Pistoletto, artista italiano, celebra uma "canonização" que reconhece um modelo de humanidade. Artigo de Antonio Spadaro

Foto: Stephan Röhl/Wikimedia Commons

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19 Dezembro 2025

"Pistoletto reconhece nessa arquitetura escultórica um gesto artístico que se estende para além da vida, testemunhando uma visão: o homem como pastor e não como predador; a paz como dinâmica criativa; a harmonia como força generativa."

O artigo é de Antonio Spadaro, jesuíta e ex-diretor da revista La Civiltà Cattolica, no jornal La Stampa de 17-12-2025. A tradução é de Luisa Rabolini

Eis o artigo. 

O ato é ousado: Michelangelo Pistoletto (1) escolhe "declarar o Papa Francisco o primeiro santo da arte", elevando-o — no horizonte do gesto artístico — a figura simbólica, ícone de uma santidade que se torna paisagem, como ele mesmo escreve: "O Papa Francisco escolheu carregar sobre si mesmo, durante e após a sua vida, a doçura de uma paisagem espiritual." O dom da cruz peitoral, a presença física daquele objeto-signo, torna-se o ponto de impulsão para uma declaração poética: não apenas o reconhecimento de um papa, mas a transformação do papa — a quem ele chama de "irmão na Arte" — em sujeito e objeto da obra.

O vínculo entre Michelangelo e Francisco é profundo, no sentido de subterrâneo. Em nossos diálogos publicados sob o título — escolhido pelo próprio Pistoletto — "Spiritualità" (Marsilio), impressionou-me uma presença frequente: a do pontífice, precisamente. Em um diálogo público entre nós, que ocorreu em 14 de maio de 2025, no Maxxi, em Roma, ele disse: “Para mim, o Papa Francisco foi um artista. Um artista não por profissão, mas por aspiração. Sua capacidade de animar o pensamento e a vida, mesmo fora do sistema religioso, o torna tal. Ele era um homem capaz de religar, isto é, de unir sem se manter confinado a sistemas rígidos e codificados. E por isso foi criticado, mas fez um trabalho extraordinário. Para mim, Francisco não está morto. Assim como meu pai, ele permanece uma presença viva.”

A “canonização” artística não deve ser interpretada como um gesto paródico nem como uma imitação da liturgia eclesiástica, mas como uma ação plenamente intrínseca à sua linguagem e prática: um ato simbólico que utiliza a arte como espaço de revelação, responsabilidade e regeneração. A forma escolhida é um vídeo no qual o artista está refletido em um espelho enquanto seu avatar formula a proclamação. A modalidade corresponde exatamente aos princípios de sua visão artística, particularmente aos dos Quadri Specchianti e do Terceiro Paraíso. Nesse sentido, o vídeo resultante é a quintessência da arte de Pistoletto.

Nos Quadri Specchianti, ele sempre considerou o plano reflexivo como a interface entre realidade e representação, entre presente e possibilidade. Nesse caso, o ato de proclamação ocorre precisamente ali, no ponto em que a imagem do artista entra em relação com a imagem artificial, o avatar. O reflexo torna o evento coral, não autorreferencial: a santidade artística é proferida em um espaço que engloba o espectador, sugerindo que o que é proclamado diz respeito à humanidade inteira, não a uma figura isolada. É a lógica participativa e relacional de Pistoletto que ganha forma. A escolha do avatar não é uma simples solução tecnológica. Na visão de Pistoletto, o avatar representa a projeção do artista para além de si mesmo, a continuidade da ação criativa no tempo da pós-humanidade tecnológica.

A voz sintética transforma a proclamação em um signo impessoal, removendo-a da retórica e da emoção: o que importa é o conteúdo simbólico do ato, não a ênfase. É uma forma de dizer que a canonização artística não pertence a um poder nem a um indivíduo, mas à lógica da própria arte como espaço de relação.

A proclamação do Papa Francisco como "Primeiro Santo da Arte" não deriva de critérios religiosos, mas daquilo que a obra de Pistoletto reconhece e evidencia nas palavras proferidas: a visão pastoral e não predatória do homem, encarnada no peitoral do Papa; a escolha de uma simbologia de cuidado e de paz, oposta à lógica da força imperial; a profunda consonância entre a essencialidade de sua linguagem e a essencialidade da Arte Povera; a harmonia entre espiritualidade, responsabilidade e transformação — temas que permeiam toda a obra de Pistoletto.

“Canonizar” artisticamente significa, portanto, reconhecer um modelo de humanidade, um símbolo de harmonia encarnado em uma figura que, como São Francisco, escolheu o caminho da simplicidade e do cuidado. A arte não cria santos no sentido teológico: cria figuras exemplares, laços simbólicos que orientam o pensamento e a ação.

Na narração do avatar, o próprio túmulo do Papa Francisco torna-se uma obra de arte que reflete plenamente seu pensamento: a ardósia, pedra essencial, seu nome gravado, a cruz peitoral traduzida em escultura, os símbolos que convergem no Terceiro Paraíso (a pomba como sinal de harmonia e Espírito).

Pistoletto reconhece nessa arquitetura escultórica um gesto artístico que se estende para além da vida, testemunhando uma visão: o homem como pastor e não como predador; a paz como dinâmica criativa; a harmonia como força generativa.

Qual foi a inspiração para essa obra de canonização? Eu estava na casa de Michelangelo algumas semanas após a morte de Francisco. Em certo momento, ele me contou que havia assistido a algumas imagens do funeral na televisão e depois havia visto o túmulo em Santa Maria Maggiore gravado pelas câmaras. Aquela cruz sobre a simples lápide o impressionou repentinamente. Ele pediu à esposa, Maria, que tirasse uma foto imediatamente. Observando-a atentamente, ele percebeu os detalhes. Disso surgiu uma intuição: na cruz peitoral do pontífice, Pistoletto viu uma "paisagem espiritual". A cruz tornava-se horizonte, espaço habitável. No dia 19 de outubro passado, ao final de nossa apresentação na Torino Espiritualidade, dei de presente a Michelangelo uma cópia da cruz de Bergoglio. Na tarde de 22 de outubro, ele me contou por telefone sua decisão, tomada às 4h da madrugada daquele dia: "Francisco quis morrer como artista, quis criar uma obra de arte em si mesmo. Nunca imaginei esse desfecho", disse-me ainda Pistoletto, "mas senti um forte impulso. Senti que precisava fazer isso. Aconteceu no momento certo."

E o Pontífice — lembremos — referiu-se repetidamente aos artistas como profetas e sonhadores. "O artista vê com seus olhos, olha e ao mesmo tempo sonha, vê mais profundamente, profetiza, anuncia uma maneira diferente de ver e compreender as coisas", observava. Por ser "profética", a arte pode antecipar visões do futuro: a arte restitui à fé a consciência de seu poder imaginativo; a fé oferece à arte um depósito simbólico milenar do qual pode extrair nova vida para nos dar "novas visões do mundo". O gesto de Michelangelo Pistoletto, gesto de arte, é um gesto de reconhecimento, pensado para o 17 de dezembro, dia do aniversário de Francisco.

Nota do IHU

1.- Michelangelo Pistoletto, pintor italiano, artista de ação e objetos e teórico da arte. Pistoletto é reconhecido como um dos principais representantes da Arte Povera italiana. Seu trabalho lida principalmente com o tema da reflexão e a unificação da arte e da vida cotidiana em termos de uma Gesamtkunstwerk.

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