08 Mai 2025
"O sinal de que a Igreja elegeu um novo papa continua sendo comunicado por meio de um dos recursos mais rudimentares da linguagem: a fumaça. Desde o famoso extra omnes, após o solene cortejo dos cardeais rumo à Capela Sistina, os olhos e lentes do mundo se voltam para a chaminé, já posicionada à espera dos votos que começarão a ser queimados, aguardando a coloração preta ou branca para indicar o resultado", escreve Marcus Tullius, mestre em Comunicação e coordenador de comunicação da Cáritas América Latina e Caribe. Atuou como coordenador da Pascom Brasil entre 2018 e 2024 e integra o Grupo de Reflexão sobre Comunicação (Grecom) da CNBB. Apresenta o programa Igreja Sinodal em emissoras de inspiração católica.
Vivemos em um tempo hipermidiatizado, no qual a comunicação instantânea se tornou um imperativo. Tudo é transmitido ao vivo, gravado em tempo real, editado no minuto seguinte e compartilhado aos milhões. A notícia não espera, a imagem precisa chegar antes mesmo de o fato se completar, e a lógica dos algoritmos define o que merece atenção.
Nesse cenário de excesso e velocidade, o conclave é uma exceção radical: uma instituição eclesial que se recusa a ser regida pela lógica da comunicação digital imediata. Um ritual que aposta no silêncio, na clausura e no mistério — valores cada vez mais raros na cultura digital. Se o último conclave, que elegeu o Papa Francisco em 2013, já foi o mais tecnológico e midiático da história, muita coisa mudou nos últimos doze anos. Uma das mudanças, inclusive, não é apenas comunicacional: nos dias que antecedem o novo conclave, o mercado financeiro se agita com apostas sobre quem será o próximo papa — estima-se que movimentem mais de R$ 100 milhões nas plataformas de apostas digitais.
O sinal de que a Igreja elegeu um novo papa continua sendo comunicado por meio de um dos recursos mais rudimentares da linguagem: a fumaça. Desde o famoso extra omnes, após o solene cortejo dos cardeais rumo à Capela Sistina, os olhos e lentes do mundo se voltam para a chaminé, já posicionada à espera dos votos que começarão a ser queimados, aguardando a coloração preta ou branca para indicar o resultado.
Não há notificação, comunicado oficial nem “vazamento”. Sem a fumaça — um sinal analógico — tudo é especulação. A fumaça não se explica: ela se interpreta. É um signo que exige paciência, e nem sempre é inequívoco. Às vezes, paira no ar uma fumaça cinzenta, ambígua — e o mundo precisa esperar. Essa espera já é, em si, uma mensagem: nem tudo pode ou deve ser comunicado imediatamente. Nem tudo pode ser domesticado pelos códigos da velocidade e da visibilidade.
Byung-Chul Han, em A sociedade da transparência (2017), alerta que o excesso de exposição pode destruir a aura dos processos que exigem maturação interior. “A exigência de transparência, presente por todo lado, intensifica-se de tal modo que se torna um fetiche e um tema totalizante” (p. 9). O conclave, nesse sentido, preserva uma “zona de sombra” necessária ao discernimento espiritual. É o oposto da lógica hiper expositiva do reality show, em que tudo é acompanhado em tempo real. Han adverte que, “quando o próprio mundo se transforma em espaço de exposição, já não é possível o habitar, que cede lugar à propaganda, com o objetivo de incrementar o capital da atenção do público” (p. 33). Não há câmeras ocultas, transmissões ao vivo nem bastidores acessíveis. Há silêncio, oração, escuta e voto. Todo o resto, novamente, é especulação.
Não deixa de ser um espetáculo — mas um espetáculo que se constrói pela negação do espetáculo. A mídia se organiza ao redor da Praça São Pedro, instala câmeras, monta estúdios, mobiliza comentaristas — mas o centro do evento permanece invisível. Mesmo após a subida da fumaça branca, ainda paira a dúvida até que se escute o Habemus Papam. Nada se revela sobre os bastidores da votação: não se sabe quem perdeu, quais foram as articulações, quantas rodadas foram necessárias. O que se anuncia não é um dado — é um nome.
É interessante lembrar que o conclave, com a estrutura e o rito tal como conhecemos hoje, vem do século XIII e foi sendo refinado ao longo dos séculos como um processo de discernimento que pressupõe recolhimento e segredo. Os cardeais são isolados do mundo externo. Não podem usar celulares, acessar redes sociais ou dar entrevistas. Estão ali, fisicamente reunidos, espiritualmente voltados à escuta e à votação. Num mundo em que toda decisão parece depender de likes, algoritmos e transmissões ao vivo, o conclave aposta na presença, na liturgia e na confiança mútua entre os pares.
Essa aura criada pelo conclave destoa radicalmente do ambiente midiático digital. Han, em O desaparecimento dos rituais (2021), observa que “a quietude e o silêncio não têm lugar na rede digital dotada de uma estrutura rasa de atenção” (p. 63). Nessa rede de lógica horizontal, nada sobressai e nada se aprofunda. “Não podemos ficar em silêncio, porque estamos subordinados à coação da comunicação, à coação da produção” (p. 63).
A eleição de um papa não é apenas uma escolha política ou institucional. É uma escuta do Espírito para discernir os sinais dos tempos e o que Deus quer da Igreja. Circulou nas redes sociais, às vésperas do conclave, o trecho de uma entrevista do então cardeal Joseph Ratzinger, em 1997, destacando precisamente esse ponto: o Espírito inspira, mas quem, de fato, escolhe, são os cardeais eleitores. E o Espírito não fala em meio ao ruído. Ele sussurra no silêncio e move os corações. É isso que crê a Igreja. O rito do conclave é estruturado para favorecer essa escuta. E, ao preservá-lo, a Igreja comunica — de forma performativa — que há decisões que não pertencem ao espetáculo público, mas à intimidade espiritual da comunhão eclesial.
O tempo da Igreja não é o tempo do mercado. O conclave não se adapta ao ritmo dos stories. Ele resiste — pelo menos por enquanto. E, talvez por isso, continue fascinando. Há um clima de mistério, suspense e reverência.
Num tempo em que a vida é medida por pixels, métricas e notificações, e os algoritmos dominam as escolhas, a fumaça do conclave é um gesto contracultural. Ela não explica, não detalha, não responde imediatamente. Apenas sobe, em branco ou preto, pedindo que o mundo pare e olhe, que espere e escute — atitudes que talvez estejam se perdendo no ritmo frenético em que vivemos.
É possível que esse rito inspire uma pergunta mais ampla: o que a comunicação perdeu ao abandonar o silêncio, o intervalo e o segredo? O conclave, ao permanecer fiel à sua linguagem histórica, não apenas comunica a escolha de um papa. Ele nos lembra que há coisas que não se dizem com palavras, nem se traduzem em imagens. Há experiências que só podem ser compreendidas por quem aceita o tempo da escuta, do discernimento e da espera.