilheteria, alertando que não haveria reembolso para A Árvore da Vida. Prossiga por seu próprio risco).
O que pareceu mais importante para este espectador foi o alcance de Malick, quer ele tenha excedido a sua intenção ou não. Esforçar-se pela euforia é em si mesmo eufórico. Criticar este filme por um roteiro opaco seria como zombar de um artista-de-epifanias como Mark Rothko por não fazer pinturas de representação, ou satirizar William Faulkner por usar frases longas. Você simplesmente estaria fugindo da questão.
Ao contrário da abordagem oblíqua de Malick ao divino, vários outros filmes no ano passado assumiram uma abordagem direta à espiritualidade, que, como todos os cinéfilos experientes sabem, ou deveriam saber, não é precisamente como ele é feita. Você não faz um filme sobre a arrogância contando uma história sobre a arrogância. Você o faz contando a história de um magnata dos jornais chamado Kane. Você não cria um clássico atemporal sobre a devoção imortal colocando dois adolescentes idiotas juntos em uma praia. Você o faz através de um dono de bar cínico e seu amor perdido na Casablanca dos tempos de guerra. É muito improvável que você possa fazer um filme convincente sobre uma jornada espiritual fazendo um filme sobre – literalmente – uma jornada espiritual. Foi isso que Emilio Estevez fez neste ano com The Way, um desastre bem-intencionado do cinema religioso.
Ao contrário, você o faz com um filme como Homens e Deuses, uma história sobre a fé tão enobrecedora quanto nunca, precisamente porque era sobre homens que questionam a sua fé.
Dirigido pelo francês Xavier Beauvois e baseado em uma história de crime real sobre o sequestro e a decapitação de sete monges cistercienses por extremistas islâmicos na Argélia em meados dos anos 1990, Homens e Deuses era cheio de suspense, divertido e profundo. Os trabalhadores trapistas, ameaçados com violência real e inimaginável por fundamentalistas islâmicos, são forçados a se confrontar com o sentido das suas vidas, das suas vocações, das suas crenças, do seu propósito. O fantasma da morte, não mais um construto abstrato, assombra as suas existências. A verdadeira colisão concreta de fé e mortalidade torna-se o filme mais inspiradoramente religioso deste ano ou de qualquer outro ano de recente memória.
Por que Homens e Deuses foi tal joia rara? Porque os filmes são um meio de massa dedicado a saciar os apetites de espectadores acostumados a conceitos pré-digeridos e pensamentos não complicados.
A maioria dos filmes deste ano que usaram imaginários ou crenças cristãos em geral fizeram isso para algum efeito desajeitado ou jocoso. Soul Surfer: Coragem de Viver, o a história muito deliberadamente "inspiradora" de uma jovem atleta, cujo braço é arrancado por um tubarão, mas que passa por uma recuperação espiritual e profissional, era tão óbvio que até mesmo algumas das pessoas inclinadas a comprar a sua mensagem se desligaram pelas suas táticas.
Do outro lado do espectro está Red State, de Kevin Smith, um empresário dos quadrinhos provocador e católico praticante. Smith imaginou uma seita cristã apocalíptica tão satiricamente malvada que os espectadores tiveram que encará-la como uma piada ou então como uma ofensa, não porque os personagens eram implausíveis, mas porque eles eram muito desajeitadamente construídos.
A execução da arte do cinema, independentemente do conteúdo ou do contexto, pode ter um efeito exaltador sobre o espectador, especialmente quando seus melhores instintos são abordados. Melancolia, um filme sobre o fim do mundo de Lars von Trier não sonda nenhuma questão de imortalidade literal, mas a humanidade dos personagens do filme possuíam uma centelha divina.
Assim fez o documentário My Reencarnation, de Jennifer Fox, que levou 20 anos para ser feito. Fox acompanhou um mestre budista tibetano desde a sua imatura juventude, através da desaprovação do seu destino espiritual até a vida adulta madura, reconciliado com a sua missão na Terra. Não é preciso abraçar essas crenças para apreciar a jornada, porque a história é transcendente – assim como A Árvore da Vida, Homens e Deuses e outros filmes deste ano que, simplesmente, às vezes com eloquência, superam as nossas expectativas.
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Fé no cinema: os melhores filmes religiosos de 2011 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU