Números da cheia no RS revelam dados alarmantes, mas são incapazes de traduzir o cenário apocalíptico pós-enchente

O Rio Grande do Sul foi atingido por chuvas extremas desde o dia 27 de abril. Com quase todos os municípios atingidos pela maior enchente da história dos gaúchos, as regiões mais afetadas são os vales dos rios Taquari, Caí, Pardo, Jacuí, Sinos, Gravataí, além do Guaíba, em Porto Alegre, e da Lagoa dos Patos, em Pelotas e Rio Grande.

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: Cristina Guerini | 07 Junho 2024

A enchente de proporções bíblicas que atingiu o Estado do Rio Grande do Sul no mês de maio, resultante de uma trágica combinação meteorológica oriunda do novo regime climático global, dá materialidade mórbida às previsões dos climatologistas sobre os efeitos do aquecimento global.

Imagine que toda a população do Catar, país que sediou a última Copa do Mundo de futebol, precisamente todos os habitantes do país, fosse atingida diretamente por uma enchente. Em números absolutos é isso o que aconteceu no RS. A população afetada passa de 2,3 milhões de pessoas. Ainda segundo o Boletim da Defesa Civil do dia 05 de junho de 2024, 475 municípios foram atingidos, mais de 572 mil pessoas continuam desalojadas, 172 mortos, 41 desaparecidos e um cenário de devastação pelas ruas das cidades.

A frieza dos números e até mesmo de palavras ou imagens não são suficientes para dar dimensão de um estado que, no final das contas, transformou-se em ruínas. Com a estiagem de uma semana e o trabalho de bombeamento de áreas alagadas, grande parte da enchente cessou, mas bairros inteiros deixaram de existir, cidades foram arrasadas, tem muita gente fora de casa, empresas destruídas e estradas e pontes danificadas. Aeroporto, ferrovias, redes de energia e transporte público não conseguiram operar ou foram avariados. 

O inventário da destruição levará meses (talvez anos) para ser feito, mas os primeiros levantamentos começaram a ser estimados.

Danos à terra

Os prejuízos à produção e ao solo alcançam R$ 25,5 bilhões, conforme estudo da Faculdade de Agronomia da UFRGS e da Associação de Conservação de Solo e Água. O valor é a soma da perda física de produto - R$ 19,4 bilhões -, danos ao solo e aos nutrientes, outros R$ 6 bilhões.

Para chegar a estes números, os pesquisadores dividiram o Estado em sete mesorregiões. A maior perda ficou concentrada no Noroeste gaúcho, onde também está concentrada a maior área utilizada para a monocultura.

Impactos no campo

Aproximadamente 206 mil propriedades rurais sofreram danos decorrentes das inundações. 19,1 mil famílias tiveram perdas de infraestrutura, assim como 200 agroindústrias e mais de 34 mil famílias ficaram sem acesso à água potável, de acordo com levantamento publicado pela Emater.

Com todos os sistemas agroalimentares afetados, a perda de grãos é a mais expressiva, com mais de 48 mil produtores afetados, principalmente das culturas de soja e milho. Na pecuária são 3.711 criadores atingidos, com a maior perda entre os criadores de aves, onde mais de 1,1 milhão de animais morreram. Há prejuízos também nos bovinos de corte e de leite, abelhas, peixes e suínos.

A perda das pastagens ainda prejudicará a produção de carnes e leites nos próximos meses.

Resíduos: cenário de guerra

Enquanto a guerra em Gaza, que começou em 07 de outubro de 2023, gerou cerca de 37 milhões de toneladas de entulhos, a enchente no RS deve gerar em 47 milhões de toneladas, segundo aponta o resultado preliminar de um estudo realizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e a Mox Debris.

Com mais de 400 mil construções afetadas, estão previstos dois picos de geração de resíduos. Num primeiro momento, serão descartados aproximadamente 5 milhões de toneladas provenientes de móveis e equipamentos, além de 19 milhões de toneladas de edifícios destruídos.

No segundo momento, deve ocorrer uma alta nos resíduos oriundos das construções que tiveram suas estruturas comprometidas.

Perdas nas empresas

O mapeamento de uma startup catarinense, a LifesHub, indica que 194,5 mil empresas no RS foram afetadas pela cheia. Do total de empreendimentos, 121,6 mil são microempresas, com faturamento anual de R$ 360 mil, 61,4 mil empresas de pequeno porte, 8,1 mil empresas de porte médio e 3,3 mil grandes empresas.

O levantamento é realizado por meio de tecnologias, como geolocalização e banco de dados e tem em conta as companhias ativas dentro das áreas inundadas. A maioria desses negócios está concentrada na Grande Porto Alegre e nas regiões de Lajeado, Rio Grande e Santa Cruz.

Queda no PIB

O governador Eduardo Leite entregou um ofício à presidência da república solicitando aporte da União para compensar a queda da arrecadação. O documento prevê uma queda de 7% no Produto Interno Bruto - PIB gaúcho. A redução total, considerando setores público e privado, chega a R$ 22,1 bilhões.

Para esta estimativa, foram levados em conta os danos à infraestrutura logística, a paralisação das indústrias, a possível falência de empresas, o desemprego e a diminuição de prestação de serviços.
A Secretaria da Fazenda aponta que o Rio Grande do Sul deixará de recolher R$ 10 bilhões em impostos. As prefeituras também vão sentir os efeitos, pois 50% do IPVA e 25% do ICMS ficam com os municípios.

Prejuízos na educação

Mais de 40% das escolas do estado sofrem com as cheias. Totalizando 1.087 escolas atingidas pela tragédia climática, elas estão danificadas, têm problemas de acesso ou estão servindo de abrigo emergencial. As 573 instituições de ensino atingidas impactam a vida de 359.181 estudantes, conforme levantamento da Secretaria da Educação no dia 04 de junho de 2024.

Ao todo, 138 bibliotecas escolares perderam seus acervos, pois foram invadidas pela água, assim como as salas de aula especiais tiveram equipamentos estragados.

Mais de 50 mil alunos seguem sem aulas, pois além das escolas com retorno já programado, há 37 instituições de ensino, em diferentes cidades, com atividades suspensas por tempo indeterminado.

Reconstrução

Em uma primeira análise, professores da Faculdade de Economia da UFRGS estimaram que o RS precisará de R$ 150 bilhões nos próximos anos para um plano robusto de reconstrução do estado.

Até o momento, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, anunciou a criação do Plano Rio Grande, iniciativa destinada a reparar os danos causados pelas enchentes.

“O plano prevê ações em três frentes. A primeira, com ações focadas no curto prazo, prioriza a assistência social; a segunda envolve ações de médio prazo, como empreendimentos habitacionais e obras de infraestrutura; e a terceira prevê ações de longo prazo, como um plano de desenvolvimento econômico mais amplo”, explica matéria da Agência Brasil.

O governo federal, entre liberação de recursos, antecipação de benefícios e outras ações, concedeu até o momento R$ 62,5 bilhões. No dia 06 de junho, em visita ao estado, Lula anunciou o pagamento de dois meses de salários mínimos a mais de 430 mil pessoas.

Entre outras medidas já lançadas para ajudar às famílias, foi criado o Auxílio Reconstrução, que pagará R$ 5,1 mil a cada família em parcela única. Também foi anunciado o adiantamento do Bolsa Família para os beneficiários, a liberação do FGTS para 228,5 mil trabalhadores em 368 municípios, além da restituição antecipada do imposto de renda para 900 mil pessoas.

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