O romance “O Avesso da Pele” não se limita a narrar a trajetória de Pedro e Henrique. A obra se apresenta como uma representação das experiências coletivas das pessoas negras, que frequentemente vivem à margem de uma sociedade estruturada pelo racismo.
O artigo é de Mônica Lima, graduanda em Jornalismo pela Unisinos e membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
"O Avesso da Pele" é uma obra que narra a trajetória de Pedro, um jovem que, após a morte de seu pai, assassinado durante uma abordagem policial, parte em busca de compreender o passado de sua família e de reconstruir os caminhos que seu pai trilhou. Com uma escrita sensível e, por vezes, brutal, Jeferson Tenório expõe um país marcado por profundas desigualdades raciais e por um sistema educacional em declínio.
Ao entrelaçar as histórias dos personagens principais, o autor transcende o individual para abordar questões universais, expondo as marcas deixadas pelo preconceito, pela exclusão e pela luta por dignidade. Cada página carrega as cicatrizes e os silêncios impostos por um sistema que perpetua desigualdades, mas também revela a resistência e a humanidade de seus protagonistas.
Livro "O Avesso da Pele", de Jeferson Tenório (Editora Companhia das Letras, 2020).
"O conflito descrito, por mais terrível que seja, é comum. Em um país em que, a cada 10 pessoas mortas por policiais, 8 são negras [1], é frequente ver notícias sobre violência policial. O debate sobre abuso de poder tem se tornado recorrente após os últimos acontecimentos envolvendo as milícias no estado de São Paulo, onde a violência contra indivíduos negros só cresce. Não é à toa que, no atual governo de Tarcísio Freitas, as mortes causadas por policiais militares aumentaram 120% desde 2022.
À medida que a história de Henrique é revelada, torna-se evidente o peso da consciência racial que acompanha as pessoas negras em uma sociedade estruturalmente racista. Quando elas se descobrem negras, a cor da pele se torna uma questão identitária e social, passando a carregar um peso distinto em suas vidas, exigindo que ajam de forma diferente, permanecendo em constante estado de alerta em várias situações, como se sua existência e suas ações precisassem ser continuamente justificadas.
A narrativa se passa no Sul do Brasil, mais especificamente na região metropolitana de Porto Alegre, onde o cotidiano é marcado por atitudes veladas de discriminação, desconfiança e menosprezo. Embora o racismo se manifeste em diversas partes do país, a escolha do Rio Grande do Sul como cenário da obra confere um peso à narrativa, dado que é o estado que apresenta o maior índice de casos de racismo no Brasil.
O livro, em sua totalidade, é uma representação vívida dos desafios e da luta do movimento negro, não apenas no Brasil, mas globalmente. A capa da obra apresenta a pintura intitulada “Trampolim”, criada pelo artista Antônio Obá. Através dessa arte, é possível demonstrar a luta, o preconceito e a violência que a população negra historicamente enfrentou e continua a enfrentar. Ela traz a imagem de um homem negro à beira de uma piscina, fazendo referência a um episódio emblemático ocorrido na Flórida, em 1964. Na ocasião, manifestantes negros entraram em uma piscina do hotel Monson Motor Lodge como forma de protesto contra a segregação racial, que proibia negros de utilizarem as mesmas instalações que os brancos. O que deveria ser um ato pacífico de reivindicação pelos direitos civis transformou-se em uma cena de horror, quando o gerente do hotel, James Brock, jogou ácido clorídrico na piscina para forçar a saída dos manifestantes. Embora o ácido não tenha causado danos fatais, o episódio simboliza a violência e o preconceito que os ativistas enfrentaram em sua luta por igualdade e justiça.
A capa do livro também faz uma analogia crítica com o reflexo da janela nas costas do jovem negro, no qual a sombra simboliza uma cela, como se a pele negra simbolizasse um único destino: a prisão.
James Brock jogando ácido em duas mulheres negras na piscina do hotel Monson Motor Lodge (Foto: Wikimedia commons)
Na história, Henrique é professor em escolas públicas nas periferias de Porto Alegre e exerce sua função em um contexto que suscita importantes reflexões sobre o sistema educacional brasileiro, especialmente no que se refere ao tratamento da raça e da negritude dentro das instituições de ensino. Esse cenário despertou em mim uma análise acerca da implementação da Lei 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas de ensino fundamental e médio. Embora a lei exista, sua aplicação ainda enfrenta desafios significativos. Muitos docentes, especialmente os de etnia branca, não se aprofundam adequadamente na temática da história negra, limitando-se a abordá-la apenas em datas específicas, como o Dia da Consciência Negra, gerando uma falsa sensação de inclusão e reforçando o racismo velado presente em várias camadas da sociedade.
Este fenômeno reflete um processo educacional que, muitas vezes, não cumpre seu papel de promover uma educação antirracista efetiva. O ensino da história afro-brasileira, quando realizado de forma superficial, acaba perpetuando a marginalização da população negra, ignorando suas contribuições históricas e culturais. Em vez de ser um campo de aprendizado e reflexão crítica, torna-se um espaço de repetição de estereótipos e omissões.
Jeferson Tenório, exemplifica um caso de censura dentro do sistema educacional, relacionado à abordagem de questões raciais. Durante uma visita a uma escola particular em Salvador, em 2024, Tenório relatou ter recebido ameaças de morte nas redes sociais [2]. A censura explícita, alimentada por discursos de ódio e intolerância, expõe a resistência da sociedade em enfrentar discussões sobre racismo e violência institucional.
Em suas palavras, o autor compartilhou a gravidade da situação: "Fui fazer uma visita a uma escola particular que havia adotado o livro e, antes de chegar, comecei a receber ameaças de morte nas redes sociais. Diziam que, se eu viesse para cá [Salvador] falar do livro, teria que fugir do Brasil, porque seria metralhado" [3]. Essas ameaças não apenas demonstram a violência contra a liberdade de expressão, mas também revelam o receio de tratar de maneira aprofundada as questões raciais e sociais no país.
Jeferson Tenório (Foto: Divulgação | Feira do Livro de Porto Alegre, 2021).
A reação violenta à obra de Tenório é um reflexo da tentativa de silenciar vozes que questionam as estruturas de poder e as desigualdades, sendo um exemplo claro de censura que visa manter a população na ignorância, como um meio de controle social. Nesse sentido, o pensamento de Edmund Burke ecoa como um alerta atemporal: "Um povo que não conhece sua história está fadado a repeti-la". Assim, a censura não apenas nega o direito à educação crítica, mas também perpetua um ciclo de ignorância e subordinação, fundamental para a manutenção de uma sociedade desigual.
[1] Disponível aqui.
[2] Disponível aqui.
[3] Disponível aqui.