26 Novembro 2025
"Ajudar pessoas e a sociedade a sair do reino da injustiça/pecado para se entrar no Reino de Deus e de sua justiça é a missão da Igreja e do cristianismo. E essa missão é uma das chaves da superação da crise da Igreja", escreve Jung Mo Sung, teólogo e cientista da religião.
Eis o artigo.
Neste terceiro texto sobre a Exortação Dilexi Te, quero dar continuidade a um tema que apresentei no final do último artigo: “A crise da Igreja Católica não nasceu da opção pelos pobres, mas da sua autorreferencialidade; e a opção pelos pobres é a sua saída da crise. Porém, o desafio teológico-pastoral é como praticar a opção pelos pobres em um mundo neoliberal, que é bem diferente das décadas de 1970 a 90 quando se discutiu muito sobre essa opção”.
Se não compreender bem as grandes mudanças econômicas e culturais dos últimos 30 anos, as comunidades cristãs e das igrejas vão ter dificuldades em entender a própria crise da Igreja Católica e das protestantes e evangélicas.
Eu quero trazer aqui uma experiência minha de participante de grupo de jovens e depois das comunidades de base. Eu tinha 16 anos quando, participando em um grupo de jovens no centro da cidade de São Paulo, decidimos fazer uma campanha para arrecadar dinheiro para comprar presentes de natal para um grupo de crianças que estavam “vivendo” no Centro de Migração, que acolheria famílias pobres que vinham da zona rural tentar vida em cidade grande. Nós íamos todos domingos de manhã para conviver (brincar, conversar...) com elas. Nessa campanha, várias pessoas que contribuíam comentavam: “eu acho bonito o que vocês fazem; eu não consigo fazer isso, mas apoio vocês”.
Uns anos depois, em uma outra atividade em favor dos pobres, os comentários mudaram: “você é candidato ou trabalha para um político? ” A maioria das pessoas com quem eu conversava sobre essa atividade não acreditavam mais em ações solidárias, em ações sem um interesse pessoal por detrás. E nos últimos anos, a interpretação dessas ações de solidariedade mudou radicalmente. Agora, uma parte significativa da sociedade é contra ações e políticas sociais em favor dos pobres porque eles são vistos agora como pessoas que não merecem ajuda, seja porque são vistas como “preguiçosas” ou como criminosas. O pobre passou a ser visto, não como alguém que precisa de ajuda, mas como pecador ou criminoso que deve ser expulso ou eliminado do convívio social.
E essa mudança cultural aconteceu não somente na sociedade “secular”, mas também nas igrejas. É importante ter claro que essa mudança cultural não foi por acaso, mas sim foi fruto de ações estrategicamente organizadas. Como disse Margareth Thatcher, em 1981, na época a primeira ministra da Grã-Bretanha, o projeto do neoliberalismo não era e não é mudança econômica, mas sim “mudar o coração e a alma da nação. Economia é o método; o objetivo é mudar o coração e a alma”.
Como diz a exportação, na atual cultura, “a ilusão de uma felicidade que deriva de uma vida confortável leva muitas pessoas a ter uma visão da existência centrada na acumulação de riquezas e no sucesso social a todo o custo, a ser alcançado mesmo explorando os outros e aproveitando ideais sociais e sistemas político-econômicos injustos, favoráveis aos mais fortes. Assim, num mundo onde os pobres são cada vez mais numerosos, vemos paradoxalmente crescer algumas elites ricas, que vivem numa bolha de condições demasiado confortáveis e luxuosas, quase num mundo à parte em relação às pessoas comuns” (n. 11).
O problema central não é o erro ou a ilusão de que a felicidade deriva da riqueza – muitas vezes justificada religiosamente com a ideia herética de que a riqueza é a comprovação da benção divina –, mas porque está fundada em “uma cultura que descarta os outros sem sequer se aperceber, tolerando com indiferença que milhões de pessoas morram à fome ou sobrevivam em condições indignas do ser humano” (n. 11).
Uma sociedade e uma Igreja que se sentem “confortáveis” nesse “mundo” – uma cultura e em um sistema econômico-social tão insensíveis aos sofrimentos de tantos milhões e milhões de pessoas – precisam de conversão e arrependimento. O problema é que o arrependimento e a conversão não acontecem só porque alguém os criticam ou xingam. Xingamentos só aumentam a polarização, polarização essa que gera mais cegueira.
Eticamente cegos só conseguem ver a realidade e começar a sentir-se desconfortáveis na medida em que veem a luz, não a luz da razão teórica, mas sim a luz da bondade e solidariedade das pessoas que agem e vivem com amor-solidário. É a experiência de ver e experimentar o Reino de Deus entre nós (relações intersubjetivas de amor e solidariedade) que faz pessoas cegas saírem do seu reino do pecado (da injustiça, do egoísmo e da morte).
Ajudar pessoas e a sociedade a sair do reino da injustiça/pecado para se entrar no Reino de Deus e de sua justiça é a missão da Igreja e do cristianismo. E essa missão é uma das chaves da superação da crise da Igreja.
Leia mais
- Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung
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