30 Dezembro 2024
O artigo é de Pedro Miguel Lamet, jornalista, jesuíta e autor de inúmeros livros, dentre eles Amém e Aleluia: vida e mensagem de Pedro Arrupe (Mensageiro, 2023), publicado por Religión Digital, 25-10-2024.
O leitor encontrará nesta e em outras páginas análises e comentários lúcidos sobre esse brilhante texto. Minha intenção aqui é complementar, oferecendo a ótica que o padre Pedro Arrupe trouxe sobre essa devoção em um momento delicado da Igreja no século XX.
O coração é um símbolo, se se quiser algo tópico, usado até por crianças para dedicar um desenho à mãe ou por qualquer um para felicitar o ser amado no Dia de São Valentim, mas sempre expressivo e universal. Os especialistas dizem que, sem dúvida, nossos sentimentos residem no cérebro, como tantas faculdades do ser humano. Mas ninguém se atreve a dizer: "Eu te amo com todo o meu cérebro". Talvez porque o amor aumenta a palpitação e o calor em nosso peito, e é lá que situamos o centro de todo o nosso ser.
Embora, como observa o Papa, a devoção ao Coração de Cristo esteja de alguma forma presente nos primórdios do cristianismo, desde a ferida que o centurião fez com sua lança no peito de Jesus após sua morte, e no interesse de muitos outros santos, todos conhecemos seu florescimento através das revelações concedidas a Santa Margarida Maria Alacoque em 1675, e sua vinculação com a Companhia de Jesus, graças ao munus suavissimum, a tarefa especial dada aos jesuítas de divulgar essa devoção, recomendada pelos papas e muito disseminada pelo mundo.
O problema surgiu depois. Após a celebração do Concílio Vaticano II, houve uma certa rejeição, especialmente às formas um tanto decadentes com que essa devoção havia sido apresentada, com imagens kitsch e um tanto afeminadas. Também porque a algumas sensibilidades incomodava tomar a parte pelo todo, ou centrar Jesus Cristo, dizia-se, apenas em uma "víscera". No entanto, personalidades da importância de Teilhard de Chardin, Karl Rahner e Pedro Arrupe, a partir de uma perspectiva mística, ampliaram e contextualizaram esse culto, que não é outro senão colocar o foco da vida espiritual no amor.
Pedro Arrupe, em particular, experimentou em sua vida uma vivência muito profunda dessa devoção. Tanta que temos um livro inteiro que contém todos os seus textos sobre o tema, intitulado Nele, apenas a esperança. Para entender esse amor apaixonado, é necessário conhecer suas raízes, os momentos de sua vida que desembocaram nesse amor intenso por Jesus Cristo desde a infância até se tornar superior geral da Companhia de Jesus.
O primeiro encontro com o Coração de Jesus remonta à sua infância. Pedro Arrupe, que já havia perdido sua mãe em 1916, estudava brilhantemente Medicina em Madri, quando foi chamado dez anos depois para sua terra natal, Bilbao. Ele observava entre lágrimas uma cena desoladora: suas irmãs ao redor do leito de Dom Marcelino, seu pai, que se debatia entre a vida e a morte. Por um momento, Pedro se inclinou à janela. Como em outros anos, Bilbao se preparava para a procissão do Sagrado Coração. Justo em frente à sua casa, estava sendo montado um altar e uma alfombra de flores. Ele se viu criança com sua vela na mão, seguindo seu enorme pai pelas ruas de Bilbao, sem faltar um ano. As lágrimas voltaram a seus olhos.
"Eu me inclinei por um momento à janela —escreveria Pedro— e vi o padre Basterra, SJ, entrando em nosso portal. Desci precipitadamente ao seu encontro.
— Como está Dom Marcelino? — perguntou-me.
— Mal! Ele já perdeu a consciência.
— Pobre Perico! Como o Senhor te prova! Mas veja — disse, apontando para a estátua do Coração de Jesus, que naquele momento estava sendo colocada no altar da rua —, aí está seu verdadeiro pai, que morreu por você, mas vive sempre ao seu lado. Jesus foi desde então meu verdadeiro pai".
Esse é o primeiro passo em direção à sua vocação de jesuíta, que se reforçaria com o conhecimento da pobreza da periferia de Madri. Durante o noviciado em Loyola, onde já se destacou por sua simpatia, sua oração e a austeridade consigo mesmo, um tema frequente nas conversas de Arrupe com seus companheiros era a devoção ao Coração de Jesus, algo que ao longo do tempo ele sempre manteve sem pretender impor. Nesse período de sua formação, ele chegou a tornar famoso o "Disco de Arrupe". Era um pequeno folheto onde Arrupe havia sintetizado algumas notas sobre o Coração de Jesus Cristo e a forma de praticar essa devoção. O "Disco de Arrupe" circulava de mão em mão em cópias feitas à máquina e em formato de octavilla.
O exemplar do "Disco de Arrupe" que me enviou antes de morrer o padre Germán Arzuza, companheiro de Arrupe, conserva um raro sabor de relíquia. As páginas desse pequeno caderno, encadernado em uma frágil cartolina cinza ondulada, amarelam de velhice. É composto por quatro partes:
I. Origem da questão.
II. Enorme transcendência do assunto.
III. Razões das dificuldades encontradas na prática dessa devoção.
IV. Como conseguir o verdadeiro espírito e senti-lo. Seu conteúdo é um bom resumo dos livros e palestras da época sobre o Coração de Jesus. Arrupe sempre manteve essa devoção, como veremos, embora evoluísse em sua dimensão mística e na forma de aplicá-la aos outros com o passar do tempo.
Após seus estudos de filosofia na Bélgica, na véspera de sua ordenação sacerdotal, um companheiro, que havia sido seu noviço, Jesus Iturrioz, conta como chegou a esse momento tão importante para Pedro Arrupe. Foi um tempo em que ele aprofundou os fundamentos teológicos da devoção ao Coração de Jesus. Ele pensava que essa devoção era uma estratégia para a obra da redenção: "Não me resigno a que, quando eu morrer, o mundo siga como se eu não tivesse vivido"; e, poucos dias depois, acrescenta: "Somos tão pouco, podemos tão pouco e a obra da redenção é tão grande!".
Em uma nota manuscrita desse tempo, ele escreve: "Meus ministérios e minhas obras cotidianas, meu trabalho, o de hoje também, superarão em fruto (não no futuro, mas no presente), superam minhas esperanças... Senhor, alargue meu coração para que eu possa esperar, como você alargou o seu para nos amar!". Dias depois, entrega ao padre Iturrioz uma oração ao Coração de Cristo, que leva o título Magister adest et vocat te (O Mestre está aqui e te chama: Jo. 11,28), e que havia composto em agosto daquele ano, um texto muito revelador da entrega incondicional de Pedro Arrupe. Cito a versão que sete anos depois ele reelabora no Japão, talvez superando um pouco do estilo pietista daqueles anos. Esta é, portanto, sua formulação definitiva:
Jesus, meu Deus, meu Redentor, meu Amigo, meu íntimo Amigo, meu coração, meu carinho. Aqui venho, Senhor, para te dizer desde o mais profundo do meu coração e com a maior sinceridade e carinho que sou capaz, que não há nada no mundo que me atraia, senão Tu somente, Jesus meu.
Não quero as coisas do mundo. Não quero me consolar com as criaturas. Só quero me esvaziar de tudo e de mim mesmo, para te amar somente a Ti.
Para Ti, Senhor, todo o meu coração, todos os seus afetos, todos os seus carinhos, todas as suas delicadezas...
Ó Senhor!, não me canso de repetir-te: nada quero senão o teu amor e a tua confiança. Te prometo, te juro, Senhor; ouvir sempre as tuas inspirações, viver a tua própria vida.
Fala-me muito frequentemente no fundo da alma e exige muito de mim, que te juro pelo teu Coração fazer sempre o que Tu desejas, por menor ou mais custoso que seja.
Como poderei negar-te algo, se o único consolo do meu coração é esperar que caia uma palavra dos teus lábios, para satisfazer os teus desejos?
Senhor; vê minha miséria, minha dureza, minha fraqueza... Mata-me antes que eu te negue algo que Tu queiras de mim. Senhor, por tua Mãe! Senhor, por tuas almas!, dá-me essa graça...
Em uma das estampas, ele adiciona a seu amigo: “Concede a este outro Jesus, a quem tanto amas, que chegue a ser um grande santo e um apóstolo do teu Sagrado Coração. Para mim, não te peço senão que: fiat mihi secundum verbum tuum. Para Ti: Adveniat Regnum tuum fiat voluntas tua sicut in caelo et in terra.
Quando finalmente se cumpriu seu sonho de ser destinado à missão do Japão, ao se lançar cada vez mais em seu apostolado, por ocasião da consagração ao Coração de Jesus da capela de algumas religiosas, teve a ideia de repetir essa experiência com as famílias japonesas. Ele conta como, às vezes, essa oração feita a partir da autenticidade e simplicidade provocava a união na oração de pessoas da mesma família que pertenciam ao budismo e ao xintoísmo, e, às vezes, também algumas conversões. O modo de agir do padre Arrupe já provocava uma reação de curiosidade e convencimento... A quem conhece o Japão e sabe das dificuldades para conseguir uma conversão ao cristianismo lá, não pode deixar de se surpreender com os primeiros sucessos do padre Arrupe. Por exemplo, aquela família católica cujo pai era hostil à fé cristã, embora permitisse que sua esposa e seus filhos a praticassem. Ela queria que Arrupe consagrasse sua casa ao Coração de Jesus. Mas no dia em que o jesuíta se apresentou em casa, o pai estava presente. Arrupe não se intimidou. Realizou a cerimônia. De repente, uma cortina se abriu e apareceu o pai, que exclamou diretamente: “Quero me batizar”.
Qual era o segredo dessa eficácia? O padre Arrupe lembraria mais tarde em numerosas homilias, entendendo o Coração de Cristo como o centro de sua pessoa, seu “eu” profundo. Assim ele escreveria com os anos: “Em resumo, aqui temos também o mais simples e o mais profundo da verdadeira devoção ao Sagrado Coração. Olhando para aquele livro ‘escrito por dentro e por fora’, podemos aprender a Cristo, no qual estão escondidos ‘os tesouros da sabedoria e da ciência’ (Col 2,3). Olhando e lendo naquele crucificado com o lado aberto, veremos nele o Filho de Deus ‘que se humilhou a si mesmo, tornando-se obediente até a morte de cruz’ (Fil 2,8). E, indo a Ele, acreditaremos com essa fé que, se verdadeira, nos impulsionará às obras. Obras de amor a Deus, sem dúvida, mas de um amor que deve se manifestar no amor aos irmãos.
“Se o amor de Deus é tão grande que nos deu seu Filho unigênito, ‘Deus amou tanto o mundo que deu seu Filho unigênito’ (Jo 3,16), nossa resposta a esse amor deve ser a entrega absoluta a Cristo e aos irmãos; ‘Fazei-vos, pois, imitadores de Deus, como filhos muito amados, e andai na caridade, assim como o próprio Cristo vos amou e se entregou a si mesmo por nós, oferecendo-se a Deus em sacrifício adorável’ (Ef 5,1). Por isso, Pio XII pôde escrever que no culto ao Sagrado Coração ‘está contido o resumo de toda a religião e também a vida mais perfeita’”.
Esse estilo de vida já era o segredo mais profundo do jovem padre Arrupe. Pelos barracões do Settlement, em seus primeiros contatos japoneses e enquanto se o via ir de aqui para ali com esse espírito inquieto e alegre, tinha ares de apaixonado, de um grande apaixonado pelo “eu central” de Cristo. Parecia, desde o início de seu trabalho missionário, convencido de que a força de suas ações não dependia dele. Por isso, onde passava, deixava sempre um pouco de coração e, como não queria que fosse o seu, deixava o Coração de Jesus. Era o segredo de um espírito universal que eclodiria mais tarde... Por isso, já como provincial, consagraria em 25 de julho a província do Japão ao Coração de Jesus.
Carinho de pai eleito superior geral da Companhia de Jesus em 1965, nunca esquecerá essa devoção especial. Retirou-se para a Villa Cavalleti, perto de Frascati, no dia 24 de julho, para dedicar dez dias aos Exercícios Espirituais. Em um caderno de anotações espirituais, aparece um coração generoso ao estilo inaciano, aberto ao “universo mundo”, à Igreja, ao Papa; um autêntico missionário e um homem de intensa oração, unido a Deus não para si mesmo, mas em função dos outros e, em particular, dos jesuítas. Assim, sem querer, autodefiniu o que na verdade chegaria a ser seu generalato: “O geral é o chefe, mas é cabeça e pai. É governante e administrador; daí a amabilidade, carinho, simplicidade de pai, clareza, determinação, firmeza..., compreensão, bondade humanas, carinho e amor”.
Sente que Deus lhe pede uma grande abnegação, tornar-se um “servidor”, “um pequeno” segundo o estilo evangélico, o que lhe comunica “uma fortaleza extraordinária”. Esses densos apontamentos confirmam também a tese de que o padre Arrupe havia feito um “voto de perfeição” a Deus, um compromisso voluntário de buscar Sua vontade e cumpri-la, escolhendo o que mais leva a isso, durante os últimos anos de formação. “Agora tenho que observá-lo com toda a diligência, pois nessa diligência em observá-lo estará também minha preparação para ouvir, ver e ser instrumento do Senhor”, acrescenta. Depois de sua morte, encontrou-se em seu quarto um cartão postal com a imagem do Sagrado Coração, impressa em tom monocromático esverdeado, cujo verso tinha escrita a fórmula de seu voto de perfeição. Trata-se de uma promessa diante de Deus de escolher entre duas opções a mais espiritualmente perfeita.
Em sua menuda e veloz escrita reaparece sua particular devoção ao Coração de Jesus e à Eucaristia: “Presença real de Cristo, de meu amigo, de meu grande chefe, mas ao mesmo tempo meu íntimo confidente. A obra é dos dois: ele me comunica seus planos, seus desejos; a mim cabe colaborar “externamente” em seus planos, que Ele deve realizar internamente com sua graça. Que obra tão grandiosa a que Ele coloca em minhas mãos; isso exige uma união de corações completa, uma identificação absoluta, sempre com Ele! E Ele nunca se afastará! Eu tenho que mostrar-Lhe confiança e fidelidade. Nunca me separar d’Ele. Mas a raiz está nesse amor de amicitia (amor de amizade), em sentir-se o alter ego de Jesus Cristo. Com uma humildade profundíssima, mas com uma alegria e felicidade imensas também. Sempre com Ele! Sempre pendurado em seus lábios e em seus desejos. Que vida tão feliz! Obrigado, meu Deus! Aqui estou, Senhor!”
Aproveitando a referência a Deus, um jornalista da televisão italiana, RAI, perguntou-lhe durante uma entrevista:
— A esta palavra, “Deus”, foram atribuídas muitas imagens ao longo da história. São imagens de Deus especialmente para o uso e consumo dos poderosos, para evitar a sublevação dos escravos. Mas quem é esse Deus para o padre Arrupe?
O realizador do programa televisivo seleciona um primeiro plano. O piloto vermelho se acende sobre a câmera, que realiza um movimento de aproximação sobre o geral da Companhia de Jesus. No olhar de Arrupe há entusiasmo. — Para mim é tudo, não? Para mim é tudo; portanto, o rosto de Deus não saberia descrevê-lo; não o imagino com um rosto, mas é algo que preenche completamente minha vida e que aparece na fisionomia de Jesus Cristo, no Jesus Cristo oculto, naturalmente, na Eucaristia, e depois em meus irmãos, nos homens, que são imagem de Deus; de modo que acredito que isso, para mim, resume tudo. Quem é Deus para você? A resposta, portanto, é muito simples: Tudo.
Mais tarde, Arrupe completará essa resposta. Jesus Cristo é o motor da vida do padre Arrupe. “Foi meu ideal desde minha entrada na Companhia, foi e continua sendo meu caminho, foi e é sempre minha força. Acredito que não é preciso explicar muito o que isso significa: tirem Jesus Cristo da minha vida e tudo desmoronará, como um corpo a quem se retira seu esqueleto, o coração e a cabeça”.
Essa interioridade cristocêntrica é concretizada por Pedro Arrupe na imagem do Coração, que aprendeu em seu noviciado e conservará intimamente até o fim. E, no entanto, durante seu generalato, fala muito de Jesus Cristo e não demasiado do Coração de Jesus. “Há uma razão que poderíamos qualificar de pastoral -- explica --, especialmente em relação à Companhia. Diante das reações emocionais e das alergias que se manifestaram há alguns anos, relativas à expressão ‘Sagrado Coração’, fenômeno que tem, em parte, sua origem em certas exagerações e manifestações de afetividade, me pareceu que era necessário deixar passar um tempo, durante o qual essa carga emocional, compreensível, mas de certo modo pouco racional, desaparecesse”. Arrupe entende o “coração” como “centro”, “fonte” (Ur-Wort), palavra primigênia, cheia de significado.
Por isso, em 1972, decide mudar a fórmula existente de consagração da Companhia ao Coração de Jesus, vigente desde os tempos do Geral padre Beckx (1872). Com este motivo, havia encarregado os jesuítas Schwendimann e Solano de prepararem a nova redação. Já havia sido realizada uma edição de trinta mil exemplares com esse texto, quando, fazendo seus Exercícios espirituais, chamou o padre Luis González um dia depois do jantar e contou que o padre Giuliani se oferecera para levá-lo a La Storta -- capela nos arredores de Roma, onde Inácio de Loyola, depois de rogar a Maria que “o quisesse colocar com Seu Filho”, viu claramente que “Deus Pai o colocava com Cristo”, e onde Jesus lhe chegou a dizer: Quero que você nos sirva --, e que, enquanto estava orando naquela capela, lhe ocorrera escrever ali mesmo a nova fórmula de consagração.
O texto, austero e profundo, vem situar a entrega do jesuíta atual como uma prolongação da graça e iluminação recebidas ali por Inácio. Sobre esse amor apaixonado a Jesus Cristo, já citamos alguns parágrafos de seus apontamentos de Exercícios logo após ser eleito geral. Aqui está outro revelador: “O amor pessoal por Jesus Cristo (pelos membros da Companhia) é absolutamente necessário e a base para a identificação com Ele; isto é, para chegar a ser possuído de sua graça de tal forma que seus pensamentos sejam os meus e querer o meu... Chegar a essa identificação é o ideal e o segredo da verdadeira santificação e do verdadeiro desempenho do meu papel de geral, já que não sou senão um instrumento racional d’Ele; não apenas um segundo subordinado (no sentido humano), mas um verdadeiro instrumento que não deve agir senão movido pela causa principal. Que alegria e felicidade poder chegar a isso!”.
Em suas cartas pessoais, Pedro Arrupe frequentemente se refere ao Coração de Jesus. Como testemunho da delicadeza com que Arrupe tratava pessoalmente alguns casos de tribulação de jesuítas veteranos, Facundo Jiménez, SJ, me facilitou esta carta que o impressionou vivamente, datada de 30 de novembro de 1967: “Querido padre Jiménez: Um pouco mais aliviado do trabalho dessas últimas semanas, desejo eu mesmo agradecer-lhe sua sincera carta do dia 5 do mês passado em que filialmente me abre seu coração entristecido pelas deficiências que vê atualmente na Companhia. Deus lhe há de recompensar muito a vida de oração e sacrifício que oferece pela renovação de nossa Companhia. Continue assim, sem deixar de fomentar uma ilimitada confiança no Coração de Jesus, que sabe tirar bens dos males que nos afligem e de nossas próprias faltas e pecados. Oxalá aqueles que se entristecem pelo estado da Companhia o imitassem...”.
Mais adiante, no dia 3 de dezembro, um sacerdote, Francis Peter Takezoe Tamotsu, ferido pela bomba atômica e convertido à fé cristã pelo padre Arrupe, escreve-lhe do Japão, quando este já se encontrava enfermo em Roma:
“Meu admirado e querido padre Arrupe:
Jamais esquecerei aquele dia histórico, há trinta e oito anos, em que foi lançada a bomba atômica sobre Hiroshima. Atualmente estou lendo com enorme interesse o relato que alguns meses depois você publicou no Catholic Digest. E me dou perfeita conta da necessidade de continuar orando pela verdadeira paz, que fará possível que tal tragédia não volte a se repetir.
Hoje recebi uma carta do professor Kanzawa em que me refere seu encontro com você em Roma. Fiquei profundamente emocionado. Como você se encontra? Rezo sempre por você, confiando na providência do amor do Coração de Jesus.
Há trinta e oito anos, no dia 6 de agosto, caiu a bomba atômica sobre Hiroshima.
Há trinta e oito anos, no dia 9 de agosto, caiu a bomba atômica em Nagasaki.
Há trinta e oito anos, no dia 15 de agosto, ocorreu a rendição do Japão.
Essas sucessivas tragédias me levaram ao limite da desesperação. Foi em abril de 1946, ao voltar de Xangai para Hiroshima, quando, sem saber o que fazer nem aonde ir, tive a sorte de conhecer o senhor Matsuda, um católico, que me levou um domingo ao noviciado de Nagatsuka e me apresentou a você.
Naquele momento, minha desesperação se transformou em esperança e minhas trevas em luz; meu coração se encheu de coragem, esperança e alegria. Meu encontro com você significou meu verdadeiro encontro com o Senhor Jesus. Desde então, meu coração arde em amor com uma oração. Quando penso em você, sinto-me confortado pelo amor do Coração de Jesus.
Talvez a síntese mais completa do pensamento teológico e existencial do padre Arrupe sobre o Coração de Jesus esteja em seu artigo “O Coração de Cristo, centro do mistério cristão e chave do Universo”, publicado em inglês nos Estados Unidos por ocasião do I Centenário dos Missionários do Sagrado Coração e presente neste livro, onde parte de seu conceito de coração como centro Urwort, palavra primigênia, que evoca mais do que diz, como interpretativa da história da salvação daquele que quis se definir como “coração manso e humilde”, pois vive no coração do homem e é manifestação e portador do amor do Pai; “passou fazendo o bem”, pregou o amor ao inimigo, ao pecador e nos ensina a amar “como eu vos amei”, pois “Deus é amor, e todo aquele que ama, uma vez que o amor é de Deus, nasceu de Deus e conhece a Deus”. Neste texto, Pedro Arrupe se mostra contrário à dissociação entre o amor de Deus e o amor do irmão.
Sobre o sentido cósmico desse amor, Arrupe cita Teilhard de Chardin. Para compreender sua importância, preciso recorrer a uma experiência pessoal. Quando o visitei em Roma, já muito doente devido à trombose, para coletar informações para minha biografia, tive experiências muito impactantes sobre sua aceitação, sua marginalização e desautorização naquele momento, e a grande fé e confiança com que vivia aquele martírio incruento. Pois bem, como mal podia ler na época, devido à sua doença, tinha em mãos um livro de grande formato com imagens sobre Teilhard de Chardin, o grande cientista, filósofo e teólogo que não conseguiu ver suas obras publicadas em vida e que Arrupe defendeu em sua primeira coletiva de imprensa como geral.
Em seu livro A Oração do P. Teilhard de Chardin, Henri de Lubac, SJ, conta que ele sempre tinha uma imagem do Sagrado Coração em seu breviário. Ele costumava celebrar a missa do Sagrado Coração nas primeiras sextas-feiras do mês e recitar as ladainhas do Sagrado Coração, em relação às quais sentia a maior admiração. “O Coração de Cristo é algo mais do que o Coração partido por nossos pecados. O Coração de Cristo é o centro de todos os corações, da cuja plenitude todos recebemos, a fonte de toda santidade, a fonte de toda graça, o forno ardente que envia seus raios de amor através de todo o universo”. Para Teilhard, a fogueira que derrama sua chama foi um poderoso símbolo para expressar uma realidade ontológica, misteriosa, mas não menos real: a influência do amor de Cristo que penetra, transfigura e consagra todo o universo (P. Wenisch, SJ, Teilhard de Chardin e a devoção ao Sagrado Coração, Dehoniana 1975-1977, p. 1-12)
Arrupe o cita porque “fez compatível a mais honesta investigação científica com uma incrível ternura e penetração espiritual. Teilhard professou uma apaixonada adesão ao Coração de Cristo”. O Sagrado Coração era seu ponto ômega do universo. O mundo tem um coração e esse é o Coração de Cristo, para o qual tudo converge. Arrupe conclui que esse amor é trinitário e que, em um mundo caracterizado pela descrença, “Deus se revela pela dimensão do enorme vazio que essa ignorância ou essa negação deixou em nosso coração”. Com um consequente sentido comunitário: “Mais do que uma comunidade de fé - embora também seja - é a comunidade de amor que nasce da comunidade de fé”.
Pedro Arrupe foi um homem que se adiantou ao seu tempo em temas que hoje são reconhecidos como prioridades indiscutíveis: a inculturação, o diálogo com os descrentes, a promoção da justiça como consequência da fé, a solidariedade universal, a importância das migrações, o grave problema dos refugiados, o racismo, a situação da mulher na Igreja e o capitalismo selvagem ou pensamento único. Todos esses temas foram abordados pelo padre Arrupe já no século XX, sempre com espírito de fé e otimismo. “Como não posso ser otimista, se acredito em Deus?”, dizia. Tanto que suas últimas palavras antes de morrer foram “Para o presente, amém; para o futuro, aleluia”.
Acreditava ser necessário lembrar com este artigo que um homem, tão atual, com o futuro na essência, professou em vida essa singular devoção. Sem dúvida, a fonte de toda a energia e força que o acompanhou sempre e, sobretudo, em seus nove anos de calvário residia em um coração humano que ele expandiu até se fundir misticamente com o fogo infinito do Coração de Jesus.
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O Coração de Jesus, segundo Arrupe. Artigo de Pedro Miguel Lamet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU