“O fascismo contemporâneo é o nome político do desespero produzido pela precariedade do laço social”, sintetiza a psicanalista e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Múltiplas são as formas de explicar o desejo pelo fascismo, aquela atração que jovens e adultos sentem pelo autoritarismo. À luz da psicanálise, esse sentimento pode ser compreendido como “a nomeação de um sintoma político que descreve uma parte da gramática do desamparo contemporâneo”, diz Rose Gurski. É nesse terreno de desamparo e fragmentação que novos fascismos emergem, segundo a psicanalista. “Eles prosperam não mais como ideologias centralizadas, mas como formas afetivas e micropolíticas de gozo autoritário disseminadas nas redes e nos discursos cotidianos”, afirma.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a psicanalista esclarece que “o fascismo atrai porque oferece uma resposta política e afetiva para o mal-estar diante da falta, da pluralidade e da incerteza que marcam a vida em sociedade, em outras palavras, porque dá uma resposta simples ao drama crônico e estrutural do mal-estar na cultura”.
A reversão deste quadro, sublinha a entrevistada, é uma tarefa política e, fundamentalmente, educativa, que depende da reconstrução da experiência do comum. “O neoliberalismo transformou a vida coletiva em gestão de indivíduos; o fascismo é o seu sintoma mais radical. Como adverte Nancy Fraser, vivemos sob os auspícios do capitalismo canibal, que devora as próprias condições de existência. A resposta precisa ser a criação de novos espaços de solidariedade, cultura e diálogo – práticas micropolíticas capazes de renovar o laço social a partir do cotidiano”, assegura.
A seguir, Rose Gurski reflete sobre as causas por trás do desejo de fascismo entre os jovens à luz da relação entre psicanálise, educação e política.
Rose Gurski (Foto: Arquivo pessoal)
Rose Gurski é psicanalista e doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Integra a Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), leciona no Departamento de Psicanálise e Psicopatologia da UFRGS e no PPG Psicanálise: clínica e cultura. É orientadora no PPG Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora CNPq e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC/Eixo 3/UFRGS).
IHU – O que é o desejo pelo fascismo? De onde emerge esse desejo?
Rose Gurski – O desejo de fascismo foi uma noção que surgiu em uma conversa nos aeroportos brasileiros, entre Zeynep Gambetti, professora de teoria política na Universidade de Bogaçizi, em Istambul/Turquia, eu e outra colega, na época, professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Gambetti veio para o Brasil para uma série de palestras e também para lançar o livro “Agir em tempos sombrios” (Criação Humana, 2019).
Era outubro de 2019 e estávamos muito assustadas com os avanços do conservadorismo e do que identificávamos como os novos fascismos – uma articulação entre autoritarismo e neoliberalismo, segundo Gambetti. Com a eleição, em 2018, de um governo com discurso autoritário e perfilado com um ideário de extrema-direita, nos preocupávamos com um certo retorno de identidades pré-modernas e essencialistas. Gambetti contava, por meio de muitas narrativas, os efeitos nefastos do governo de Erdogan para a sociedade e a democracia na Turquia e, em especial, os efeitos para as universidades, os intelectuais e acadêmicos. Nessa conversa, também buscávamos articular a psicanálise com o avanço do ideário fascista frente ao que denominei o retorno de discursos conservadores e autoritários. Aos poucos, compreendemos que, conforme Arendt sugere no livro Origens do Totalitarismo, o totalitarismo é um “risco sempre presente”. Quer dizer, não se pode confiar em demasia nas conquistas democráticas; o risco do retrocesso não nos abandona. Com isto passamos a nos interrogar: do ponto de vista psíquico, o que predispõe as pessoas (e as sociedades democráticas) a repetir, de tempos em tempos, a barbárie do autoritarismo nos laços? Pensando sobre as condições desta espécie de compulsão à repetição, chegamos na expressão “desejo de fascismo”, uma articulação da singularidade do sujeito com a dimensão coletiva do laço social.
Essa foi a origem da expressão. Neste diapasão, não é demais lembrar que o fascismo atrai porque oferece uma resposta política e afetiva para o mal-estar diante da falta, da pluralidade e da incerteza que marcam a vida em sociedade, em outras palavras, porque dá uma resposta simples ao drama crônico e estrutural do mal-estar na cultura. A psicanálise, desde Freud, reconhece o desejo humano de eliminar o conflito através do suposto encontro com a elisão da falta, o que Lacan chamava do Um, uma instância de completude imaginária. Diria que é como se as práticas autoritárias capturassem esse impulso e organizassem uma certa política de gozo, como colocamos no artigo sobre os jovens sem qualidade e o desejo de fascismo “um empuxo em direção à totalidade [...] criando uma espécie de antilaço social” (Gurski & Perrone, 2021a).
Quero ainda lembrar que, atualmente, também lidamos com a captura digital da pulsão autoritária. As massas digitais, atravessadas por algoritmos e pelas fake news, reproduzem um “totalitarismo do pensamento” que transforma o gozo da obediência em performance. O desejo de fascismo pode também ser pensado como o desejo de fazer parte de uma massa imaginária, mesmo que esta seja feita de perfis, robôs e identidades falsas.
Hannah Arendt chamaria isso de “fuga da liberdade”, o desejo de escapar da responsabilidade de pensar e agir num mundo plural. Nesse sentido, a sedução fascista pode funcionar também como uma promessa de alívio diante da sensação de que a liberdade também pode ser um fardo.
Zeynep Gambetti (2019), nos seus escritos, mostra que os novos fascismos não se apresentam da mesma forma como no passado. Eles emergem nas brechas do neoliberalismo, onde a erosão dos vínculos sociais e a precarização da vida produzem sujeitos que preferem o conforto da autoridade à angústia da multiplicidade de sentidos. Quer dizer, a autora amplia esse diagnóstico para o presente ao mostrar que os novos fascismos não são homogêneos nem nacionais; eles articulam neoliberalismo e autoritarismo, prosperam onde a solidariedade é corroída. Por fim, eu diria que a expressão desejo de fascismo seria a nomeação de um sintoma político que descreve uma parte da gramática do desamparo contemporâneo.
IHU – Esse desejo está em todos nós ou apenas em alguns?
Rose Gurski – Eu não pensaria em algo intrínseco ao ser humano, pensaria mais nas condições sociopolíticas de construção do desejo de fascismo. Arendt dizia que não existem pessoas naturalmente fascistas, mas sim situações sociais nas quais muitos podem aderir à barbárie.
Quando sugerimos a noção do desejo de fascismo, pensamos que este pode se estabelecer a partir do desejo do Um – um Outro que performe a completude e faça o sujeito sentir que sua vida tem sentido. Isso pode também justificar a relação com uma entrega narcísica ao líder das massas, como refere Freud, e com a recusa da alteridade. Arendt mostrou, em Eichmann em Jerusalém, que o mal pode se tornar banal quando o pensamento é interrompido. Assim, o desejo de fascismo não seria uma ideologia, mas um empuxo na direção da totalidade, por efeito também de uma suspensão da alteridade e do pensamento.
No contexto contemporâneo, essa suspensão do pensamento se intensifica com a velocidade e a saturação de informações e de narrativas nas redes. As massas digitais produzem “um modo de totalitarismo que se dá pelo bloqueio do pensamento e da imaginação, substituídos pela circulação automática de afetos e convicções” (Gurski & Perrone, 2021b).
Freud quando lança a noção de psicologia das massas, em 1921, já alertava para o potencial destrutivo das hordas porque elas não somente suportam a opressão, mas também parecem se fascinar por ela. Importa assinalar que todos podemos “desejar o fascismo” no sentido de normalizar práticas fascistas, mas esse desejo só se torna ação quando as instituições sociais e educacionais deixam de sustentar a importância da diferença e da polissemia na leitura do mundo.
IHU – À luz da psicanálise, da educação e da política, o que mais chama sua atenção ao estudar o desejo pelo fascismo?
Rose Gurski – Esse enlace pretende destacar a potência crítica da psicanálise quando ela se articula aos campos da educação e da política, campos constantemente ameaçados por discursos totalitários e neoliberais, submetidos às razões de mercado, que produzem o apagamento do sujeito e da dimensão coletiva da vida. Em tempos marcados pela precarização das instituições sociais, pela demonização da educação pública e pela difusão de ideologias que atacam o livre pensar, a psicanálise coloca-se como um modo de resistência ética e política.
Diante do retrocesso social e político que nos últimos anos o Brasil e, podemos dizer, o mundo vem experimentando, a psicanálise pode oferecer um modo de reinscrever a singularidade no tecido social. A ética da escuta, quando levada às instituições educacionais e à polis, permite reintroduzir o sujeito no coração da experiência educacional e social, em oposição à lógica da adaptação e da homogeneização das (semi) formações. É precisamente ao reconhecer a falta como estruturante que a psicanálise revela sua vocação ética e política, ela cria condições para impedir a captura do desejo por figuras totalitárias e a submissão ao Um.
Ou seja, articular a psicanálise com a educação e com a política é um modo de reinstaurar a perspectiva polissêmica dos sentidos, resgatando o direito de pensar e de sonhar em um mundo saturado de certezas dogmáticas. A aposta na função ética do saber é o que evoca a sustentação do conflito e da alteridade do pensamento – elementos fundamentais para a vida democrática.
Freud já havia assinalado, em Psicologia das Massas e Análise do Eu, que o fascínio pelo líder pode produzir o apagamento do pensamento crítico. Adorno, em Educação após Auschwitz, também advertiu que a única tarefa da educação, depois do horror dos campos, seria impedir sua repetição, ou seja, educar de modo crítico é um ato de resistência à barbárie.
Nesse sentido, o que mais se destaca na articulação entre psicanálise, educação e política é o modo como ela pode reconstruir o espaço simbólico da palavra. Enquanto as práticas neoliberais reduzem a educação à formação técnica e instrumental, a psicanálise insiste na dimensão da fala como espaço de transformação. É através da linguagem, de sua opacidade e de sua potência inventiva, que o sujeito pode produzir deslocamentos frente às imposições. Essa abertura para o novo – para o que não se repete mecanicamente – é também o que funda a esfera de uma política verdadeiramente democrática.
A psicanálise, ao mostrar que não há verdade única, mas múltiplas versões do real, evidencia sua contrariedade à servidão. A ética de um saber não todo ou, como diria Lacan, a “política da falta”, dificulta as formações totalitárias e sustenta a possibilidade de uma educação que não se feche em dogmas.
Essa é também uma forma de ir a contrapelo de uma “educação sem política” proposta pelos discursos de extrema-direita, que buscam esvaziar o campo educativo de sua vocação crítica. Retirar a política da educação é retirar o conflito, o pensamento e, portanto, a própria possibilidade de formação de sujeitos críticos.
Voltando à articulação com o fascismo: o desejo de fascismo não deixa de ser um desejo de se livrar do mundo feito de conflitos e alteridades. Nesse sentido, a tarefa da psicanálise, articulada à educação e à política, seria abrir futuros desejáveis para que os jovens possam buscar uma vida plural e com qualidades, modo pelo qual a barbárie certamente perde seu fascínio.
IHU – O que explica a identificação de jovens do século XXI com o fascismo?
Rose Gurski – A identificação dos jovens do século XXI com discursos autoritários pode ser compreendida como sintoma de uma época em que o futuro parece perder sua consistência simbólica.
O fascismo, em suas versões contemporâneas, reaparece como promessa de destino para quem já não consegue imaginar outro porvir. Hannah Arendt advertiu que os regimes totalitários florescem entre aqueles que se sentem supérfluos – sujeitos que não encontram um lugar no mundo comum e buscam, na adesão a um corpo coletivo, a restauração de um pertencimento perdido.
A juventude atual vive os efeitos do que Mark Fisher chamou de realismo capitalista, uma lógica que coloniza o inconsciente e impõe a sensação de que não há alternativas fora do capitalismo. Trata-se de um sistema que normaliza a desesperança, produzindo uma geração que, em vez de desejar o futuro, passa a temê-lo.
Nesse contexto, o fascismo oferece uma falsa saída: promete pertencimento e unidade em meio às diferentes precarizações da vida contemporânea. Zeynep Gambetti aponta que os novos fascismos se alimentam exatamente desse terreno fértil de desamparo e fragmentação. Eles prosperam não mais como ideologias centralizadas, mas como formas afetivas e micropolíticas de gozo autoritário disseminadas nas redes e nos discursos cotidianos. O jovem, imerso em uma cultura de competição permanente, é levado a interpretar sua vulnerabilidade como fracasso pessoal. O neoliberalismo transforma a solidão em mérito e a culpa em identidade. A promessa fascista aparece, então, como a restauração imaginária da força e do pertencimento – uma forma de gozar com a submissão a um Outro.
No artigo “A Psicologia das Massas na Era Digital e o Totalitarismo do Pensamento” (Gurski & Perrone, 2021b), mostramos como os algoritmos e as redes sociais reproduzem esse processo de captura pulsional. As chamadas “massas digitais” criam bolhas de identificação que substituem o pensamento pela repetição e a reflexão pela reação. O discurso autoritário se espalha como afeto, não como argumento. É o que Victor Klemperer, no livro A linguagem do Terceiro Reich, já havia observado no nazismo: o empobrecimento da linguagem é também o empobrecimento da experiência. Nas redes, essa lógica se intensifica, instaurando o totalitarismo do pensamento – uma linguagem automática que cria impasses para o surgimento do novo. Assim, os jovens passam a reconhecer-se em comunidades nas quais o ódio e o ressentimento garantem a ilusão de pertencimento.
No Brasil, essa dinâmica ganha um contorno racial e colonial. O fascismo sustenta-se sobre “a naturalização do genocídio real e simbólico de jovens negros e pobres” (Gurski, Perrone & Strzykalski, 2021), reiterando a lógica de uma sociedade estruturada sobre a exclusão e a hierarquia. O fascismo contemporâneo é, nesse sentido, o nome político do desespero produzido pela precariedade do laço social. Quando o mundo não oferece horizontes de desejo, o autoritarismo aparece como sua caricatura, promete futuro, mas entrega obediência. O que está em jogo, portanto, não é apenas a adesão ideológica, mas uma crise de imaginação coletiva, ou seja, a incapacidade de sonhar com o que ainda não existe.
IHU – No artigo “O Jovem ‘Sem Qualidades’ e o Desejo de Fascismo: enlaces entre psicanálise, educação e política”, a senhora aponta a ausência de qualidades no mundo atual como um dos fatores que contribui para a repetição de eventos traumáticos já vivenciados em outros períodos da história. Considerando o fascínio de alguns jovens pelo fascismo e pelos discursos autoritários e preconceituosos, em que dimensões da vida social e política diria que faltou qualidade para gerar outro tipo de visão entre os jovens?
Rose Gurski – Conforme já referi, vivemos atualmente o que Mark Fisher (2021) chamou, a partir de Bifo Berardi, de lento cancelamento do futuro, uma experiência em que o tempo histórico parece ter se esgotado e o presente se repete sem transformação. Essa temporalidade paralisada, alimentada pelo realismo capitalista e pela crença de que fora do capitalismo só há utopia, cria impasses para que as novas gerações se apropriem do desejo como força política. A juventude se vê sem o princípio da esperança que organiza horizontes de futuro e, talvez, nesse vazio, os discursos autoritários ofereçam um semblante de ficção de futuro. Nesse contexto, a política do ódio aparece, paradoxalmente, como uma forma de vitalidade num mundo esgotado.
A ausência de qualidade se manifesta também na linguagem. Como Klemperer (2020) diagnosticou no século XX, os regimes totalitários produzem força pela redução das palavras à sua função de comando. Hoje, essa operação é reproduzida de modo técnico e automático: os algoritmos substituem o debate pela reação e o conflito simbólico pela homogeneização de afetos. A consequência é o esvaziamento do espaço público e a erosão do comum. A palavra perde a capacidade de construir mundos, com o que o pensamento reduz a possibilidade de criar alternativas.
A educação, entendida a partir de Arendt (2022), como o espaço da natalidade – o lugar onde o mundo é apresentado aos que chegam e onde se preserva a possibilidade de renovação –, torna-se crucial. Quando a escola, por exemplo, é reduzida à função de socialização ou adestramento, o jovem não encontra nem o mundo nem o outro. Falta-lhe o “amor mundi”, a transmissão do sentido e da responsabilidade pelo comum do mundo. A precarização das condições de ensino, o ataque à cultura e a mercantilização da formação são expressões dessa mesma erosão simbólica.
Neste cenário, ocorre uma falência do político como espaço do comum. O neoliberalismo, ao macular os vínculos de solidariedade e promover o individualismo extremo, gera o que Nancy Fraser chamou de capitalismo canibal, um sistema que consome e canibaliza as condições de existência. Nesse contexto, as vidas se tornam descartáveis, e o futuro, inviável. A ausência de qualidade nas dimensões sociais e políticas é, portanto, a expressão de um mundo que esgotou também a capacidade de imaginar alternativas.
Como horizonte, gosto de pensar na noção de oniropolítica, um conceito que articula psicanálise, sonhos e política a partir do poder subversivo das narrativas oníricas (Gurski & Perrone, 2021c). Sonhar é reabrir o tempo, é criar imagens que escapam ao realismo capitalista. Imagens forjadas a partir do recolhimento de restos, traços e fragmentos capazes de fazer o real vacilar. O sonho, como escreveu Didi-Huberman, é o lugar onde o pensamento encontra o impossível e o transforma em imagem. A aposta, portanto, está em recuperar a imaginação como força política – abrir frestas para que o onírico passe, devolvendo ao sujeito a capacidade de desejar e, ao mundo, a possibilidade de se transformar. Lembremos que a capacidade de sonhar e imaginar é o melhor antídoto contra a barbárie.
IHU – Algumas pesquisas mostram que os jovens são ignorantes sobre o Holocausto. Recentemente, veio à tona a divulgação de mensagens como “Eu amo Hitler”, publicadas em fóruns de discussão por jovens norte-americanos. Como resposta às críticas feitas a eles, o vice-presidente J. D. Vance disse: “deixem os meninos serem meninos”. Por que líderes políticos como Hitler causam fascínio? Por outro lado, como avalia a reação do vice-presidente?
Rose Gurski – O fascínio por figuras como Hitler não pode ser explicado apenas pela ignorância histórica, embora ela seja parte do problema. Ele emerge de um vazio simbólico que talvez caracterize épocas de crise. Crise social, econômica e política, mas talvez e sobretudo uma crise na relação com o sentido da vida e do mundo. Um tempo em que o futuro se esvaziou como horizonte, o vínculo social se fragmentou e a experiência coletiva tem sido substituída por performances digitais de ódio e pertencimento. Hitler torna-se, assim, um símbolo fantasmático de força, um significante de unidade para sujeitos que se sentem sem lugar e sem horizonte. Em fóruns on-line, essa fascinação não expressa necessariamente uma adesão consciente ao nazismo histórico, mas talvez o gozo com o interdito – o prazer perverso de repetir a transgressão do pacto civilizatório sem elaborar. É o retorno pulsional daquilo que não foi simbolizado, o trauma da barbárie convertido em ironia e meme.
A psicanálise ajuda a compreender esse fenômeno. Freud, em Psicologia das Massas e Análise do Eu, descreveu como o sujeito, diante da angústia, tende a dissolver-se na massa e a identificar-se com a figura do líder. O fascínio pelo chefe é a tentativa de anular a falta – é o desejo de ser “Um” com o outro, de não mais pensar, apenas pertencer, como já comentei.
Hannah Arendt reconheceu o mesmo mecanismo ao analisar os regimes totalitários. Ela dizia, conforme coloquei acima, que eles florescem quando os indivíduos se tornam supérfluos, isto é, quando o mundo comum deixa de lhes oferecer um lugar simbólico. O que está em jogo, portanto, não é apenas a ignorância sobre o Holocausto, mas a crise de pertencimento e de sentido de uma geração que vive o que Mark Fisher chamou de “lento cancelamento do futuro”.
As redes sociais funcionam como laboratório desse fascínio. Há uma espécie de substituição da reflexão pela reação, do diálogo pela repetição. A linguagem empobrece, as palavras perdem densidade. Como observou Arendt, o mal torna-se banal, a violência se estetiza e o autoritarismo, travestido de humor, conquista, através dos memes, sujeitos cujo pensamento e reflexão encontram-se anestesiados.
De todo modo, não podemos perder de vista que o antissemitismo evocado pela figura de Hitler também é uma forma histórica de ressentimento social – o ódio projetado sobre o judeu como figura da diferença e da mobilidade.
O antissemitismo, como uma das manifestações de racismo estrutural (ao menos na Europa), não deixa de ser uma das matrizes invisíveis da modernidade ocidental. Ele não se resume à perseguição direta aos judeus; manifesta-se em toda forma de política que transforma o outro em ameaça e o estrangeiro em bode expiatório. É uma tecnologia simbólica de poder e de segregação que funda a unidade imaginária do “nós” e “eles”.
O fascínio por Hitler seria o ressurgimento desse mecanismo, agora naturalizado na cultura digital e reconfigurado pelo neoliberalismo. A negação do Holocausto e a difusão de discursos que relativizam o genocídio não são acidentes, mas efeitos de uma cultura que faz do esquecimento uma política.
Nesse contexto e do ponto de vista político e educativo, a resposta do vice-presidente J. D. Vance é alarmante. Ao dizer “deixem os meninos serem meninos”, revela precisamente o tipo de banalização que Arendt temia. Ao tratar manifestações de ódio e apologia ao nazismo como simples brincadeiras, Vance desloca a questão da esfera política para o terreno da inocência individual. Ele naturaliza o antissemitismo como um modo de racismo, reduzindo-o a uma travessura adolescente. O que está em jogo, no entanto, não são “piadas de meninos”, mas expressões de um mal-estar social e histórico que exige elaboração, não indulgência. Chamar jovens adultos de “meninos” é uma forma de infantilizar o ato e absolver o racismo que o sustenta.
Talvez a cena repita a lógica que Freud identificava no recalque: o mal é expurgado e negado como se não existisse, mas o recalcado retorna – e, neste caso, retorna sob a forma de memes, slogans e discursos que, aos poucos, corroem o pacto civilizatório. Quando figuras públicas desresponsabilizam o discurso de ódio, o que se reforça é a licença para o gozo racista e autoritário.
O fascínio por Hitler e a condescendência de líderes como Vance revelam a incapacidade de sustentar a importância da diferença e da pluralidade. O autoritarismo aparece, assim, como defesa contra o desamparo – e é exatamente por isso que a psicanálise, a educação e a política precisam estar juntas. Educar é introduzir o sujeito no campo da palavra e da responsabilidade; é transmitir a história de modo a reinscrever as dores sociais, elaborando-as. Isso se faz com memória e com escuta.
IHU – Como reverter o fascínio pelo fascismo? Que tipo de ação propositiva pode nos conduzir para outra direção?
Rose Gurski – Reverter o fascínio pelo fascismo não é apenas uma tarefa política; é também uma tarefa educativa, como advogou Adorno. Trata-se de uma reconstrução do laço social e do campo do desejo. O fascismo seduz porque promete eliminar a falta, simplificar o mundo, apagar o conflito. Ele oferece unidade onde há divisão e dúvida, gozo onde há pensamento. A reversão desse fascínio, portanto, exige recolocar o sujeito diante da sua própria incompletude, e, também resgatar a importância do comum, devolvendo polissemia à linguagem, ao pensamento e densidade à memória e ao futuro.
Se as práticas autoritárias operam como defesa frente à angústia, os novos fascismos seriam o nome político do desejo de se livrar da diferença – um desejo que todos, em alguma medida, partilhamos. O que se opõe ao fascismo não é o discurso do bem, mas o exercício da palavra, do pensamento e da escuta. A psicanálise e a educação, quando se articulam, podem restaurar o poder simbólico do falar e do pensar – recolocando o conflito como condição de vida democrática e o inconsciente como espaço de invenção (Gurski & Lima, 2023).
No totalitarismo gerado em meio à digitalização da vida, o sujeito é capturado por algoritmos que reforçam identidades e reduzem as condições de alteridade. Reverter esse processo implica reintroduzir o intervalo do pensamento entre o tempo do pensamento e o ato.
Assim, temos compreendido que, do ponto de vista político, importa reconstruir a experiência do comum. O neoliberalismo transformou a vida coletiva em gestão de indivíduos; o fascismo é o seu sintoma mais radical. Como adverte Nancy Fraser, vivemos sob os auspícios do capitalismo canibal, que devora as próprias condições de existência. A resposta precisa ser a criação de novos espaços de solidariedade, cultura e diálogo – práticas micropolíticas capazes de renovar o laço social a partir do cotidiano.
Nesse sentido, a oniropolítica aposta no resgate da capacidade de sonhar, de imaginar o que ainda não existe. Sonhar, aqui, é criar fissuras na realidade; é devolver ao desejo sua potência inventiva. O sonho também pensa (Gurski & Perrone, 2021c) e porque pensa ele pode produzir outros sentidos para o sujeito e para o mundo.
Só há política onde há novos começos. O campo da psicanálise e educação compartilha essa vocação, pois se orienta pela ideia de que o sujeito pode ressignificar tudo – pois há sempre algo no humano que escapa à captura total. Contra o cancelamento do futuro, é preciso reabrir o tempo da criação e do pensamento. Contra o gozo da destruição, é preciso fazer emergir o prazer da invenção.
A ação propositiva que nos conduz a outra direção, portanto, é reinstaurar o sonho, o conflito e o pensamento como forças de vida coletiva, apostando que o humano ainda pode desejar de forma intransitiva, isto é, desejar a diferença no mundo, o outro e o futuro. Quando se restitui ao jovem o direito de sonhar e de pensar, o fascismo perde o seu apelo.
IHU – Alguns teóricos apontam o ressentimento, o medo e o ódio como os impulsos motivados pela política da nossa época. Esses são os protagonistas da vida coletiva hoje? Quais os danos pessoais e coletivos causados pelo cultivo do ódio, do ressentimento e do medo?
Rose Gurski – O medo, o ódio e o ressentimento tornaram-se, de fato, afetos muito presentes na vida coletiva contemporânea. A política do nosso tempo se constrói em torno da administração desses afetos – medo do outro, ódio à diferença, ressentimento pela perda de privilégios ou pelo desamparo diante do colapso social. Conflitos que podem ser resolvidos no campo da palavra e do debate, atualmente, convertem-se em descarga pulsional – guerras, grandes ou pequenas.
Como já comentei, a cultura digital amplificou essa mutação, os algoritmos capturam o afeto e o devolvem em forma de repetição, reforçando o círculo de medo e de ressentimento.
Maria Rita Kehl define o ressentimento como o afeto que se alimenta da impotência, um gozo paralisante que se volta contra o outro para mascarar o próprio fracasso. O ressentido, diz ela, é aquele que delega ao outro o poder de decidir por si, para poder culpá-lo depois pelo mal que o aflige. Diferentemente da indignação, que mobiliza o sujeito para a ação ética, o ressentimento o fixa na posição de vítima, transformando a perda em queixa. Em escala coletiva, essa estrutura se torna um dos pilares do autoritarismo porque o ressentido busca, no líder, a reparação imaginária de sua ferida narcísica. O ódio, nesse sentido, é o ressentimento que se apresenta pela tentativa de eliminar o outro que encarna aquilo que o sujeito não suporta em si mesmo.
Safatle mostra que o ódio também pode ser uma forma de vínculo social, um modo de organizar o comum pela negatividade. Em O circuito dos afetos, diz que o neoliberalismo desloca o medo e o ódio do campo político para a gestão da vida e que as sociedades contemporâneas governam pelo medo, medo da perda, da insegurança, da exclusão, do colapso. Esse medo se transforma em uma espécie de tecnologia de poder, dispositivo que captura o desejo e o transforma em conformismo, fazendo com que o sujeito se submeta à autoridade. O resultado, segundo ele, é a colonização do afeto pela norma.
A juventude sem qualidades, evocada no artigo "O Jovem ‘Sem Qualidades’ e o Desejo de Fascismo" (Gurski & Perrone, 2021a), é herdeira direta desse empobrecimento simbólico porque vive o medo e o ressentimento como forma de pertencimento. Nas redes sociais, o ódio se torna performativo, repetido como signo de autenticidade, e o medo é reproduzido como afeto de controle. O dano, portanto, não é apenas individual, mas também político e civilizatório.
Do ponto de vista pessoal, o cultivo desses afetos gera uma paralisia subjetiva, o sujeito ressentido não age, assim como o sujeito tomado pelo ódio, ele não sonha. Do ponto de vista coletivo, os ódios destroem os laços, substituindo o vínculo pela segregação.
Reverter essa lógica implica reconstruir a economia do afeto no espaço público. Isso não significa suprimir o ódio ou o medo, mas restituir-lhes a dimensão simbólica, permitir que sejam ditos, pensados, transformados em linguagem. É o trabalho que cabe à psicanálise e à educação: criar espaços de fala e escuta onde o sofrimento possa se inscrever como palavra, e não como violência.
Ao mesmo tempo, é tarefa da política restaurar a possibilidade do sonho coletivo. Esses afetos precisam ser elaborados para que não sejam capturados por discursos de ódio e de militarização do laço social. É preciso apostar na transfiguração do ressentimento, do medo e do ódio. Só assim será possível deslocar a política do gozo destrutivo para a invenção de novos modos de viver juntos.
IHU – Apesar de os jovens interagirem com frequência nas redes sociais, a solidão é apontada por vários pesquisadores como um sentimento que tem marcado a vida das juventudes. Que efeitos a solidão tem causado na vida dos jovens?
Rose Gurski – A solidão é, talvez, o afeto mais silencioso e devastador da nossa época. Paradoxalmente, ela se intensifica no momento em que nunca estivemos tão conectados. As redes sociais criaram a ilusão de um laço contínuo, mas o que se produz é uma massificação sem encontro – um laço imaginário, sem corpo e sem escuta, sustentado por repetições e espelhamentos. O sujeito fala, mas nem sempre é ouvido.
As redes, regidas por algoritmos que reforçam o mesmo, criam o que Safatle chama de espaço de circulação do idêntico, um campo afetivo sem alteridade, no qual o outro é apenas uma confirmação narcísica. O resultado é uma solidão paradoxal, quer dizer, estar permanentemente no coletivo das redes e, ao mesmo tempo, radicalmente só.
A precariedade do mundo adulto, a falta de referências e a corrosão das instituições criam um vazio de transmissão, como se o jovem fosse lançado à própria sorte, sem um outro que o introduza ao mundo. Do ponto de vista psicanalítico, a solidão é também o outro nome do desamparo (Hilflosigkeit) estrutural. Mas, enquanto esse desamparo pode ser a condição de criação e desejo, a solidão contemporânea tende à mortificação já que o desamparo se torna administrado pelo mercado, anestesiado por imagens e likes, transformado em mercadoria afetiva. A economia digital captura o desejo e o devolve em forma de performance e espetáculo. A consequência é um empobrecimento da vida psíquica, que se traduz em sintomas como ansiedade, depressão e sensação de vazio.
A solidão dos jovens é, portanto, um fenômeno político e não apenas psicológico. Ela também expressa o que Mark Fisher chama de realismo capitalista, a sensação de que nada pode ser diferente, de que o futuro está cancelado. Privados de horizontes e sobrecarregados pela exigência de performance, muitos jovens oscilam entre o cansaço e a solidão.
Do ponto de vista coletivo, o desafio é restituir à juventude o direito de pertencer – não à massa, mas ao mundo. Isso significa criar espaços de encontro e de palavra, onde o sujeito possa ser ouvido sem ser reduzido a um dado estatístico. A escola, a cultura, a psicanálise em extensão e a arte podem cumprir esse papel, ressignificar a importância das trocas no laço social.
A solidão das juventudes contemporâneas é o espelho da nossa falência coletiva. Reverter seus efeitos exige devolver aos jovens não apenas companhia, mas futuro, linguagem e sonho. Ao abrir frestas para o onírico passar a solidão quiçá pode deixar de ser isolamento, tornando-se potência para voltar a desejar.
Adorno, T. W. (2024). Educação e emancipação. Paz e terra.
Arendt, H. (2017). Eichmann em Jerusalém: uma reportagem sobre a banalidade do mal. Ítaca.
Arendt, H. (2022). Entre o passado e o futuro. Editora Perspectiva S/A.
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