A farsa democrática. Artigo de Frei Betto

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02 Dezembro 2025

"Neste mundo governado por autoritarismos polidos, plutocracias vorazes e teocracias militantes (algumas, genocidas), defender a democracia é quase um ato insurgente. Mas é justamente essa insurgência que garante que não seja apenas uma licença temporária, e sim um projeto permanente de civilização e humanidade", escreve Frei Betto, escritor, autor do romance sobre a Amazônia “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.

Eis o artigo

A democracia, tal como a concebemos - governo do povo, participação cidadã, pluralidade de ideologias, limites do poder - tornou-se, no mundo atual, uma espécie de atividade concessionária. Existe, mas apenas sob licença temporária e vigilância constante, sempre ameaçada de revogação pelos poderes que realmente mandam.

O ideal democrático, que parecia destinado a se expandir sem volta após o século XX, que viu irromper e fracassar o nazifascismo e o stalinismo, hoje caminha em terreno movediço, entre autoritarismos renovados, plutocracias agressivas e teocracias que se afirmam como modelos alternativos de civilização.

Vemos atualmente um fenômeno paradoxal: nunca se falou tanto em democracia, nunca foi tão frequente sua invocação como justificativa para ações governamentais, para intervenções internacionais, para discursos solenes. Justamente por isso seu esvaziamento é mais discreto e sorrateiro.

A chave desse processo é que a democracia deixou de ser um direito garantido e passou a ser uma permissão, dada sob condições estritas pelos poderes que operam acima da cidadania e dos preceitos constitucionais. Governos eleitos pelo voto popular continuam a existir, mas sua margem de ação está cada vez mais estreita. Corporações multinacionais determinam políticas econômicas; bilionários definem pautas públicas e influenciam eleições; plataformas digitais manipulam percepções e institutos de pesquisas; e organismos financeiros impõem agendas draconianas. A democracia opera em concessão, como uma rádio que só transmite enquanto a frequência não é cassada pelo governo.

O autoritarismo, por sua vez, evoluiu. Já não se apresenta necessariamente como ditadura clássica, com tanques na rua e parlamentos dissolvidos. Hoje veste terno e gravata, governa por decretos, instrumentaliza o Judiciário, manipula a informação e captura a máquina do Estado. Surge como “governo forte”, “ordem”, “proteção”, “defesa da família e dos bons costumes”. Mas seu objetivo é sempre o mesmo: reduzir o espaço e o patrimônio públicos e as liberdades individuais e coletivas. Em muitos países, líderes eleitos aprendem rapidamente a linguagem da exceção. Sabotam a Constituição. Adulteram resultados eleitorais. Disseminam o ódio a imigrantes e movimentos identitários. Promovem o negacionismo à ciência. Transformam a obediência em virtude cívica.

Ao lado deles florescem as ditaduras abertas, que já não se preocupam em justificar sua existência. Governos teocráticos, monarquias absolutistas, estados militarizados - todos convivem tranquilamente no cenário internacional, participam de organismos multilaterais, comercializam com outras nações, recebem visitas diplomáticas de democracias consolidadas. O constrangimento moral que outrora pesava sobre regimes fechados se desfez, porque agora vale mais a estabilidade econômica que a liberdade política.

Talvez seja a plutocracia o elemento mais corrosivo da democracia contemporânea. O poder econômico já não é apenas influência, é governo direto. São os abastados que financiam campanhas, sustentam lobistas, moldam a opinião pública, ditam prioridades legislativas, escrevem o texto de reformas políticas e econômicas. E muitas vezes ocupam diretamente cargos estratégicos.

Em inúmeros países, inclusive naqueles que se orgulham da tradição democrática, políticas de amplo alcance são elaboradas para proteger interesses privados em detrimento da soberania popular. A desigualdade transforma a política em feudo, e a cidadania em ornamento retórico.

No mesmo cenário irrompem as teocracias, que oferecem, como promessa sedutora, uma ordem moral como solução para o caos do mundo. Não se restringem ao Oriente; infiltram-se em parlamentos ocidentais por meio de bancadas religiosas que pretendem impor dogmas como lei civil. Estados que deveriam ser laicos passam a operar sob lógica confessional, e o pluralismo, fundamento democrático, é tratado como ameaça. Onde a religião se confunde com o Estado, a cidadania deixa de ser universal e passa a ser privilégio dos crentes que defendem como valores supremos “Deus, pátria e família”.

O resultado é um mundo em que a democracia se tornou exceção. As liberdades são intermitentes, dependendo da conjuntura. O voto, embora existente, não garante representatividade; o debate público, embora amplo, é colonizado e manipulado pela desinformação; as instituições, embora funcionem, são pressionadas a servir a interesses privados ou corporativos. A democracia funciona, mas sob certas condições, sob certos limites, e sempre sob risco.

O mais grave é que essa concessão democrática é renovada não pela vontade do povo, mas pelo cálculo dos poderes que dominam a economia, a segurança e a moral religiosa. Se a estabilidade política requer menos participação popular, restringe-se sem qualquer dificuldade. Se o mercado exige menos proteção social, desmontam-se os direitos. Se a moral religiosa pede mais controle, legisla-se sobre corpos e consciências.

Como reverter essa lógica? Não há solução simples, mas há caminhos. A reconstrução da democracia passa por ampliar a soberania popular, e não reduzi-la; por democratizar a economia, e não oligopolizá-la; por garantir laicidade plena e não acomodar teocracias disfarçadas; por fortalecer a educação crítica, a imprensa livre, as instituições de controle e os mecanismos de transparência. Sobretudo reafirmar a democracia como direito inalienável e não concessão frágil.

A democracia só floresce quando o povo deixa de ser permissionário e volta a ser soberano. Quando o sufrágio universal (direito ao voto) é proporcional à partilha das riquezas (democracia econômica). Quando o espaço público predomina sobre o privado, as decisões são compartilhadas, os poderes econômicos limitados, a liberdade é praticada e não apenas proclamada.

Neste mundo governado por autoritarismos polidos, plutocracias vorazes e teocracias militantes (algumas, genocidas), defender a democracia é quase um ato insurgente. Mas é justamente essa insurgência que garante que não seja apenas uma licença temporária, e sim um projeto permanente de civilização e humanidade.

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