02 Julho 2025
Levantamento da Matinal mostra que governo do RS descumpre meta de universalização das bibliotecas. Das escolas com o equipamento, a maioria não conta com bibliotecário, outra irregularidade.
A reportagem é de Valentina Bressan, publicado por Matinal, 01-06-2025.
No Rio Grande do Sul, mais de 75 mil alunos da rede estadual estudam em escolas sem bibliotecas. São 344 (14,8%) instituições de ensino estaduais onde os estudantes não contam com um espaço para ter contato com os livros, segundo levantamento da Matinal com base no último Censo Escolar.
O resultado deixa o estado longe de cumprir a Lei da Universalização das Bibliotecas, sancionada em 2010, que prevê que toda instituição de ensino conte com o espaço até o final deste ano. A lei indica também a presença de um bibliotecário nas bibliotecas escolares, meta na qual o estado está ainda mais atrasado.
Em 2024, as escolas estaduais gaúchas alcançaram o menor número de bibliotecários já registrado no Censo Escolar. Quase 400 mil alunos matriculados na rede de ensino gaúcha estudam em escolas onde não há bibliotecário – considerando matrículas no ensino fundamental, médio e EJA. São 1.653 (71,3%) escolas estaduais sem a figura deste profissional, conforme a mineração de dados feita pela Matinal.
“No Rio Grande do Sul, temos cerca de 20 bibliotecários atuando em bibliotecas escolares estaduais. O último concurso foi feito em 1993. Os profissionais se aposentaram, e as vagas não foram repostas. Isso se repete em vários municípios também”, alerta Filipe Xerxenesky, presidente do Conselho Regional de Biblioteconomia (CRB-10).
Sem um profissional atuante no espaço, especialistas apontam que o risco é de cada vez mais sucateamento e abandono nas bibliotecas. Para a professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Marília Forgearini Nunes, a ausência dos bibliotecários prejudica parte da formação dos alunos. “O professor pode ser muito bem-intencionado, mas ele não vai estar focado nas questões da formação do bibliotecário, que perpassam constituição de acervo, manuseio, registro e também a mediação”, explica.
Em abril de 2024, o Tribunal de Contas do Estado (TCE) emitiu uma decisão que recomenda que o governo realize concurso público para bibliotecários e técnicos em biblioteconomia, para atender às bibliotecas escolares da rede estadual. A decisão atendeu uma recomendação do Ministério Público de Contas, que partiu da denúncia do mandato da deputada estadual Sofia Cavedon (PT), com base em um levantamento feito por seu gabinete.
Até o momento, o governo não cumpriu a recomendação. “Depois da decisão do TCE, nenhuma iniciativa foi tomada pelo governo para suprir as escolas, fosse ela fazer um concurso ou pensar numa política alternativa para abrir as bibliotecas”, afirma a parlamentar.
Em nota, o TCE informou que, desde agosto de 2024, não houve atualizações no processo. A realização do concurso segue sendo monitorada pela Direção de Controle e Orientação do TCE, que não fixou prazo específico para que a medida seja cumprida.
Além de descumprir a lei, o Rio Grande do Sul também descumpre a constituição estadual. Em 1989, o estado foi pioneiro em estabelecer uma rede estadual de bibliotecas e determinou, no artigo 218, que “o Estado manterá um sistema de bibliotecas escolares na rede pública estadual e exigirá a existência de bibliotecas na rede escolar privada, cabendo-lhe fiscalizá-las”.
Somente 17% dos municípios gaúchos cumprem com a Lei da Universalização das Bibliotecas em todas as escolas privadas, estaduais, municipais e federais.
No levantamento nacional do Censo Escolar, foram consideradas escolas de educação infantil, ensino fundamental e ensino médio. Os dados da última edição foram apresentados pelo Ministério da Educação (MEC) em abril deste ano. Para a reportagem, a Matinal levou em conta apenas as escolas ativas – que não haviam sido extintas e não passavam por paralisações temporárias.
Em 2024, a Lei da Universalização foi alterada pela lei 14.837, que instituiu o Sistema Nacional de Bibliotecas Escolares. Agora, todas as escolas devem contar com bibliotecas até o prazo do Plano Nacional de Educação (PNE), que foi prorrogado pelo presidente Lula até o final de 2025.
Mas a realidade ainda fica aquém do previsto na letra da lei. “Viemos notando um abandono progressivo do espaço das bibliotecas. Há resistências, mas vemos que a precariedade das bibliotecas acompanha a precariedade das escolas”, alerta Sofia Cavedon, responsável pela criação da Frente Parlamentar de Incentivo ao Livro e à Leitura.
Outro fenômeno é o crescimento das “salas de leitura” no Censo Escolar. De acordo com a definição do Inep, trata-se de um “espaço reservado aos alunos para consultas, leituras e estudos”, localizado fora da biblioteca. Para professores e especialistas, o uso da nomenclatura é uma maneira de driblar as exigências de uma biblioteca – como a presença de bibliotecários e a quantidade de volumes no acervo.
“A lei acaba sendo deturpada: nós vemos muitas escolas que criam ‘cantinhos de leitura’, salas de leitura, espaços que não se denominam bibliotecas de fato, mas funcionam como bibliotecas”, alerta Xerxenesky, do Conselho de Biblioteconomia.
Para a professora Marília Nunes, esses ambientes não cumprem o propósito das bibliotecas. “Cantinhos de leitura, espaços de leitura na sala de aula não substituem esse ambiente que é o da biblioteca como mediadora da leitura”, defende.
“Sabemos que a Lei da Universalização das Bibliotecas não é cumprida. Nós deveríamos ter profissionais qualificados atuando nesse espaço formativo que é imprescindível. Tem atividades que são privativas do bibliotecário, resguardadas por lei: tratamento da informação, classificação e catalogação”, explica Xerxenesky.
No Rio Grande do Sul, um parecer de 2021 do Conselho Estadual de Educação também prevê a atuação do profissional nas bibliotecas escolares. A definição de biblioteca escolar citada no documento inclui “possuir um bibliotecário qualificado, o que permite competência profissional para desempenhar as funções complexas de ensino e de gestão da biblioteca escolar”.
Em diversas escolas, as bibliotecas se mantêm abertas com professores atuando na função de bibliotecários. “As bibliotecas abertas, sem bibliotecário, estão irregulares, na contramão da Lei da Universalização das Bibliotecas Escolares”, completa. Em 2024, somente 666 escolas contavam com bibliotecários – isso representa 28,7% do total de escolas estaduais, a menor taxa registrada desde que a presença de bibliotecários começou a ser informada ao Censo Escolar, em 2019.
“É um espaço que acaba se tornando só uma sala com livros. E uma sala com livros não media leitura, não forma leitores”, alerta Nunes. Solicitamos ao Inep uma explicação sobre o uso dessa nomenclatura, mas o órgão não respondeu até o fechamento da reportagem.
Em nota, a Seduc confirma o desvio de função de professores e o não cumprimento da Lei de Universalização. Afirmou que “existem hoje 849 professores que atuam no espaço de leitura em 652 escolas estaduais”. Mas não respondeu sobre a falta de bibliotecas em 17% das escolas, nem sobre a falta de bibliotecários, uma exigência para o funcionamento adequado de um equipamento como este.
No Portal da Transparência do governo estadual, constam 20 profissionais bibliotecários ativos lotados na Secretaria de Educação.
No Colégio Estadual Júlio de Castilhos, uma das escolas estaduais mais tradicionais de Porto Alegre, a resistência de professores e da equipe diretiva é o que garante a manutenção de uma biblioteca de portas abertas.
Apesar de ir na contramão da tendência de sucateamento dos espaços, a biblioteca do Julinho é exemplo da situação em que professores acabam encarregados das atividades de manutenção do acervo e atendimento aos alunos. A professora de História Marion Michalski é quem mantém a biblioteca aberta há oito anos. “Nós costumávamos ter quatro pessoas por turno na biblioteca. Em 2016, éramos três. Como as duas bibliotecárias se aposentaram, em 2018 fiquei sozinha cuidando do espaço”, relata.
Além de Marion, professores voluntários cumprem horário na biblioteca para manter o espaço aberto em todos os turnos.
Com a convivência com a biblioteca, Michalski acabou se apaixonando pelo cargo que desempenhava. “Em 2022, fiz o Enem e comecei a cursar Biblioteconomia na UFRGS. Fui estudar porque percebi que é uma profissão completamente diferente da de professor”. Segundo ela, a Seduc costumava oferecer formações para os professores que trabalhavam nas bibliotecas, mas nas últimas gestões, esses cursos foram abandonados.
Entre as estantes da biblioteca Moacyr Scliar, Marion organiza seções específicas com livros de temática LGBT e volumes assinados por autores negros. “É preciso bancar as histórias, ter uma insistência para manter as coisas funcionando. Esses destaques têm a ver com o aluno se enxergar ali nos livros”, defende.
“A relação com o aluno aqui é diferente. O ambiente proporciona aos alunos agir de outra forma”, explica Marion. No Julinho, a biblioteca ainda serve de apoio para o clube de xadrez, para eventos de saraus literários e clube do livro.
Para a professora Marília Nunes, da UFRGS, essas também devem ser funções da biblioteca. “A gente não pode dizer que a biblioteca é apenas um espaço de acesso a livros físicos. Também é um espaço de diversidade, de acesso a objetos culturais”.