Teólogo africano lê ‘Dilexi Te’ através das lentes do ‘totus Christus’ de Agostinho. Artigo de Stan Chu Ilo

Foto: Edgar Beltrán | Wikimedia Commons

22 Outubro 2025

"Nesta exortação fica claro que o continente africano, muitas vezes tratado como periférico, agora se situa próximo do centro do imaginário da Igreja, se levarmos a sério a análise da mensagem de Leão sobre as bases sociais e estruturais da pobreza e a práxis da solidariedade. Nos rostos de mulheres e jovens africanos que se unem em capitais sociais para reescrever sua história, nas canções e orações que alimentam o trabalho colaborativo pela reparação social de comunidades resilientes, o coração do catolicismo bate forte", escreve Stan Chu Ilo, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 21-10-2025.

Stan Chu Ilo é um padre católico da Diocese de Awgu, na Nigéria. Ele também é professor pesquisador sênior no Centro de Catolicismo Mundial e Teologia Intercultural da Universidade DePaul, em Chicago, e presidente da Associação de Amigos da Rede Católica Pan-Africana (PACTPAN). É autor de Ética Ecológica Africana e Espiritualidade para o Florescimento Cósmico e editor do Manual do Catolicismo Africano.

Eis o artigo.

As palavras "Eu te amei" (Apocalipse 3,9) formam tanto o título quanto o cerne da primeira exortação apostólica do Papa Leão XIV, Dilexi Te. A frase é a declaração do próprio Cristo a uma comunidade frágil, com pouco poder ou influência, mas que nos lembra do "mistério inesgotável" do amor de Deus que eleva os humildes e os pobres.

Lidos em conjunto com a última encíclica do Papa Francisco, Dilexit Nos ("Ele nos amou"), os dois títulos se tornam um único díptico teológico. Dilexit Nos contempla o amor revelado no coração de Jesus; Dilexi Te estende esse amor para fora — aos pobres, aos sofredores, às periferias, às feridas vivas da humanidade. No movimento de "Ele nos amou" para "Eu vos amei", traçamos uma linha ininterrupta entre Francisco e Leão: um discipulado enraizado no amor divino, desdobrado como responsabilidade social e eclesial concreta.

Leão XIV explicita essa continuidade: "Estou feliz em tornar este documento meu — acrescentando algumas reflexões — e em publicá-lo no início do meu pontificado, pois compartilho o desejo do meu amado predecessor de que todos os cristãos apreciem a estreita conexão entre o amor de Cristo e seu chamado para cuidar dos pobres" (Dilexi Te, 3). Escolher o "amor aos pobres" no início de um pontificado não é uma estratégia de compaixão; é uma orientação espiritual. Diz-nos onde este papa se posiciona e para onde espera conduzir a Igreja: em direção às periferias onde Cristo já espera.

O Papa Francisco abençoa a escultura "Jesus, o Sem-teto" durante sua audiência geral na Praça de São Pedro, no Vaticano, em 20 de novembro de 2013. (Foto: CNS/L'Osservatore Romano)

A lente de Agostinho: O Cristo inteiro

Esta reflexão teológica percorre os cinco capítulos de Dilexi Te através da teologia de Santo Agostinho do totus Christus — o Cristo integral, cabeça e corpo. "Alegremo-nos e demos graças; não nos tornamos apenas cristãos, mas o próprio Cristo. Pois se Ele é a Cabeça, nós somos os membros; Ele e nós juntos somos o homem integral" (In Iohannis Evangelium Tractatus, 21, 8).

A partir dessa unidade, Agostinho desenvolve sua distinção entre frui (gozo) e uti (uso): somente Deus deve ser desfrutado por amor a Deus; todas as coisas criadas devem ser usadas como meios para a comunhão com Deus (De Doctrina Christiana I, 3-4). O pecado desordena esse amor — desfrutar o que deve ser usado, usar o que deve ser desfrutado — construindo assim a "cidade terrena" que ama a si mesma até o desprezo de Deus, em contraste com a "Cidade de Deus", que ama a Deus até o desprezo de si mesma (De Civitate Dei, XIV, 28).

Leão recupera explicitamente essa gramática agostiniana do amor. Citando Agostinho (Sermo 86, 5, 12), ele ensina que os bens temporais não são maus em si mesmos, mas devem ser corretamente ordenados (ordinatio bonorum temporalium) para o amor a Deus e ao próximo (Dilexi Te, 45). Riqueza, propriedade e trabalho servem à comunhão, não à dominação. Separados do amor, tais bens tornam-se instrumentos de injustiça; ordenados pela caridade, tornam-se meios de graça e participação na providência.

Leão escreve: "Agostinho coloca as seguintes palavras na boca do Senhor: ... 'Recebi hospitalidade, mas darei um lar; fui visitado quando estava doente, mas darei saúde; fui visitado na prisão, mas darei liberdade. O pão que deste aos meus pobres foi consumido, mas o pão que eu darei não só te saciará, como também nunca se acabará'" (45). Aqui, a mordomia cristã torna-se eucarística: o próprio mundo — trabalho, propriedade, política, ciência — pode ser orientado para o altar do amor.

Um pedestre passa por uma mulher sem-teto em Lisboa, Portugal, 02-08-2023. (Foto: OSV News/Bob Roller)

Dilexi Te é uma tentativa sustentada de reparar a fratura entre princípios teológicos e realidades históricas. Leão oferece uma hermenêutica estrutural e teológica da pobreza — uma hermenêutica que discerne, com os olhos da fé, como o amor divino atua nas fraturas da história (10-15; 27; 81; 90-97). Ele faz perguntas perspicazes: O que significa pobreza em nosso tempo? Por que as pessoas são pobres? Como as instituições fabricam a pobreza (92, 94, 106, 108, 114)? Onde nossos programas objetificam involuntariamente os pobres (14)?

O papa leva o ensinamento social da abstração à materialização, fundamentando-o nas Escrituras e na tradição, no testemunho dos santos e em insights das ciências sociais. Agostinho chamaria esse aprendizado de "usar o mundo sem ser usado por ele" (uti mundo, non frui mundo), para que todas as coisas se tornem caminhos para o amor.

O que emerge é um movimento que parte do discernimento crítico desta hora histórica — com suas estruturas sociais teimosas que perpetuam a injustiça e estruturas eclesiais que impedem a renovação — para um despertar profético da missão da Igreja para com os pobres como o próprio coração do discipulado. Leão convoca toda a Igreja a recuperar o totus Christus em ação: a cabeça que ama e o corpo aprendendo a amar como Ele ama — especialmente nos pobres que carregam sua imagem (23-26). Dessa forma, Dilexi Te não é meramente um documento social; é um mapa místico-moral.

'Algumas palavras essenciais'

Leão começa com uma mulher que unge Jesus com óleo precioso. Incompreendida pelos discípulos, ela se torna um ícone do amor corretamente ordenado. Ela se deleita no Senhor — não no perfume, não no preço. É um ato que demonstra amor puro, ordenado a Deus. Leão extrai a consequência: "Aqueles que sofrem sabem quão grande pode ser até mesmo um pequeno gesto de afeto" (4). Para o papa, o amor ao Senhor e o amor aos pobres são um só (5). Nos pobres, Cristo continua a dizer: "Eu estou sempre convosco". Agostinho chamaria isso de totus Christus: a cabeça agindo por meio de seu corpo; Cristo amando Cristo em seus membros.

A expressão "Igreja dos pobres" foi forjada no testemunho, não na teoria. Durante o Concílio Vaticano II, os bispos nas catacumbas de Roma prometeram simplicidade e proximidade pastoral aos pobres — o Pacto das Catacumbas. Essa identidade deve assumir forma institucional e pastoral. "Numa Igreja que reconhece nos pobres o rosto de Cristo e nos bens materiais o instrumento da caridade, o pensamento de Agostinho permanece uma luz segura" (47). O amor corretamente ordenado requer formas concretas: orçamentos, ministérios, formação, liderança e estruturas eclesiais que coloquem os pobres no centro.

Quando Leão se lembra de Lourenço apontando os pobres como "os tesouros da Igreja", o realismo de Agostinho está próximo: "Dai pão aos famintos, mas dai também amor; pois se derdes pão e retiverdes amor, nada tereis dado" (Sermão 389). Aqui, caridade não é filantropia; é justiça restaurada. Cada ato de cuidado é comunhão sacramental — Cristo tocando Cristo.

Leão situa esta teologia nos últimos 150 anos de doutrina social católica — uma tradição única de amor tornado social. Ele confronta as estruturas do pecado, da dívida ecológica e da "cultura do descartável" (91-97), citando Francisco. Agostinho nos ajuda a nomear o que está em jogo: as duas cidades se distinguem por seus amores. A desigualdade moderna não é simplesmente um fracasso político; é uma desordem do amor. Quando o amor-próprio organiza a sociedade — quando o consumo, a segurança ou o lucro são desfrutados como um bem supremo — as instituições inevitavelmente saqueiam sob o nome de paz. A crítica de Leão às economias que descartam os fracos (94, 96) e às democracias que silenciam os pobres (81) é um julgamento agostiniano sobre uma ordo amoris mal direcionada.

Por outro lado, a Cidade de Deus é construída sobre um amor corretamente ordenado, no qual os bens temporais são usados ​​para servir à comunhão e somente Deus é desfrutado. Assim, o apelo de Leão para o "desenvolvimento de políticas eficazes para a mudança social" (98-104) não é uma intrusão da política na religião; é a participação da Igreja na obra de Cristo de ordenar a criação em amor. A própria esmola deve ser purificada: não é transação, mas transformação (115-121). "Se deres pão ao faminto, mas não o amas, não deste nada", diz Agostinho; Leão concorda, insistindo que a esmola autêntica "nos oferece a oportunidade de parar diante dos pobres, olhar em seus olhos, tocá-los e compartilhar algo de nós mesmos com eles" (116). A caridade desmorona sem comunhão.

Contra o materialismo moralizado

Há uma afirmação em Dilexi Te que deveria ficar gravada na consciência da Igreja. Leão escreve: "Os pobres não estão ali por acaso ou por um destino cego e cruel. Nem, para a maioria deles, a pobreza é uma escolha. No entanto, há aqueles que ainda se atrevem a fazer essa afirmação, revelando assim sua própria cegueira e crueldade" (14). Ele critica a sociedade atual que às vezes objetifica os pobres como tais "porque eles não 'merecem' outra coisa" (11,14).

Este diagnóstico conciso aponta uma das feridas mais profundas da civilização moderna e um dos pecados mais persistentes das sociedades contemporâneas: a confusão entre condição econômica e valor moral. Quando as pessoas julgam os pobres em vez de amá-los, invertem o Evangelho.

Agostinho denunciou essa distorção há 15 séculos. "Deus não recompensa a pobreza em si, nem condena as riquezas em si, mas a piedade em uma e a impiedade na outra" (Epístula 179, 24). "Considera com o que está cheio o teu coração, não com o que está vazio o teu cofre" (Sermão 60, 8). Para Agostinho, assim como para Leão, culpar os pobres é interpretar mal a graça.

Uma mulher passa por um morador de rua dormindo na calçada em Baltimore, 6 de junho de 2023. (Foto: OSV News/Bob Roller)

Leão apela a uma inversão hermenêutica — uma conversão da percepção. O que o mundo despreza, o Evangelho abençoa; o que o mundo teme, Deus acolhe. Devemos passar da culpabilização dos pobres para a aprendizagem com eles; da fria eficiência da ajuda para a calorosa reciprocidade da comunhão; da caridade como condescendência para a justiça como participação; da piedade para a parceria; do alívio para o desmantelamento das estruturas que fabricam a miséria; e da consideração dos pobres como um peso para a sociedade para a remoção das causas estruturais da pobreza e das barreiras à sua mobilidade social, para que possam ser agentes da sua própria história.

O verso luminoso de Agostinho retorna: "Os pobres estendem as mãos para ti, mas na verdade é Cristo quem recebe, para te dar em troca" (Sermão 389). Encontrar os pobres é encontrar Cristo; amá-los é entrar na economia eucarística.

O lugar esperançoso da África

Para a África, essa continuidade entre Francisco e Leão é especialmente esperançosa. No entanto, falando como teólogo africano, noto a escassez de referências à África (além da comovente vinheta de Ezbet El Nakhl, do Cairo, em 79).

No entanto, nesta exortação fica claro que o continente africano, muitas vezes tratado como periférico, agora se situa próximo do centro do imaginário da Igreja, se levarmos a sério a análise da mensagem de Leão sobre as bases sociais e estruturais da pobreza e a práxis da solidariedade. Nos rostos de mulheres e jovens africanos que se unem em capitais sociais para reescrever sua história, nas canções e orações que alimentam o trabalho colaborativo pela reparação social de comunidades resilientes, o coração do catolicismo bate forte.

Ao ouvir, encorajar e aprender com a sabedoria das comunidades africanas em sua luta contra a pobreza e a injustiça global, e ao empoderá-las e acompanhá-las como parceiras, não como mestras, a Igreja universal pode aprender como será o futuro do catolicismo: não uma fortaleza de poder, mas uma família de amor; não um bastião de privilégios, mas um hospital de campanha de misericórdia; não um refúgio nostálgico, mas um povo peregrino caminhando em direção ao amanhã; não por meio de um paternalismo baseado em necessidades, mas por meio de uma troca mútua de presentes baseada em bens. Entre "Ele nos amou" e "Eu vos amei" está uma Igreja convocada à solidariedade profética e pragmática em um momento caótico.

E assim a garantia final da exortação — "Eu vos amei" — torna-se a garantia do totus Christus: a cabeça que ama através do seu corpo, o corpo que aprende a amar com o coração de Deus. O amor recebido torna-se amor dado. O altar estende-se para a rua; o anfitrião torna-se hospitalidade; a igreja torna-se aquilo que celebra. Só uma igreja assim pode tornar visíveis as primícias do Reino — onde a justiça e a misericórdia se beijam, e onde os pobres já não mendigam o pão, mas partilham do banquete preparado desde a fundação do mundo.

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