Apagão ou destruição da docência no Brasil? Artigo de Gabriel Grabowski

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04 Mai 2022

 

"A falta de professores não é apenas consequência de descaso com a educação, mas um projeto de destruição da ciência, da cultura e da educação básica pública de qualidade social e emancipatória", escreve Gabriel Grabowski, Doutor em Educação (Ufrgs, 2010) e MBA de Gestão Universitária pela UCS/Comung (2017), docente e pesquisador da Universidade Feevale, em Novo Hamburgo (RS), pesquisador do Programa de Qualidade Ambiental e Mestrado em Letras e professor do Centro Universitário Metodista de Educação (IPA), em Porto Alegre (RS), em artigo publicado por Extra Classe, 03-05-2022.

 

Eis o artigo.

 

“É muito vulgar a afirmação de que, hoje, qualquer um de nós traz no bolso, no seu celular, mais informações, dados e imagens do que a ciência acumulou ao longo dos séculos. (…) Num apalavra, como aprender a pensar, sabendo que nunca o poderemos fazer sozinhos. É para isso que precisamos dos professores, para comporem uma pedagogia do encontro”

(António Nóvoa e Yara Alvim)

 

A educação, como a Ciência e a Cultura, está passando por um momento de profundas incertezas e inseguranças promovidas pelo Estado brasileiro. Desafios e dilemas impactam todo o sistema educacional e a comunidade escolar. Porém, o professor é o primeiro a sentir e repensar seu futuro nesse contexto.

 

A expressão “apagão docente” ou “apagão de professores” tem sido utilizada pelos meios de comunicação para anunciar a iminente falta de professores que teremos para atender a demanda de educação básica no Brasil, segundo algumas estimativas, já em 2025. Termo utilizado, também, para denunciar os “apagões” da Ciência e da “Cultura”, acentuados pelo governo atual.

 

Um conjunto de medidas estão em curso acelerando este desmonte e a destruição de áreas estratégicas que afetam a soberania nacional. Destacam-se os cortes orçamentários sistemáticos, a redução de gastos e investimentos, o anti-intelctualismo e a falta condições de trabalho na pesquisa e na docência. Sem financiamento não existirá produção de conhecimentos, nem ensino.

 

As maiores evidências do apagão docente e a destruição da carreira dos professores expressam-se na baixa procura por cursos de licenciatura, na redução de matrículas, na extinção de oferta de cursos de licenciaturas pelas Instituições de Ensino Superior (IES), na defasagem quantitativa entre o número de jovens professores e no número de docentes na etapa final de suas carreiras.

 

50 anos ou mais

 

Estudos e dados do INEP/MEC indicam que a maioria dos professores em efetivo exercício possuem 50 anos ou mais, enquanto os professores com até 24 anos correspondem a menos que um quinto. O censo do ensino superior 2020, publicado recentemente, confirma tendência de redução de matrículas nos cursos de licenciatura nos últimos anos. O último censo revela, também, que os Cursos de licenciaturas tiveram o menor ingresso (18%), seguidos Cursos de tecnologia (26%) e os Cursos de Bacharelado com 55%.

 

Em 2020 tivemos uma redução de 24 mil matrículas em relação a 2019, sendo que 48,3% das matrículas estão concentradas somente na Pedagogia (815.000 estudantes), 9,1 Educação Física Formação Professores, 5,7% Matemática, 5,3% História e 4,7% Biologia, totalizando 73,1% matrículas em apenas 5 licenciaturas. Física com apenas 1,8% das matrículas e Química 2,3 agravam a falta de professores já existentes, pois nem todos os habilitados exercem docência. Até porque o professor recebe salários, segundo alguns estudos, em torno 30% a 40% menores do que outros profissionais com curso superior equivalente.

 

Quase 60% das licenciaturas são EaD

 

Outros indicadores do censo preocupam e precisam serem considerados. Das matrículas nos cursos de licenciatura registradas em 2020, 33,6% estão em instituições públicas e 66,4% estão em IES privadas. Ou seja, para ser professor a maioria precisa pagar. 72,8% das matrículas em cursos de licenciatura são do sexo feminino, enquanto 27,2% são do sexo masculino.

 

Em relação à modalidade de ensino, as matrículas em cursos de licenciatura presencial representam 40,7%, enquanto a distância (EaD) são 59,3%. Essas, sem formação prática ou práticas de estágio em escolas públicas.

 

Essa condição docente brasileira é um fenômeno social complexo e multicausal. A desvalorização da educação e dos professores é histórica e inerente à estruturação educacional brasileira.

 

Privilégio

 

Enquanto o direito à educação era privilégio de uma elite, a docência até era glamourizada. Com a ampliação deste direito a todos – ocorrido somente em 2009 com a PEC 59 –, desencadeia-se um processo de precarização da educação básica pública e de desvalorização dos profissionais.

 

Abandono da carreira

 

O “apagão docente” materializado na destruição da docência é evidenciado também pelo abandono do projeto de ser docente.

 

Estudo de Lilian Wagner e Janaína Pereira Carlesso (UFN, Brasil), a Profissão docente: um estudo do abandono da carreira na contemporaneidade revela que, não se trata apenas de uma renúncia ou desistência do professor, mas do desfecho de um ciclo e de um processo de fadiga, insatisfação, descuido, desprezo, incompreensão e um mal-estar.

 

A análise do estudo aponta ainda, que a desvalorização profissional, o faz de conta dos colegas, o descaso e desrespeito dos estudantes, as decepções frequentes, as expectativas financeiras, a falta de reconhecimento profissional e pessoal, é que levam os professores a buscar outras profissões. Desta forma, manifestam-se duas fases importantes do ciclo profissional: o pôr-se em questão e o desinvestimento na carreira.

 

Salários e contratualidade

 

O Plano Nacional de Educação aprovado em 2014 tinha como meta, que as redes de ensino tivessem, até 2017, apenas 10% de seu corpo docente temporário e, a valorização de profissionais do magistério de forma a equiparar seu rendimento médio aos demais profissionais com escolaridade equivalente, até sexto ano de vigência do PNE (Meta 17).

 

A equiparação salarial aumentou no período abordado, passando de 65,3%, em 2012, para 78,1%, em 2019, mas foi mais em decorrência do decréscimo do rendimento bruto médio mensal dos demais profissionais, que correspondeu a uma perda real de 13,3% do poder de compra efetivo ao longo dos anos analisados, do que pelo aumento do rendimento dos professores.

 

Já sobre os docentes com contrato temporário, designado ou contratado, apenas quatro redes estaduais (Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Sergipe e Rondônia) atingiram a meta em 2018.

 

Precarização dos vínculos

 

Estes vínculos precários já atingem mais de 560 mil professores da rede pública em todo o país. Ou seja, 40% dos professores, em média, vivenciam relações frágeis e inseguras de trabalho.

 

Em sete estados o número de contratos temporários da rede estadual ultrapassa a quantidade de contratos efetivos: Espirito Santo, Acre, Ceará, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e Paraíba.

 

O RS está entre os estados com maior número de contratos emergenciais: em torno 40%, há quase duas décadas e 8 anos sem reajuste mesmo com inflação em alta.

 

O uso excessivo do regime temporário de remuneração instável e a alta rotatividade inviabilizam a criação de vínculos dos professores com a comunidade escolar e que resultam na fragilização da condição docente.

 

Rotatividade versus qualidade

 

“As pesquisas internacionais apontam que a permanência do professor no local de trabalho é fundamental para a qualidade de ensino. Uma escola que mantém o corpo docente mais estável têm um coletivo mais integrado para planejar e para trocar informações sobre os alunos”, afirma Dalila Andrade de Oliveira, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

 

A desigualdade social e educacional se expressa também nas escolas mais pobres, que possuem maior rotatividade no quadro de professores, diretores menos experientes e menos alunos interessados nas vagas existentes na periferia.

 

Fragmentação

 

Tal situação fragmenta o projeto político-pedagógico e compromete a formação dos estudantes, reproduzindo o ciclo da pobreza e a falta de oportunidade educacional de qualidade na aprendizagem.

 

Uma série de outras razões contribuem para o apagão docente, que já é real e vai se agravar a partir dos próximos anos letivos.

 

Registra-se ainda, o desprestígio e a desvalorização social; a contestação e não pagamento do piso nacional por gestores públicos; o exercício da docência em áreas conhecimento sem habilitação acadêmica; a insegurança provocada por mudanças nos planos de carreira no efetivo exercício e na aposentadoria; a ausência de políticas de apoio financeiro na formação inicial e continuada; a responsabilização dos professores pela falta de condições de aprendizagem dos estudantes e, a desresponsabilização dos gestores públicos pela má gestão da educação.

 

Cinco ameaças à educação brasileira

 

Destacam-se, por fim, cinco aspectos políticos e econômicos que ameaçam os professores e sua carreira.

 

O primeiro, é o da (des)valorização docente. É necessário que os docentes sejam reconhecidos como trabalhadores da educação e contemplados com todas as frentes de valorização da carreira, englobando questões salariais, condições de trabalho, políticas de carreira e as formações inicial, continuada e de pós-graduação.

 

O segundo, é rever a política do teto de gastos, imposta pela Proposta de Emenda Constitucional 95, que impede a possibilidade concreta de valorização docente e instaura um incerteza na carreira destes profissionais.

 

Para educação brasileira, com grave déficit histórico, não se deveria aplicar teto de gastos, mas cumprir a Meta 20 do PNE vigente.

 

O terceiro aspecto passa pelos possíveis impactos da reforma trabalhista que incidem nos professores/as da esfera privada com contratos intermitentes, mas que podem também, num futuro próximo, atingir os professores das redes públicas. Em alguns países já há a contratação de professores pelo período de nove meses, correspondente à temporada de atendimento aos estudantes, o que gera a perda de estabilidade da categoria.

 

Isso permite aos reformadores empresariais da educação se apropriarem das políticas públicas para beneficiar o sistema privado, ampliando a privatização da educação com fundos públicos, que é o quarto aspecto.

 

O quinto aspecto, não menos importante, é a reforma no Novo Ensino Médio. Se os secretários estaduais de educação decidirem ofertar só Matemática, Português e Inglês (em alguma série), adotar o quinto itinerário técnico-profissional (inclusive com “notório saber”), desenvolver até 30% currículo através EAD e de plataformas educacionais, conforme permite a lei nº 13.415/2017, não precisarão mais contratar professores das Ciências Humanas (História, Geografia, Sociologia, Filosofia) e promoverão drástica redução de custos com professores Educação Física, Biologia, Química, Literatura e Artes.

 

 

Concursos em baixa

 

Com o volume de contratos temporários e redução de pessoal, não serão realizados concursos para professores, como já ocorre em vários estados.

 

Os estados do Rio de Janeiro e do Paraná já terceirizaram as 1.200 horas da parte flexível do currículo (40%) mediante contratos de parceria com o sistema S e uma faculdade privada, com oferta a distância.

 

No Rio Grande do Sul, a nova Matriz curricular em implementação a partir de 2022, reduziu significativamente a carga horária de várias disciplinas e áreas de conhecimento desestimulando os atuais e futuros interessados na profissão docente. Aumentou, portanto, a insegurança e a incerteza, principalmente, dos professores com contrato emergencial.

 

Afinal, que razões um/a professor/a terá para investir na formação de carreira com um futuro ameaçado?

 

Enfrentamento

 

Para fazer o enfrentamento desta situação algumas medidas estruturais precisam ser implementadas imediatamente: políticas públicas de financiamento da formação inicial de professores; investimento na atratividade e permanência na profissão; valorização social e estatal da profissão docente ao patamar das profissões mais reconhecidas e sonhadas pelos jovens; reconhecer e legitimar que na escola e na educação o maior especialista e autoridade é o professor; estruturação e planejamento em redes de Instituições de Ensino Superior (IES) para formação em todos disciplinas e áreas que já faltam professores ou que irão faltar em breve e, qualificar a formação acadêmica numa perspectiva teórico-prática mais densa e instituir residência pedagógica remunerada.

 

Causas do apagão

 

O apagão docente é resultado de políticas e ações planejadas e irresponsáveis de governos empenhados com a destruição da educação pública e alinhados com a mercantilização da educação básica. Para tal, fragilizam ainda mais a esfera pública e promovem a destruição da carreira docente. Tal destruição interrompe projetos profissionais, projetos de vida e utopias de uma sociedade e humanidade melhor.

 

Ataques à autonomia docente, liberdade de cátedra, liberdade de ensinar e aprender com os estudantes já são parte de nosso cotidiano.

 

A falta de professores não é apenas consequência de descaso com a educação, mas um projeto de destruição da ciência, da cultura e da educação básica pública de qualidade social e emancipatória.

 

Nota do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

 

No dia 19 de maio, a Profa. Dra. Hildegard Susana Jung – UniLaSalle e o Prof. Dr. Rodrigo Manoel Dias da Silva – Unisinos ministram a palestra "A educação na Região Metropolitana de Porto Alegre – realidades e perspectivas". A atividade integra o IHU ideias, que objetiva fomentar o debate sobre temas da atualidade, abrangendo as áreas de atuação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

 

A educação na Região Metropolitana de Porto Alegre – realidades e perspectivas

 

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