24 Junho 2023
"Assim como o Coração de Cristo foi trespassado por um mundo que o rejeitou, dificultou, marginalizou, expulsou até levá-lo a morrer na cruz da maldição fora da cidade, a situação atual dos cristãos hoje - para retomar uma palavra cara ao teólogo - é a da 'diáspora'", escreve Francesco Cosentino, em artigo publicado por Settimana News, 16-6-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Francesco Cosentino é teólogo e padre italiano, membro da Congregação para o Clero e professor da Pontifícia Universidade Gregoriana.
O grande teólogo do século XX Karl Rahner, em seu ecletismo, conseguiu oferecer numerosas reflexões teológicas e várias meditações espirituais sobre muitos aspectos do cristianismo e da vida cristã. Uma teologia nunca separada da espiritualidade, nunca fechada no exercício retórico e sufocante das especulações abstratas, sempre entrelaçada com os sopros e anélitos do Espírito, com a oração, com a dimensão espiritual e com o pulsar dos acontecimentos humanos. Como de fato, toda teologia deveria ser.
Não surpreende, portanto, para quem conhece a riqueza da obra de Rahner, deparar-se com alguns de seus escritos sobre o Sagrado Coração de Jesus, a que o conhecido teólogo alemão dedicou diversas pesquisas, algumas das quais reunidas em um livro intitulado precisamente A devoção ao Sagrado Coração [1].
Rahner, cuja reflexão não se deixa rotular por julgamentos e preconceitos que, ainda hoje, com incauta superficialidade, são emitidos por inúmeros internautas, defende a devoção ao Sagrado Coração e, ao mesmo tempo, com aquela abertura de espírito e coração que o tornou um intérprete lúcido da mudança da nossa época, afirma que chegou o momento de subtrair essa devoção do sentimentalismo dos séculos passados e de formas de devoção nacional-populares que aviltam seu sentido profundo.
Devemos abandonar a devoção ao Sagrado Coração? Rahner responde assim: “a sensação de ser possível simplesmente deixar para trás este passado da nossa Igreja (devoção ao Sagrado Coração) como uma fórmula vazia – algo que, dada a ignávia dos nossos corações, somos todos tentados a fazer – não prova ainda que podemos fazê-lo licitamente diante de Deus e diante da nossa responsabilidade pela continuidade da história da Igreja.
Uma sensação desse tipo, ao contrário, deveria nos encher de medo”; ao mesmo tempo, exorta-nos: “Deveríamos perguntar-nos se... não nos esteja reservado um novo conhecimento da essência desta devoção e um seu novo exercício. Nem tudo o que hoje nos fascina como plausibilidade indiscutível, e é assim mercadejado e comprado em toda parte, é o que nos torna grandes diante de Deus e para o futuro da Igreja”. [2].
Rahner faz questão de aprofundar o significado bíblico, espiritual e simbólico do termo "coração", que, ao indicar o centro vital da pessoa, nos convida a considerar a devoção como um caminho que de forma vertiginosa nos aproxima ao próprio Mistério de Deus e para o amplitude infinita do seu amor, ajudando-nos a apreender a Sua encarnação: a humanidade de um Deus com o coração trespassado pelas feridas impressas na vida dos seus filhos, um coração manso e humilde, um coração compassivo e misericordioso que – afirmava o teólogo – faz-nos experimentar Deus como próximo, como Aquele que se doa no amor e por amor.
Partindo dessa atenção à devoção do Sagrado Coração, em Rahner se encontram páginas esplêndidas sobre o ministério sacerdotal "de amanhã". A nota a ser lembrada, se necessário, é que o "amanhã" ao qual ele aludia é praticamente o nosso hoje e isso torna essas palavras cheias de profecia, além de grande clareza.
Assim como o Coração de Cristo foi trespassado por um mundo que o rejeitou, dificultou, marginalizou, expulsou até levá-lo a morrer na cruz da maldição fora da cidade, a situação atual dos cristãos hoje - para retomar uma palavra cara ao teólogo - é a da "diáspora".
O cristão de hoje vive num mundo profundamente mudado, que transformou inexoravelmente o seu no mundo como cristão, modificou e continuará a modificar o testemunho cristão nas situações e nos ambientes da vida cotidiana onde, cada vez mais, nos encontramos imersos no pluralismo das ideias, visões e convicções. Ele se encontrará cada vez mais em ambientes não homogêneos da vida cotidiana, nos quais sentirá a dificuldade de falar sobre coisas religiosas, sentindo-se "como alguém que pensa diferente dos outros. Tudo isso constitui para ele um fardo assustador e cruel... enquanto se sente constantemente dificultado, desiludido, questionado pelas opiniões diferentes do ambiente” [3].
Para o padre, a situação não é diferente, pelo contrário. Seu ministério resultará cada vez mais imerso em um mundo que absolutamente não reconhecerá seu papel público e social, em um ambiente diferenciado, muitas vezes indiferente e às vezes hostil, no qual sentirá a sua veste, a sua fala e o seu testemunho como inadequados e inoportunos. No entanto, diz Rahner, esta será sua maior força que o levará de volta ao Mistério de Cristo, o Único que permanece quando você é despojado de tudo. Como Jesus, o sacerdote de amanhã será um padre "de coração trespassado".
Vale a pena deter-se em pelo menos numa parte do intenso texto rahneriano, que pode acompanhar os padres - e não só - na meditação pessoal:
"O sacerdote de amanhã será um homem que será procurado pelos adultos, mesmo que a sociedade burguesa não lhe confie mais seus filhos. Será um homem que suporta, no sentido mais amplo da palavra, a pesada escuridão da existência junto com seus irmãos e irmãs. Mas saberá que as trevas encontram sua origem e seu feliz cumprimento no mistério do amor vitorioso, no absurdo da cruz. Será (caso contrário não será sacerdote) um homem capaz de escutar, um homem para o qual cada homem é importante, mesmo que não conte nada no campo social ou político.
Será um homem com quem é possível confidenciar-se, que exerce ou tenta ensinar, da melhor maneira que pode, um ofício insano, o de carregar não só seus próprios fardos, mas também os fardos dos outros. Um homem que, apesar de ter todas as possibilidades, não participa da caça desesperada e neurótica pelo dinheiro, pelo prazer e por todos os outros analgésicos contra a trágica desilusão da existência.
Em vez disso, demonstrará com a sua vida que a livre renúncia no amor do Crucificado não só é possível, mas também capaz de libertar. O sacerdote de amanhã não será aquele que haure sua força do prestígio social da Igreja, mas terá a coragem de fazer sua a não força social da Igreja... Não será mais o psicoterapeuta vestido com trajes de mago que há muito ficaram fora de moda. Falará em voz baixa, não pensará que pode iluminar com disputas patéticas a escuridão que pesa sobre a vida ou quebrar o estado de sítio em que se encontra a fé. Deixará com calma que Deus vença onde ele pessoalmente resulta derrotado, operará a graça de Deus mesmo quando não puder mais oferecê-la ao homem com sua própria palavra e com o sacramento em formas aceitáveis para o homem.
Em suma: o sacerdote de amanhã será o homem com o coração trespassado e só dessa ferida brotará a eficácia da sua missão. Com o coração trespassado: de uma existência que parece sem Deus, da loucura do amor, do fracasso, da experiência da própria miséria e profunda problematicidade.
O sacerdócio tornar-se-á cada vez menos uma entidade social óbvia, terá de ser exercido cada vez mais na diáspora da incredulidade, da insignificância social da Igreja, da impossibilidade de experienciar Deus no mundo. [...] ele não é mais o papa na sua aldeia nem é mais obviamente parte dos notáveis: em suma, desaparecem o privilégio e o prestígio social. Pouco a pouco, só lhe resta a sua essência mais autêntica: ser o homem de Deus, o homo religiosus, aquele que acredita, espera e ama. A situação em que viverá sempre lhe apresentará a pergunta: 'Você é o que deve ser, ou seja, um homem de coração trespassado, verdadeiro templo de Deus, fonte do Espírito, verdadeira força de sua missão e da autenticidade de suas palavras?”'. [4]
Ora, se o padre de amanhã tem que ser assim... então ele não pode fazer senão uma coisa: dirigir-se para o Senhor que serve, erguer os olhos para aquele que foi traspassado e venerar o coração de Cristo.
[1] K. Rahner, La devozione al Sacro Cuore, Paoline, Milano 1977.
[2] K. Rahner, Nuovi Saggi teologici, vol. X, Paoline, Milano 1986, pp. 408-409.
[3] K. Rahner, Le virtù dell’annuncio. Saggi scelti, San Paolo, Cinisello Balsamo 2013, 54
[4] Texto retirado de Karl Rahner, "L’uomo dal cuore trafitto. Culto del cuore di Gesù e futura esistenza sacerdotale”, in Id., Discepoli di Cristo. Meditazioni sul sacerdozio, Paoline, Roma 1968
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O Sagrado Coração e o “sacerdote de amanhã”. Artigo de Francesco Cosentino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU