Crises, policrises e um mundo em colapso. Artigo de Rodolfo Gasparini Morbiolo

"O saudoso Papa Francisco, e agora o Papa Leão XIV, são homens de realidade e de esperança, que defendem a necessidade de uma verdadeira transformação da perspectiva do sujeito como fundamento de uma nova via para a humanidade. Edgar Morin não é citado nos textos papais indicados neste artigo, mas seu pensamento fica evidente como subjacente à reflexão apresentada pelos pontífices. E assoma como possibilidade de diálogo de extensão filosófica, teológica, sociológica e cientifica interdisciplinar indispensável também ao direcionamento dos horizontes da fé cristã sob a égide de um mundo envolto em 'policrises'."

O artigo é de Rodolfo Gasparini Morbiolo, mestre em Teologia pela PUC-SP (2011), doutorando em Teologia (PUC-SP), presbítero diocesano da Arquidiocese de Sorocaba/SP e professor do Instituto de Teologia “São João Paulo II” da província eclesiástica de Sorocaba, afiliado à PUC-SP.

Eis o artigo.

O mundo que conhecemos está em constante transformação há bastante tempo. Este mundo refere-se à natureza e ao meio ambiente, chamada Casa Comum da humanidade pelo Papa Francisco. É também a humanidade com seu modo de pensar e de agir, local e globalmente, convidada pelo recém-falecido papa à amizade social e à fraternidade universal. O mundo não é mal, pois provém da ação do Espírito Criador, embora a maldade esteja presente no mundo, e possa por vezes guiar o coração dos homens e mulheres por caminhos de guerra, sofrimento e dor, tergiversando a ordem cósmica. Assim, nem todas as transformações são ruins: há intentos, fruto do gênio humano, guiados pela astúcia e sede de poder e acumulação, que se não ruírem, jamais se poderá entrever um mundo novo de convivência pacífica entre os povos e nações, também gentil com as religiões.

O desafio, como um dia ressaltou Joseph Ratzinger, revela-se sempre antropológico, embora remeta à ação da Igreja, pois tudo que interessa à humanidade, interessa à comunidade dos discípulos de Jesus colocada no mundo como luz entre os povos. De fato, a Igreja é perita em humanidade, como um dia ressaltou o Papa Paulo VI, porque tem a experiência histórica de confrontar os desafios de cada tempo com o Evangelho de Jesus Cristo e a Revelação que Nosso Senhor fez do Pai e de Seu desígnio de amor e salvação.

Ainda no Policlínico Gemelli, aos 26 de fevereiro de 2025, o Papa Francisco falando aos membros da Pontifícia Academia para a Vida, refletia: "A Assembleia deste ano propôs a vocês enfrentar a pergunta que agora é chamada de 'policrise'. [...] O termo 'policrise' evoca o drama da situação histórica que estamos experimentando, na qual guerras, mudanças climáticas, problemas energéticos, epidemias, fenômeno migratório e inovação tecnológica convergem. O entrelaçamento dessas questões críticas, que simultaneamente tocam diferentes dimensões da vida, nos leva a nos questionar sobre o destino do mundo e nossa compreensão dele" (tradução livre do italiano).

Papa Leão XIV, nos primeiros dias de exercício de ministério petrino discursando à Fundação "Centesimus Annus pro Pontifice", aos 17 de maio de 2025, recorda e enfatiza: "O Papa Francisco utilizou o termo “policrise” para evocar o drama da situação histórica que vivemos [...]. Sobre questões de tamanha importância, a Doutrina Social da Igreja é chamada a fornecer chaves interpretativas que coloquem ciência e consciência em diálogo, dando assim uma contribuição fundamental ao conhecimento, à esperança e à paz. De fato, a Doutrina Social nos ensina a reconhecer que mais importante do que os problemas, ou as respostas para eles, é a maneira como os enfrentamos, com critérios de avaliação e princípios éticos e com abertura à graça de Deus".

O educador da complexidade, sociólogo francês, Edgar Morin, juntamente com Anne-Brigitte Kern, no livro "Terra-pátria", cunharam a expressão "policrise" para expressar uma situação de múltiplas crises interconectadas e que se amplificam mutuamente, tornando-se difíceis de gerenciar ou resolver de forma isolada. Em outras palavras, a "policrise" é um estado de complexidade crescente, onde diferentes crises se combinam e se agravam, formando um cenário desafiador para a sociedade.

Embora Morin tenha se esforçado para indicar um caminho de humanidade "Para sair do século XX", refletindo em que direção estaria caminhando o mundo depois um século marcado por tantas crises, a história recente ressalta que os problemas do último século continuam reverberando hoje, pois revelam uma humanidade que ainda não aprendeu a ser humana de fato: na relação, encontro e afeto. À pergunta se estamos "Rumo ao Abismo?", ele responde que é necessário que "Despertemos!" as consciências em vista de uma nova era antropológica que compreenda que tudo está interligado: passado, presente e futuro, bem como os saberes já produzidos. Somente pelo caminho da "Religação dos saberes", por uma leitura interdisciplinar da realidade, complexa, portanto, é que se pode aprender "Como viver em tempo de crise", construindo a "Fraternidade para resistir à crueldade do mundo". Tal fraternidade, para Morin, é sinônimo de esperança, pois reflete o esforço por vezes desesperado de resistir à crueldade e à barbárie, chagas do século XX ainda a sangrar nos tempos atuais.

O saudoso Papa Francisco, e agora o Papa Leão XIV, são homens de realidade e de esperança, que defendem a necessidade de uma verdadeira transformação da perspectiva do sujeito como fundamento de uma nova via para a humanidade. Edgar Morin não é citado nos textos papais indicados neste artigo, mas seu pensamento fica evidente como subjacente à reflexão apresentada pelos pontífices. E assoma como possibilidade de diálogo de extensão filosófica, teológica, sociológica e cientifica interdisciplinar indispensável também ao direcionamento dos horizontes da fé cristã sob a égide de um mundo envolto em 'policrises'.

Referências

FRANCISCO, Pp. Messaggio del Santo Padre Francesco ai partecipanti all’Assemblea Generale della Pontificia Accademia per la Vita (03, mar., 2025). Disponível aqui. Acesso em: 09, jun., 2025.

LEÃO XIV, Pp. Discurso do Papa Leão XIV aos membros da fundação "Centesimus Annus pro Pontifice" (17, mai., 2025). Disponível aqui. Acesso em: 09, jun., 2025.

MORIN, Edgar; KERN, Anne Brigitte. Terra-Pátria. 6.ed. Porto Alegre/RS: Sulina, 2011 (ed. original: 1993).

MORIN, Edgar (dir.). A religação dos saberes: o desafio do século XXI. 6.ed. RJ: Bertrand Brasil, 2007 (ed. original: 1999).

MORIN, Edgar. A crueldade do mundo. In: MORIN, E. Meus demônios. 4.ed. RJ: Bertrand Brasil, p. 271-274, 2003 (ed. original: 1994).

MORIN, Edgar. Despertemos! Um chamado para o despertar das consciências. RJ: Bertrand Brasil, 2023 (ed. original: 2022).

MORIN, Edgar. Fraternidade: para resistir à crueldade do mundo. SP: Palas Athena, 2019.

MORIN, Edgar. Para onde vai o mundo? Petrópolis/RJ: Vozes, 2010 (ed. original: 1981).

MORIN, Edgar. Para sair do século XX. RJ: Nova Fronteira, 1986 (ed. original: 1981).

MORIN, Edgar. Rumo ao abismo? Ensaio sobre o destino da humanidade. RJ: Bertrand Brasil, 2011 (ed. original: 2007).

PAULO VI, Pp. Encíclica “Populorum Progressio” sobre o desenvolvimento dos povos (26, mar., 1967). Disponível aqui. Acesso em: 09, jun., 2025.

RATZINGER, Joseph. O futuro do mundo pela esperança dos homens. In: RATZINGER, J. Fé e futuro. Estoril/PT: Princípia, p. 81-92, 2008 (ed. original: 1970).

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