24 Janeiro 2017
A Marcha das Mulheres, ocorrida em várias cidades do mundo neste fim de semana, é um exemplo da quarta onda do feminismo, altamente conectado e com diferentes corrente; um novo livro explica o movimento
A reportagem é de Adriana Salles Gomes, publicada por O Estado de S. Paulo, 23-01-2017.
Que tal você fazer um rápido teste antes de ler esta coluna?
PERGUNTA 1: Com relação ao trabalho, qual frase traduz melhor o que você pensa?
( a ) A maioria das mulheres se realiza mais em casa, como mãe e administradora do lar, e esse trabalho também tem valor e é preciso educação para fazê-lo apropriadamente.
(b) Mulheres excepcionais podem encontrar felicidade também no mercado de trabalho ou na política, por isso essa possibilidade deve estar aberta a todas.
(c) Mulheres só serão completamente livres quando forem ao mercado de trabalho e ganharem seu próprio dinheiro.
(d) Mulheres devem trabalhar, pois elas trazem à esfera pública qualidades típicas da mulher, como senso de justiça, moralidade e cuidado maternal pelos outros.
(e) É preciso destruir a ideia de que mulheres têm, necessariamente, de ser mães e se casar – só assim sua liberdade de escolha será plena. Trabalhar gera independência.
PERGUNTA 2: O que é ser mulher?
(a) Ser mulher é mais do que ser fêmea. A sociedade nos forma e nos cria desde pequenas para nos comportarmos de determinadas maneiras e algumas dessas ideias devem ser combatidas, pois somos tão inteligentes e capazes quanto os homens. No entanto, nossa biologia faz com que sejamos insubstituíveis em alguns papéis, como o de mães.
(b) Ninguém nasce mulher, torna-se. A sociedade nos forma e nos cria desde pequenas para nos comportarmos de determinadas maneiras e para facilitar nossa dominação pelos homens. Nada deve nos definir, a liberdade deve ser nossa própria substância.
(c) Ser mulher é ter um conjunto de características específicas que fazem de você, inclusive, superior ao homem em diversas áreas. É ser mais pacífica, mais diplomática, mais apta ao amor e ao cuidado do outro.
(d) Talvez o momento em que melhor se defenda os direitos das mulheres seja quando seja desnecessário usar a palavra “mulher”, já que definir é limitar.
(e) Ninguém nasce mulher, torna-se. Por isso, pessoas nascidas com pênis também podem se entender como mulher.
Eu tenho minhas respostas, você tem as suas e muito provavelmente uma terceira pessoas terá as delas, com diferenças, não é? Pincei essas duas perguntas em um teste do livro Você já é feminista, organizado pela Nana Queiroz, diretora-executiva da revista AzMina, lançado no final do ano passado pela editora Pólen. A Nana propõe o teste para a pessoa saber com qual corrente do feminismo se identifica mais. Embora eu nem trazido aqui as perguntas mais polêmicas, relativas à descriminalização do aborto ou à prostituição, fica claro: não há certo ou errado; o que há são várias maneiras de alguém ser feminista.
É por isso que, muito provavelmente, você rejeita algumas manifestações de feminismo que aparecem nas redes sociais ou na mídia, mas se identificou com a Marcha das Mulheres que aconteceu no sábado, dia 21, reunindo 1 milhão de pessoas em Washington, Nova York, Londres, Sydney e outras cidades mundo afora. Nas passeatas, em vez de uma ou outra corrente mais barulhenta, estavam representadas todas as correntes do novo feminismo.
O livro Você já é feminista explica que estamos vivendo a quarta onda do feminismo, em que diversas correntes coexistem. Ou seja, há discordâncias no movimento, mas elas não impedem (ou não deveriam impedir, segundo as autoras) ninguém de se assumir feminista. Até porque a carreira profissional das mulheres e o equilíbrio com sua vida pessoal tendem a ser fortemente beneficiados pelas lutas do feminismo.
Leia abaixo alguns trechos esclarecedores de Você já é feminista.
Para começo de conversa, há o feminismo liberal, que não pretende abalar nenhuma estrutura. “O foco do feminismo liberal é o indivíduo mulher. Assim, nenhuma escolha é rejeitada, contanto que seja tomada com liberdade. Se uma mulher quiser ser dona de casa, mãe e uma esposa tradicional, está tudo bem, desde que ela não seja forçada a isso.”
“No feminismo liberal o homem tem espaço e seu lugar é ao lado da mulher, sem hierarquias. Disse, já na inauguração da corrente, Mary Wollstonecraft: ‘Não desejo que as mulheres tenham poder sobre os homens, mas sobre elas mesmas’. Questões pessoais não estão longe do debate. Como popularizou Betty Friedan, um dos ícones desta corrente: ‘O pessoal é político. Foi assim que ela incluiu na agenda questões como aborto, liberação sexual, padrões de beleza, violência doméstica, entre outros.”
“Sob o ponto de vista moral, as liberais acreditam que não existem regras gerais de comportamento. Desta maneira, acabam sendo muito mais flexíveis com questões como pornografia e prostituição. Apostar na criação de um pornô para mulheres, por exemplo, é uma estratégia bastante liberal.”
“As feministas liberais são criticadas pelas outras correntes, principalmente, por não enxergarem que todos as mulheres não começam, de fato, do mesmo ponto de partida. Portanto, não bastaria oferecer a todas direitos iguais, seria preciso criar regras que desfizessem esses desequilíbrios, dando mais chances para que mulheres em posição de desvantagem alcancem o mesmo status das demais.”
Outra corrente é o feminismo maternalista, que “tem como estratégia principal não desconstruir os estereótipos relacionados às mulheres, mas exaltá-los. Extrapolando o conceito de que mulheres têm uma natureza favorável à maternidade e aos cuidados do outro, feministas dessa corrente afirmam que essas características são também muito úteis no mercado de trabalho e na política, onde mulheres teriam mais facilidade para se comunicar, resolver problemas e cuidar do coletivo com tendência à paz e à diplomacia, e não à guerra, como os homens…. a participação da mulher na esfera pública, segundo essa linha de raciocínio, não deve se dar em detrimento da maternidade e do papel da boa esposa, mas ser compatibilizado com essas tarefas”.
No Brasil, o feminismo maternalista teve como porta-voz, por exemplo, Francisca Diniz, que chegou a afirmar: ‘como mães, as mulheres representam a santidade infinita do amor (…) como esposas, fidelidade imortal”. Para ela, essas qualidades ‘provam sua superioridade e não sua inferioridade, e mostram que homens que lutam pelo princípio da igualdade deveriam lutar por essa equidade também’.
“Muitas dessas feministas se opõem pessoalmente ao aborto mas, por reconhecerem que o Estado é laico, acreditam que seu ponto de vista não deve ser imposto a mulheres que não partilham de sua fé, como exemplifica o grupo ‘Católicas pelo Direito de Decidir’.”
A corrente “é, em geral, guiada pela luta contra a prostituição e todos os excessos do corpo. Nos anos 1870, nos EUA, mulheres pertencentes a esses grupos costumavam entrar em lojas e destruir caixas de bebidas alcoólicas para impedir que maridos bêbados fossem violentos. Ou seja, em vez de rejeitar a ideia de que lugar de mulher é dentro de casa, elas tentavam proteger as mulheres ali.”
“Críticas a essa corrente afirmam que esse jeito de pensar se mostrou muito perigoso para as mulheres. Primeiro porque exclui milhões de mulheres que não se identificam com os ideais normalmente associados à feminilidade, e força uma adequação a padrões demais, podando a liberdade. Segundo, porque essa valorização excessiva do papel da mulher no universo privado contribui, no final das contas, para afastar as mulheres da política, do trabalho e da esfera pública, ou, em outros casos, para sobrecarregá-las com mais tarefas do que dão conta.”
Há o feminismo socialista também. “As feministas socialistas acreditam que a mulher não deve se emancipar somente no mercado de trabalho, mas também dentro da família e que seu trabalho doméstico deve ser considerado um ganho indireto (por gerar economias). O trabalho doméstico deve, inclusive, ser socializado, com a criação de creches e restaurantes públicos, por exemplo. Sua principal estratégia para liberar as mulheres é incorporá-las ao mercado de trabalho e dar a elas condições e salários justos para que não dependam dos homens. ‘A mulher permanecerá subjugada até que seja economicamente independente’, afirmou Clara Zetkin já em 1889.
As feministas socialistas “defendem que o Estado assuma responsabilidade por sua saúde sexual, pela contracepção e ofereça aborto livre pago pelo sistema público de saúde. Rejeitam o sistema de dois pesos e duas medidas para o comportamento sexual de homens e mulheres. Autoras e autores normalmente associadas a essa linha de pensamento são Flora Tristan, Friedrich Engels, Emma Goldman e Clara Zetkin.”
“A principal crítica feita a essa corrente é a de valorizar excessivamente a condição econômica da mulher e esquecer-se de que dominação e exploração também têm origens culturais e raciais.”
Ainda são citados no livro o feminismo radical (que quer dizer de raiz e não extravagante, identificado mais com a segunda onda do feminismo, de 1960, que foca no coletivo), o intersecional (acadêmico) e outros. Porém eu destaquei as três correntes que parecem ter mais a ver com o público desta coluna.
Como escreve Nana Queiroz, teóricos chamam essa nova leva de feministas conectadas de “quarta onda”, uma onda marcada pela popularização e democratização do feminismo na rede ou através dela. As bandeiras são diversas, como vimos, e temas das outras ondas são revisitados – aliás, sua principal característica não é a temática abordada, mas a massificação do feminismo.
No Brasil, costuma-se considerar como ponto de partida da quarta onda a primeira Marcha das Vadias, que aconteceu em junho de 2011 em São Paulo. Havia começado em abril no Canadá (esse feminismo é, sem dúvida, um movimento essencialmente global). E é tudo muito recente: foi só em 2014 que o movimento ganhou repercussão para valer, em grandes campanhas virtuais antiassédio e contra a cultura do estupro, como a Chega de Fiu Fiu e a #NãoMereçoSerEstuprada.
Fortaleceu-se em 2015 e início de 2016 com discussões em torno do #PrimeiroAssédio e a popularização de youtubers feministas como Jout Jout e o Canal das Bee. Houve também a organização do que pode ser o primeiro partido feminista do Brasil, a PartidA.
No mundo offline, coletivos de mulheres jovens se organizaram com mais força nas periferias – e usam a internet para ganhar voz no funk, no hip hop ou em sites e blogs.
E o jornalismo independente começa a adotar o recorte de gênero para ver o mundo, com o nascimento (ou fortalecimento) de páginas e portais como Geledés, ThinkOlga, Revista AzMina, Revista Capitolina, entre outras publicações.
Vale destacar ainda uma palavra na quarta onda do feminismo e ligada a todas as suas correntes: sororidade. De origem francesa, diz respeito às mulheres se relacionando não como inimigas, mas como uma irmandade. Também há a versão norte-americana abrasileirada: sisteragem.
Esse conceito é essencial para a quarta onda do feminismo que estamos vivendo. Como se lê em Você Já é Feminista, “a rivalidade feminina contribui para manter os homens no poder, na medida em que dificulta a articulação das mulheres. É uma versão cultural de um conceito de guerra, aplicado primeiramente por César no Império Romano: dividir para conquistar, ou seja, fomentar a ruptura das estruturas de poder existentes e impedir que grupos menores se juntem”.
É sororidade, por exemplo, um tipo de programa de liderança observado em algumas empresas em que mulheres mais experientes privilegiam dar mentoria às mulheres mais jovens. Importante: no ambiente de trabalho, isso não significa que uma mulher nunca possa criticar outra, e sim que a crítica será feita “de maneira empática, compreendendo que talvez alguns equívocos de certas mulheres sejam fruto de uma cultura que nos oprime a todas”.
Como vimos na marcha antimachismo e anti-Trump, nesse fim de semana, e como explica o livro organizada pela Nana Queiroz, “um monte de gente no começo do século tentou decretar a morte do feminismo e afirmar que vivemos uma era pós-feminista, mas a realidade mostrou-se bem diferente. Com opressões às mulheres ainda muito presentes no século 21, o que temos visto, na realidade, é uma verdadeira Primavera das Mulheres alimentada pelas redes sociais e pela popularização da internet”.
Na verdade, o livro faz um convite explícito: “saia do armário e se assuma feminista”. Esse é o título de um seus textos, assinado por Lola Aromovich, professora de língua e literatura inglesa da Universidade Federal de Santa Catarina. Basicamente, se você se posiciona contra o machismo (que no trabalho se traduz como remunerações e posições hierárquicas inferiores às do homens mesmo com capacidades e resultados similares), você é feminista. Ao que tudo indica, em 2017 o movimento vai se fortalecer ainda mais.
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A marcha em Washington e a quarta onda do feminismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU