10 Junho 2024
A defasagem no ensino e aspectos emocionais são apontados como grandes desafios das escolas públicas após as cheias.
A reportagem é de Luciano Velleda, publicada por Sul21, 09-06-2024.
A enchente histórica que assolou Porto Alegre no começo de maio e ainda mantém bairros alagados, tem consequências dolorosas em muitos aspectos da vida social e econômica da Capital. Efeitos que devem perdurar por muito tempo, para além de quando toda a cidade secar. Uma das facetas do impacto da enchente é o modo como ela afeta – e afetará – a rede pública de educação, seja estadual ou municipal. Há décadas sofrendo com falta de investimentos e recursos humanos, o fosso existente entre a escola pública e a rede privada se alargou durante a pandemia e, tudo indica, se aprofundará ainda mais agora.
Diretor do Colégio Estadual Coronel Afonso Emilio Massot desde 2022, João Alberto Rodrigues compara a enchente com a pandemia do novo coronavírus não em relação ao número de vítimas fatais, obviamente, mas no sentido do distanciamento da escola de seus alunos e dos preparativos para o retorno, um recomeço que ele reconhece ser delicado e precário.
A maneira como a enchente afetou os estudantes é um ponto significativo. Se há aqueles que foram pouco atingidos, há outros cujas famílias perderam tudo ou quase isso. É esse segundo grupo que Rodrigues diz ser a maior preocupação da escola no momento. Ele pontua que a escola tem o importante papel da segurança, afeto e vínculo, e quando ela fica fechada por força maior, esse papel deixa de existir. Sobra um vácuo e nada ocupa esse lugar na vida do estudante. Por isso, para além das questões de defasagem de conteúdo, ele projeta que os alunos regressarão com questões emocionais diante de tudo o que foi vivenciado.
“São aspectos anteriores à questão do conteúdo e que, quando tiver esse retorno, vão precisar ser muito bem trabalhados, para só depois retomar questões de conteúdo e revisões”, explica.
O Colégio Emilio Massot ficou com 80 cm de água do dia 7 até o dia 15 de maio. No andar térreo, cozinha, biblioteca, secretarias e documentos tiveram perda total, incluindo mobiliários. A limpeza da escola começou no dia 31 de maio e, segundo o diretor, de forma bem limitada devido aos poucos funcionários da empresa contratada. Por enquanto, ainda não há prazo para reabrir o colégio. “Se fosse uma equipe maior, seria feito um trabalho bem mais rápido, mais dinâmico”, salienta.
Rodrigues sabe que os estudantes de escola pública e famílias mais precarizadas vão carecer de recursos financeiros, alimentares, sociais, afetivos e psicológicos. Enquanto alunos de famílias com melhores condições sócio-econômicas têm mais capacidade de contornar problemas, estudantes de escola pública acumulam dificuldades variadas. Nesse contexto, o aprendizado escolar vai sendo levado na medida do possível, assim como as condições ofertadas pela escola pública.
“A forma como é possível a escola atender é precarizada e burocratizada. Nem sempre a escola consegue acessar de outra forma porque carece de recursos e o estudante não consegue porque também carece de recursos. Enquanto que a rede privada vai ter maior disponibilidade de recursos, um corpo docente e profissionais também maiores para trabalhar e mais ferramentas para acessarem. O abismo que se aprofundou na pandemia, as enchentes vão aumentar ainda mais um pouco”, analisa o diretor do Colégio Emilio Massot.
Ele avalia ter havido diálogo com a Secretaria Estadual de Educação (Seduc), porém, no contexto da educação pública sucateada e precarizada, tal cenário se reflete também nos recursos humanos e materiais dentro do órgão que faz a gestão das escolas estaduais. Se em condições normais as carências já são relevantes, agora com a tragédia da enchente tudo fica mais evidente. “Não tem uma estrutura para lidar de forma dinâmica e ágil com a situação mais grave e drástica. A coisa tem que ser criada no momento em que acontece, não há algo razoavelmente planejado para casos mais graves e urgentes”, afirma.
O diretor enfatiza que a escola já costuma lidar com problemas de manutenção no dia a dia e a enchente agora agravou as questões estruturais. As demandas – e as dificuldades – se empilham.
Tal como o diretor do Colégio Emilio Massot, a presidente do Cpers, Helenir Schurer, pondera que a pandemia impactou fortemente as escolas, porém, com a diferença da possibilidade das aulas remotas, além da própria estrutura física das escolas, onde os professores deixavam atividades e os alunos retiravam para fazer. Desse modo, mesmo com dificuldades foi possível, de algum modo, atender os alunos. Agora, para ela, a realidade é muito pior.
“Temos mais de 400 escolas que foram atingidas. Algumas escolas não existem mais porque a água levou”, lamenta.
Além do estrago da estrutura física, Helenir chama atenção para o aspecto humano: há toda uma comunidade escolar atingida pela enchente. Há escolas que foram destruídas, outras inundadas, e há ainda escolas que não foram inundadas, mas a comunidade daquela escola foi atingida. São professores, funcionários e famílias de alunos que perderam tudo e foram parar em abrigos, em alguns casos distantes do local de origem – moradores de Canoas e Eldorado do Sul que estão na Capital gaúcha, por exemplo.
A possibilidade de aula on-line no atual cenário é descartada pela presidente do Cpers. Se é verdade que existem alunos que não foram afetados e estão seguros em suas casas, outros nem casa têm mais, quanto mais um aparelho para conectar na internet.
“O processo de retorno vai ser bem mais lento porque não adianta falar que a escola está seca, está pronta, quando temos pessoas que sequer ainda retornaram às suas casas”, afirma. O reflexo já pode ser sentido no calendário. Enquanto há escolas que nunca pararam as atividades, há outras que pararam e já retornaram às aulas, outras que logo voltarão às atividades e ainda há escolas que nem previsão de retorno têm – como o Colégio Emilio Massot.
O governo de Eduardo Leite (PSDB) informou que 1.066 escolas estaduais foram afetadas em 251 municípios do estado. Entre as escolas municipais, somente em Porto Alegre 14 foram completamente alagadas e 11 destelhadas. Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Simone Valdete dos Santos, lembra que as escolas municipais têm a característica de serem nas periferias, regiões justamente mais afetadas nas cidades da região metropolitana.
A perspectiva é de um longo trabalho de limpeza, reconstrução e aquisição do mobiliário perdido que precisará ser feito na rede pública. Moradora de São Leopoldo, Simone cita o colégio Rio Branco, da rede particular, que rapidamente fez sua limpeza e voltou a funcionar. Uma agilidade que não costuma acontecer nas escolas públicas.
Ao pensar a retomada, Simone considera vital a relação de proximidade dos gestores públicos com as direções das escolas para ouvir e acolher suas demandas. Um processo que será melhor à medida em que for mais ágil e oferecer à comunidade escolar a possibilidade de retorno.
“As crianças precisam da escola. As famílias podem estar sem casa, mas têm a referência dos bairros e é necessário retornar porque muitas pessoas, mesmo nos abrigos, estão indo trabalhar e precisam ter um local seguro para deixar as crianças”, avalia.
A professora da UFRGS chama atenção para as crianças dos anos iniciais, do primeiro ao quarto ano do ensino fundamental, período determinante para a alfabetização. Para ela, seria importante o governo federal ter especial atenção com os anos iniciais. O olhar para o 7º, 8º e 9º também deve ser especial, acredita Simone, por serem anos de alta reprovação e evasão escolar. No ensino médio, ela destaca a importância de políticas afirmativas para que os jovens permaneçam na escola, como a bolsa recém lançada “Pé de Meia”, do governo federal. “Essas políticas são essenciais e agora, com essa situação da enchente, elas precisam ter um cuidado maior”, afirma.
Além dos alunos, ela pondera que os professores que tiveram perdas também precisam ser acolhidos. O aspecto humano, talvez, seja ainda mais desafiador do que a infraestrutura das escolas para viabilizar a volta às aulas.
A professora da UFRGS enfatiza a necessidade da trágica enchente trazer como aprendizado a reflexão sobre a natureza. O momento de dor pode servir de ponto de partida para se falar dos recursos hídricos, da preservação das florestas, da ocupação dos leitos de rios, da expansão urbana, da falta de drenagem do solo, da mudança climática com períodos de seca, enchente ou incêndios, do respeito aos alertas da Defesa Civil e outros elementos de educação ambiental que devem ser incorporados definitivamente na grade curricular.
“A escola tem que pensar e refletir, de forma conjunta, esse trauma que todos nós estamos vivendo, mas que também é um trauma provocado pelo manejo direto e indireto. A educação ambiental, que foi super deixada de lado, precisa voltar com força no Rio Grande do Sul. Essa crise formos nós que provocamos”, sustenta.
Ela sugere que reportagens e novos livros infantis e juvenis, que já começam a ser lançados com a temática ambiental e da enchente, também sejam trabalhados em sala de aula a partir de agora para ressignificar a tragédia. Os traumas individuais e coletivos, propõe Simone, podem ser transformados em aprendizagem. No mesmo sentido, diz que a população precisa começar a exigir uma política ambiental séria, tanto no Brasil quanto no Rio Grande do Sul. “Estamos vivendo tragédias por questões de falta de manejo ambiental e isso precisa ser currículo. A gente também ressignifica os traumas no sentido de começar a intervir nisso”, afirma.
João Alberto Rodrigues, diretor do Colégio Estadual Coronel Afonso Emilio Massot, diz que assim como os temas sociais que atravessam os alunos e a escola busca trabalhar em sala de aula, como o racismo, sexualidade e violência de gênero, a pauta ambiental deve ter mais espaço em sala de aula. Todavia, pondera sobre o tempo que o professor precisa ter para se preparar e trabalhar com mais um assunto.
“Não adianta só demandar do professor um texto em PDF sobre questões climáticas. E o tempo para se preparar para isso e estudar?”, pergunta. Rodrigues avalia que não apenas a temática ambiental, mas também outras questões os professores têm dificuldade de trabalhar, refletir e dialogar por falta de tempo para se preparar. Sem o correto estudo, diz ele, a demanda pode se tornar vazia, embora o assunto seja relevante.
Apesar das inúmeras dificuldades, ou até mesmo por causa delas, o diretor do Colégio Emilio Massot reflete que a escola pública no Brasil tem um grande papel para além da questão do conteúdo, um papel que se expressa na alimentação dos alunos, em aspectos emocionais e relações pessoais que não se estabelecem fora da escola. Uma função social além da educacional.
“Diante dessas situações, esse papel é redimensionado. Têm escolas que viraram abrigos ou pontos de coleta. As escolas que passaram por tudo isso terão que receber os alunos lentamente, ver como estão, como passaram esse período, já que muitos não vão ter recursos para acessar terapias e discutir suas questões”, projeta Rogrigues. “A escola acaba sendo um espaço de escuta.”
A Prefeitura de Porto Alegre informou que 14 escolas municipais ficaram (algumas ainda estão) totalmente alagadas e outras 11 foram destelhadas. Muitas dessas escolas já aguardavam obras de melhoria em sua infraestrutura antes da enchente. Com o evento climático extremo, o que já era difícil ficou ainda mais.
“Temos uma comunidade escolar que hoje é refugiada climática e, dentre esses, os professores e trabalhadores de escola”, lamenta Isabel Medeiros, diretora da Associação dos Trabalhadores em Educação de Porto Alegre (Atempa).
Ela se preocupa com a necessidade de haver ações imediatas e logísticas na rede municipal de ensino e ressalta que as crianças atingidas pela enchente são da mesma geração da pandemia, o que agrava o impacto da descolarização na vida delas. Além da perda no ensino dos alunos, a diretora da Atempa afirma que as orientações de retorno às aulas ainda não estão claras para as direções de escolas.
O cenário de volta às aulas nas 14 escolas alagadas é visto como “nebuloso” pela diretora da Atempa, com falta de informações e orientações da Prefeitura. Isabel acredita que as escolas mais atingidas não terão condições de reabrir até o final do ano. A estimativa é baseada na demora em reformas de outras escolas em situações anteriores, bem menos graves do que a trágica enchente.
“Estamos demandando que as escolas sejam recuperadas e devolvidas para a população”, afirma.
A preocupação aumenta diante da constatação de que muitas unidades afetadas são de educação infantil, etapa de ensino que já sofre com falta de vagas na Capital. Isabel pondera que a questão legal está resolvida desde quando o Conselho Nacional da Educação desobrigou o cumprimento dos 200 dias letivos. O problema é mesmo com a perda de ensino dos alunos.
“Nossa preocupação é saber onde estão essas crianças e quantos anos elas vão perder de uma escola diária, efetiva, em que ela fique ao menos quatro horas por dia”, sustenta.
Como alternativa para compensar as 14 escolas alagadas e as 11 destelhadas, a diretora da Atempa defende que haja parceria com o governo estadual e o uso de prédios vazios do Estado, ou mesmo prédios da própria prefeitura. “Tem que investir maciçamente o recurso público na educação pública.”
Isabel avalia que o “desmonte” da comunidade escolar, com pessoas em abrigos, sem casa, sem emprego e crianças deslocadas de suas referências no bairro, são um dos principais dramas do momento. O senso de pertencimento está desfigurado. Resgatar as relações estabelecidas com os familiares, avós, mães e filhos é um enorme desafio. “É algo muito impactante. A escola tem essa missão específica da escolarização e a educação escolar é cuidar e educar. Não existe uma relação de educação escolar que não tenha o cuidado. É um momento muito desafiador.”
Outro ponto de preocupação para ela é o rumor de que escolas municipais possam ser “adotadas” por escolas privadas. Para a diretora da Atempa, as escolas privadas podem apoiar, mas a política pública não deve depender da bondade do setor privado. “Nos causa muito incômodo a centralização das decisões, sem debate, e tudo muito voltado para a não recuperação do público e para a migração para o privado.”
Em certa medida, a mesma preocupação é compartilhada por Helenir Schurer, presidente do Cpers. Com cenários tão diversos nas escolas estaduais, ela diz temer propostas que começam a surgir, como escolas temporárias em locais alternativos que podem dificultar o acesso dos alunos. O aspecto psicológico é outra preocupação.
“Como voltarão os alunos que vivenciaram essa tragédia? Como botar um professor em sala de aula que não tem nem casa mais? Como botar um funcionário e fazer com que ele exerça suas funções enquanto também está desalojado?”, questiona Helenir. “São muitas perguntas que temos. Pedimos audiência com a Secretaria Estadual de Educação, mas ainda não conseguimos. Este ano terá que ser um olhar diferenciado por escola, um olhar diferenciado para os trabalhadores da educação e um olhar diferenciado da comunidade escolar”, defende.
Pelo fato da enchente ter atingido não apenas bairros periféricos, mas também outros de classe média, como o Menino Deus na Capital, a presidente do Cpers deseja que a tragédia da enchente possa ter consequências diferentes para o futuro. Todavia, Helenir igualmente mantém um pé atrás e teme que o brilho do sol, com o passar do tempo, faça o drama vivido perder força.
Os rumores de “escolas de lona” preocupam a presidente do Cpers. Ela pondera que tal proposta pode não ter apoio das famílias e muitas desistirem se não se sentirem seguras para retornar. Por isso, ela cobra do governo estadual um projeto para receber as crianças na volta às aulas. “É muito fácil chamar numa ‘live’ os professores e dizer que têm que acolher os alunos. E quem acolhe o professor? Quem acolhe o funcionário? Como eles vão ser preparados para fazer este acolhimento?”, pergunta, cobrando que o governo estadual faça o acompanhamento psicológico dos profissionais e dos alunos. “Eles têm que ter a garantia de poder voltar com qualidade e tranquilidade para sua escola novamente.”
Uma determinação do Conselho Nacional da Educação decidiu que o estado do Rio Grande do Sul não precisa cumprir os 200 dias letivos no ano de 2024, mas deve dar conta da carga horária. Helenir apoia a decisão e calcula que, em média, as escolas acabarão perdendo em torno de 20 dias letivos por causa da enchente.
Por outro lado, a proposta de municipalização como forma de retornar às aulas é vista com receio. O medo é de que a ida extraordinária de alunos da rede estadual para completar o ano em escolas municipais acabe se tornando definitiva e o governo estadual não reabra algumas escolas. “Estamos atentos a todos esses detalhes, na defesa de que nossas escolas e comunidades se mantenham. Não queremos nem a privatização e nem a municipalização”, enfatiza a presidente do Cpers.
João Alberto Rodrigues, diretor do Colégio Estadual Coronel Afonso Emilio Massot, comenta que na pandemia os alunos demoraram a se habituar ao retorno às aulas e que o mesmo deve ocorrer agora. Assim, ele acredita que a ideia de recuperar o conteúdo perdido é muito problemática e o objetivo deve ser acolher e terminar o ano da melhor maneira possível. As defasagens existirão e ficarão para o ano seguinte. “Não é uma recuperação, é outra coisa. É encerrar o ano sabendo que as defasagens vão existir.”
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RS. Educação pública: ‘O abismo que se aprofundou na pandemia, as enchentes vão ampliar’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU