O Conto da Aia: da ficção à realidade? Artigo de Mônica Lima

Foto: Reprodução/El País

21 Março 2025

Embora a obra de Atwood tenha sido publicada em 1985, sua crítica ao machismo estrutural e à opressão feminina permanece relevante em um cenário em que as escolhas políticas são, na maioria das vezes, decididas por figuras masculinas, perpetuando uma visão política explorada pelo patriarcado.

O artigo é de Mônica Lima, graduanda em Jornalismo pela Unisinos e membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

Eis o artigo.

"O Conto da Aia" (The Handmaid's Tale), escrito por Margaret Atwood em 1985, é uma obra distópica que retrata uma sociedade totalitária onde as mulheres são brutalmente subjugadas e privadas de seus direitos fundamentais, especialmente os reprodutivos.

O livro apresenta os Estados Unidos após um golpe de Estado. Em que extremistas religiosos tomam o poder e revogam a Constituição. A partir desse momento, é instaurada a República de Gilead, onde crenças religiosas e versículos bíblicos do Antigo Testamento, bem distorcidos, tornam-se leis. Logo, surge uma nova estratificação social:

Explicação da estratificação social que surge em "O Conto de Aia" (Foto: Reprodução/Garotas Geeks).

A obra conta a história de Offred, designada a ser aia do Comandante e de sua esposa, Serena Joy. A protagonista narra sua vida de forma dissociativa, oscilando entre o passado e o presente. Embora não haja uma linha do tempo contínua, entende-se que a personagem quer demonstrar o que a levou até o atual momento.

Suas recordações intercalam sua vida atual e sua vida antes do regime, quando era uma mulher livre e vivia com seu marido, Luke, e sua filha. Offred é considerada uma “mulher pecadora” e torna-se aia por ter se envolvido com Luke, um homem divorciado, o que contrariava os dogmas religiosos do regime.

Embora as mulheres estejam submetidas à repressão e submissão, Atwood também destaca a luta e a resistência femininas. A obra evidencia que, mesmo nas condições mais extremas, pequenas alianças, atitudes e estratégias de sobrevivência são formas de desafiar o sistema em busca de liberdade.

Nessa sociedade patriarcal, as mulheres são obrigadas a usar roupas que escondem seus corpos e um chapéu de abas largas, que impede o contato visual com os outros indivíduos, obrigando-as a manter o olhar baixo, um símbolo de submissão feminina.

Uma distopia não tão distópica

Apesar de ter sido publicado em 1985, o livro ganhou notoriedade em 2017, impulsionado pelo lançamento da série “The Handmaids Tale”, e principalmente, pela eleição do presidente Donald Trump nos Estados Unidos.

A conexão entre a obra e o governo de Trump fortaleceu-se com a Marcha das Mulheres, na qual manifestantes foram às ruas vestidas com as típicas vestes vermelhas das Aias para protestar contra o seu discurso político e para lutar em defesa dos direitos reprodutivos femininos, dos direitos LGBTQIAP+ e contra a desigualdade de gênero. As manifestantes ressaltaram a importância de proteger os direitos históricos conquistados e alertavam contra retrocessos legislativos que poderiam restringir sua autonomia sobre seus próprios corpos.​

Protesto pró-aborto nos EUA: roupas inspiradas na série The Handmaid's Tale (Foto: Allison Bailey/AFP)

Com a reeleição de Trump, torna-se relevante traçar paralelos entre o cenário atual e o apresentado na obra de Atwood. Durante sua posse em 2025, chamou atenção a escolha dos trajes das figuras públicas presentes, principalmente o de Melania Trump, que optou por um conjunto desenhado pelo estilista americano Adam Lippes, composto por um casaco e saia de lã de seda, acompanhados por uma blusa marfim. Embora o traje de Melania não tenha sido uma referência direta às Aias, sua escolha pode ser interpretada como uma alusão indireta à submissão feminina retratada na obra de Atwood, principalmente por conta de seu chapéu cobrindo os olhos.

Roupa de Melania Trump na posse de 2025 (Foto: Reprodução/Elas no Tapete Vermelho

Em 14 de março de 2025, Trump declarou que não aderirá a uma declaração conjunta na ONU sobre direitos das mulheres. Entre os direitos rejeitados estavam as cotas femininas, igualdade salarial e o termo “gênero” nos documentos de identificação. Durante seu primeiro mandato, ele atacou diretamente os direitos reprodutivos das mulheres, com a tentativa de restringir o acesso ao aborto e a retirada de financiamento de organizações que promovem saúde reprodutiva em nível internacional.

Entretanto, durante sua campanha presidencial de 2024, Trump autodeclarou-se “defensor do direito das mulheres” e publicou em seu perfil do Truth Social: “Minha administração será ótima para as mulheres e seus direitos reprodutivos”


Apesar das controvérsias e aparentes “mudanças” em seu discurso, Trump continua sendo uma ameaça aos direitos das mulheres, pois a sua influência espalha-se por diversos países, especialmente aqueles com lideranças de extrema direita que vêem nele um modelo de governança.

No contemporâneo, a distopia apresentada por Margaret Atwood pode não estar tão distante da realidade. Com discursos religiosos fervorosos e a crescente limitação dos direitos de minorias, incluindo os das mulheres, observamos um cenário cada vez mais próximo ao descrito na obra que vem sendo impulsionado pelo avanço de governos de extrema-direita.

Como afirmou Simone de Beauvoir "Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”, Vivemos um momento delicado e instável, no qual qualquer líder governamental pode ameaçar nossos direitos básicos, nossa autonomia e, principalmente, o direito sobre os nossos próprios corpos.

Livro "O Conto da Aia", de Margaret Atwood (Editora Rocco, 2017).

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