Livro reconhece as escravas sexuais da Segunda Guerra Mundial e valoriza a cultura feminina coreana
Ao retratar o sofrimento das mulheres de consolo, Bracht revela a luta silenciosa de personagens como Hana, que, mesmo diante da brutalidade e do silenciamento, resistem. A obra resgata a memória dessas mulheres marginalizadas, oferecendo-lhes uma oportunidade de reconhecimento, dando voz àquelas cujas histórias foram apagadas pela história oficial.
O artigo é de Mônica Lima, graduanda em Jornalismo pela Unisinos e membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
O romance Herdeiras do Mar, de Mary Lynn Bracht, tem como cenário a Segunda Guerra Mundial e a ocupação japonesa na Coreia do Sul. Nesse contexto, o foco principal do livro são as chamadas 'mulheres de consolo', um eufemismo que se refere às mulheres asiáticas forçadas a servir como escravas sexuais nos bordéis militares japoneses.
O livro oscila entre duas perspectivas: a vida de Hana na década de 1940, quando foi sequestrada por soldados japoneses, e a de sua irmã Emiko, em 2011, enquanto tenta se desvencilhar do passado traumático e descobrir o paradeiro de Hana. A distância temporal entre as narrativas permite observar os avanços nos direitos das mulheres, mas também evidencia a estagnação de certas estruturas sociais até os dias atuais, o machismo ainda presente na sociedade.
Após o término da Segunda Guerra Mundial, estima-se que cerca de 200 mil mulheres tenham sido vítimas das atrocidades e violências cometidas por soldados japoneses, sendo aproximadamente 80% delas coreanas. Diante disso, surgiram diversas discussões sobre a necessidade de reparação às vítimas do conflito. Em 2015, o Japão emitiu um pedido formal de desculpas e destinou 1 bilhão de ienes (aproximadamente R$ 27,6 milhões) como forma de compensação às mulheres asiáticas.
Livro "Herdeiras do Mar", de Mary Linn Bracht (Editora Paralela, 2020).
Entretanto, apesar dos esforços do Japão para se reconciliar com seu passado, o país foi o primeiro a criticar a criação de uma estátua em homenagem às vítimas sexuais do Exército japonês. A instalação do monumento em Busan, na Coreia do Sul, reacendeu a controvérsia em torno da Segunda Guerra Mundial. Na ocasião, o então ministro das Relações Exteriores do Japão, Yun Byung-se, classificou a estátua como 'inapropriada', argumentando que ela violava o acordo bilateral de 2015.
A postura do governo japonês gerou indignação e mobilizou mulheres coreanas, que foram às ruas para resistir à remoção da estátua em Busan.
Esse contexto revela uma dinâmica que evidencia o patriarcado na política global, em que os homens exercem um poder dominante sobre a história das mulheres. Trata-se de uma realidade em que um simples pedido de desculpas é considerado uma ação significativa, enquanto o sofrimento vivido por essas mulheres jamais será esquecido.
Décadas após o fim da guerra, elas foram abandonadas ao esquecimento, invisibilizadas e forçadas ao silêncio. Um pedido de desculpas não pode apagar tudo o que enfrentaram; não é algo que se dissipa com o tempo, tampouco é fácil de perdoar.
A estátua em homenagem às vítimas de exploração sexual pelas tropas japonesas colocada em frente ao consulado japonês em Busan, na Coreia do Sul (Reprodução/Wikimedia Commons).
O conceito de resistência feminina permeia toda a obra de maneira multifacetada. Para Hana, a resistência não é apenas física, mas também psicológica e emocional. Ela tenta, de todas as maneiras, encontrar uma razão para viver em um mundo que a privou de sua humanidade. Sua luta não é imediatamente visível, mas está presente nas pequenas ações cotidianas, nas memórias de sua vida antes da ocupação e nas tentativas de escapar do destino que lhe foi imposto. Mesmo nas situações mais desesperadoras, ela resiste à tentação de sucumbir à violência e ao trauma, agarrando-se ao que ainda resta de sua identidade antes da guerra.
Por outro lado, Emi, que vive em tempos "contemporâneos", busca reconstruir sua identidade enquanto lida com os traumas familiares. Sua luta é mais interna, uma tentativa de compreender o sofrimento da irmã e as implicações disso em sua própria vida, ao mesmo tempo que se reconcilia com sua cultura e identidade. Emi também se torna um símbolo da continuidade da resistência feminina, agora em um contexto moderno, onde a luta se dá na busca por justiça e reconhecimento histórico para aquelas que sofreram, mas cujas vozes foram ignoradas por tanto tempo.
O livro evidencia como as mulheres de consolo foram marginalizadas e tiveram suas histórias apagadas, até mesmo pelas próprias sociedades que as oprimiram. O conceito de silenciamento é fundamental em Herdeiras do Mar, já que a memória de muitas dessas mulheres foi abafada, principalmente pela falta de reconhecimento das atrocidades que sofreram.
Por muitos anos, essas mulheres permaneceram à margem da sociedade, negligenciadas pela indiferença daqueles que as feriram. Muitas não falavam abertamente sobre as violências a que foram submetidas, por vergonha, medo da rejeição e do julgamento. Apenas em 1991 a coreana Kim Hak-Sun teve a coragem de expor, em uma coletiva de imprensa, os horrores que viveu nas mãos dos soldados japoneses. Esse primeiro passo incentivou outras mulheres a compartilharem suas histórias e dores com o mundo.
Kim Hak-Sun, à direita, em 1992, em um protesto semanal que ela e outros iniciaram em Seul para exigir que o Japão se desculpasse pelas brutalidades contra as mulheres durante a Segunda Guerra Mundial (Foto: Reprodução da imprensa)
A obra também expõe e valoriza uma parte pouco conhecida da cultura coreana. Hana nasceu em uma comunidade de mulheres que seguem a tradição das mergulhadoras, surgida no ano 434. Assim como suas antepassadas, ela é uma Haenyeo, uma mulher do mar. As Haenyeos são mergulhadoras da ilha sul-coreana de Jeju que dependem da pesca para sobreviver. Elas são treinadas para mergulhar em águas profundas sem auxílio de equipamentos de mergulho, utilizando apenas suas habilidades de respiração e resistência física.
Essas mulheres simbolizam força e coragem, resistindo não apenas às duras condições do mar, mas também às pressões de uma sociedade que frequentemente subestima a capacidade feminina. Sua resistência também representa a preservação cultural, que permanece viva apesar das transformações que a sociedade coreana sofreu ao longo das décadas.
No início, o mergulho era uma atividade exclusivamente masculina, mas, com a inclusão das mulheres, elas rapidamente superaram o número de mergulhadores homens. Com o tempo, essa prática se tornou uma indústria majoritariamente feminina, e muitas Haenyeos passaram a ser o principal sustento de suas famílias.
Em uma época em que as mulheres dependiam economicamente do marido ou de outro provedor, tornarem-se a principal fonte de renda do lar representou um marco significativo na luta feminina. As Haenyeos são um exemplo de superação e autonomia em um ambiente predominantemente patriarcal.
O contexto do livro me fez refletir sobre as mulheres que atravessaram as guerras ao longo da história global. Na obra A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, da jornalista ucraniana Svetlana Aleksiévitch, ela expõe a seguinte frase: “Tudo o que sabemos da guerra conhecemos por uma ‘voz masculina’. Somos todos prisioneiros de representações e sensações ‘masculinas’ da guerra. Das palavras ‘masculinas’. Já as mulheres estão caladas.”
Embora a maioria dos combatentes em conflitos armados seja composta por homens, estima-se que as mulheres representem cerca de 50% da população afetada pelas guerras, seja como refugiadas, cuidadoras ou vítimas diretas de violência sexual e outros abusos. A ONU Mulheres [1] aponta que, em média, mulheres e meninas representam cerca de 70% dos deslocados em situações de conflito. Contudo, mesmo diante de tais estatísticas, os relatos de mulheres sobre o impacto da guerra em suas vidas são frequentemente ignorados ou desconsiderados pelas estruturas de poder e pelas narrativas dominantes.
Infelizmente, as guerras sempre foram pensadas pela ótica masculina. Pouco se questionou, e ainda se questiona, sobre como as mulheres experienciaram esses conflitos bélicos, o que fizeram e como sobreviveram. Na maioria dos casos, elas foram silenciadas, forçadas a "esquecer" o passado e o sofrimento para seguir em frente, muitas vezes deixando suas dores de lado para confortar os homens que retornavam do front. Mulheres foram, por muito tempo, marginalizadas e deixadas à margem das narrativas históricas, como as mulheres de consolo na Segunda Guerra Mundial.
Mulheres de conforto coreanas sendo interrogadas pelo Exército dos Estados Unidos após o cerco de Myitkyina (Foto: Wikimedia Commons).
[1] Site da ONU Mulheres. Disponível aqui.