24 Março 2025
"Sobre Deus e a esperança dialogaram, no século XX, dois grandes pensadores: E. Bloch, filósofo marxista ateu, e J. Moltmann, teólogo cristão protestante. O início deste novo ano, tão conturbado e ameaçador, traz-me à memória aqueles debates sobre a esperança", escreve Manuel Fraijó, professor de Filosofia da Religião e decano da Faculdade de Filosofia da UNED, publicado por Religión Digital, 17-03-2025.
Conta um poeta alemão que, em 1945, ao fim da Segunda Guerra Mundial, foi certo dia contemplar as ruínas da bela catedral de sua cidade. Profundamente comovido, sentou-se sobre alguns destroços e começou a escrever um poema, uma espécie de lamento por sua querida catedral. Escrevia seus versos enquanto outras mãos removiam os escombros. Escreveu o poeta: "Fiquei surpreso que ninguém me repreendesse por não estar removendo os escombros".
Aquele poeta sabia, como todos sabemos, que sempre serão urgentes ambas as coisas: mãos que removam escombros e mãos que criem novas constelações de sentido. Às vezes, as mesmas mãos realizam as duas tarefas. Na tragédia de destruição e morte que assolou a Comunidade Valenciana, quem verdadeiramente cria sentido é a enxurrada de voluntários que acorrem para limpar suas casas e ruas. Contemplando sua entrega generosa, vem-me à memória um texto belíssimo de José Gómez Caffarena, grande mestre da esperança: “A humanidade, em seu esforço moral secular, e apesar de seus fracassos, merece que sua esperança não seja em vão, merece que Deus exista”.
Sobre Deus e a esperança dialogaram, no século XX, dois grandes pensadores: E. Bloch, filósofo marxista ateu, e J. Moltmann, teólogo cristão protestante. O início deste novo ano, tão conturbado e ameaçador, traz-me à lembrança aqueles debates sobre a esperança. Bloch costumava iniciá-los recordando os três “remédios” que Kant oferecia para suportar os momentos difíceis da vida: o riso, o sono e a esperança. Esta última, a esperança, foi frequentemente objeto de diálogo e debate entre Bloch e Moltmann. Seus livros sobre a esperança talvez sejam o que de melhor o século XX produziu sobre o tema.
Porém, antes de recorrer à “profecia estrangeira”, é justo recordar a figura e a obra de um espanhol que também pensou a esperança. Refiro-me a Pedro Laín Entralgo. Seu livro, La espera y la esperanza: historia y teoría del esperar humano (Revista de Occidente, 1957), oferece um impressionante percurso pelos sucessos e fracassos das esperanças humanas. Laín estava convencido de que a esperança é muito própria da nossa terra e do nosso povo. Evocava “a visão esperançosa de outra vida”, de Unamuno. E nunca se esquecia de citar o lema de Quevedo: “Eu só na esperança confio”. A esperança era para Laín uma espécie de imperativo categórico, via nela “o nervo da ética”. Aos de sua profissão, os médicos, chamou de “dispensadores de esperança”. E, nos tempos desesperançados que lhe coube viver, Laín evocou em seus livros outras datas de nossa história mais propensas à esperança.
Mas ele não se limitou "ao nosso”. Seu livro, como mostra o subtítulo, é “uma história e teoria do esperar humano”. E é que nem os povos nem os indivíduos sobrevivem sem esperança. Hegel, bom conhecedor de que a história humana é um entrelaçado de esperança e desesperança, evocou o colapso dos indivíduos, dos impérios e dos povos. Chegou a qualificar a história universal como “um matadouro”, mas enigmaticamente afirmou que “o necessário subsistiu”. E nada subsiste sem a resistência que a esperança oferece.
E precisamente para evocar a esperança, Bloch e Moltmann consagraram seu saber e seu talento literários. O primeiro escreveu sua obra principal, O princípio esperança (entre 1938 e 1947), nos EUA, para onde havia fugido de Hitler. Lá, no país que ele considerava o “menos utópico” do mundo, foi gestada uma primeira redação de sua grande obra. Ele a escreveu enquanto ganhava a vida lavando pratos em hotéis. E lhe saiu um livro torrencial, sempre roçando o descomunal. Bloch atua como um detetive que busca o utópico, a esperança, na arte, na literatura, na música, nas tradições orais dos povos, na religião.
E precisamente esse livro caiu nas mãos do jovem Moltmann durante umas férias na Suíça. Com uma graça invejável, ele conta que, fascinado por esse argumento em favor da esperança, mal contemplou a beleza das montanhas suíças. Em vez disso, vislumbrou os primeiros traços de sua Teologia da Esperança (1964), livro que causaria um enorme impacto. Laín o chamou de “documento para sempre”. Talvez seja o maior elogio que já lhe foi dedicado.
Essa obra foi fruto de anos em que tudo parecia ir bem. Era a época de João XXIII, de Kennedy, do Concílio Vaticano II. Assistíamos a um notável ressurgimento religioso, com tímidos atrevimentos críticos. As notícias do Concílio eram acompanhadas com enorme interesse e participação. José L. López Aranguren chegou a escrever que o Vaticano II era o acontecimento mais importante do século XX. Teologia da esperança foi o livro genial de um cristão esperançoso. Há apenas alguns meses, aos 98 anos, ele nos deixou.
Mas a Moltmann faltava o mais árduo: conectar a esperança com sua grande prova, o sofrimento. Ele o fez em seu outro grande livro, O Deus crucificado (1972). Nele, ele se debruça sobre a experiência de Deus no sofrimento. Esperança e sofrimento são, para Moltmann, assim como para toda a tradição cristã, compatíveis. Ele teve sua primeira grande experiência dolorosa ao ser prisioneiro de guerra na Bélgica entre 1945 e 1948. Havia sido recrutado como soldado por Hitler aos 16 anos, assim como muitos outros jovens, entre eles J. Ratzinger.
Em sua mochila de jovem soldado, Moltmann carregava o livro que sustentou sua esperança, o Novo Testamento. A ele se agarrou. Com emoção contida, narrava como, após a guerra, as faculdades alemãs de teologia protestante se encheram de estudantes que, testemunhas de tanta barbárie – alguns deles mutilados de guerra –, exigiam que seus professores explicassem como se conciliava o sofrimento vivido nos campos de batalha com a esperança cristã. Moltmann perguntava pelos 80 mil mortos de sua cidade, Hamburgo, vítimas de ferozes bombardeios dos quais ele, sem saber como, conseguiu sobreviver. Ainda continuamos nos fazendo as mesmas perguntas. Também as fez o Papa Bento XVI ao visitar o campo de extermínio de Auschwitz.
Voltemos ao nosso relato. Um acontecimento político de consequências fatais fez com que o leitor de Bloch entre as montanhas suíças se tornasse seu amigo na Universidade de Tübingen. Ocorreu em 1961. Bloch estava de férias na República Federal Alemã quando o governo comunista da "outra Alemanha", da República Democrática Alemã, ergueu o muro de Berlim. Bloch não pensou duas vezes: renunciou à sua cátedra em Leipzig, onde havia sido acusado de "volúpias teológicas" pelas autoridades comunistas e ficou para sempre em Tübingen. Sua casa ficava muito perto do seminário protestante onde, em outros tempos, viveram Hegel, Hölderlin e Fichte. Um lugar muito apropriado para Bloch, que havia escrito um livro sobre Hegel. Foi lá, na Universidade de Tübingen, onde esses dois mestres do pensamento confrontaram seus sentimentos sobre a esperança.
Foram diálogos que seus testemunhos nunca esquecerão. Moltmann ficava fascinado com a ontologia do “ainda não” de Bloch, ou seja, seu apego filosófico ao futuro, à esperança. Era uma preciosa ajuda para sua teologia da esperança. Isso sim: impunha-se transformar o "Deus esperança" de Bloch no "Deus da esperança". Esta é a tarefa que Moltmann realizará ao longo de toda a sua obra. Rejeita a absolutização da esperança, realizada por seu amigo Bloch, e a remonta e subordina a Deus, o único que a torna possível. Bloch havia entoado um grande elogio filosófico, antropológico, à esperança, mas não sabia se há algo a esperar após a morte. Ele se debateu sempre entre a grande Transcendência (a Esperança com maiúscula, Deus) e as pequenas transcendências nossas de cada dia (a esperança com minúscula).
Tem-se a impressão de que, no fim, venceram as minúsculas, embora sem abandonar nunca o anseio pela outra Transcendência, a única que poderia evitar a aniquilação última que Bloch rejeitava. Era tão intenso seu anseio pela Transcendência que tentou dar-lhe forma, cunhando uma distinção que costumava repetir, não sei se convencido totalmente. Ele distinguia entre o núcleo e a casca ou envoltório. O núcleo era para Bloch o verdadeiro homem, ainda inexistente, não realizado, algo do futuro. A morte só afeta a casca, o envoltório. O verdadeiro homem, por ser ainda algo do futuro, não pode morrer. Uma distinção que não convencia seu amigo Moltmann, que alegava que não se pode argumentar assim diante das vítimas de Auschwitz. Ao que Bloch respondia: é que, nesse caso, não se pode argumentar de nenhuma maneira...
A esperança de Bloch sempre se tingia de vigor antropológico; já próximo de sua morte, recebeu a visita de Moltmann e, sorrindo, lhe disse: “A morte, ainda me resta essa experiência”. Isso sim: sua esperança foi sempre “de luto”, revestida de “crepom negro”. Não se pode esquecer que era a esperança de uma testemunha de duas guerras mundiais e da vítima de não poucos exílios e experiências dolorosas. Sua evocação das mortes vividas é aterradora. Costumava recorrer ao ditado alemão “o último traje não tem bolsos” para expressar a total indefesa frente à morte. É impressionante o relato da morte de sua primeira esposa, ocorrida quando ele tinha apenas 22 anos; lembra a reação de K. Marx diante do falecimento de sua esposa, Jenny. Bloch nasceu apenas dois anos após a morte de Marx.
A esperança blochiana, não sei se escrita com maiúscula ou minúscula, o impulsionava a exigir “por dignidade pessoal” não acabar como o gado. Grande melômano, ele se negava a que a última música que seus ouvidos ouvissem fossem as pá de terra que alguém lançaria sobre seu caixão. Talvez se possa afirmar que, como tantos outros, ele oscilou entre “o sim e o não”. “Sim” ao anseio de Transcendência, de Esperança com maiúscula; e um “não” resignado, entrecortado, a toda promessa de sobrevivência além da morte.
O título de sua conferência inaugural na Universidade de Tübingen fascinou um Salão de Atos lotado: pode frustrar-se a esperança? A resposta daquele peregrino da esperança foi afirmativa. Bloch já havia assistido a muitas frustrações de suas esperanças intra-históricas. Diante da outra esperança, a esperança final, ele se declarava incompetente. Como bom estudioso da história das religiões, sabia que estas não informam sobre o que “sabem”, mas sobre o que “creem”. E ele não era crente. Daí que não pudesse acompanhar seu interlocutor, teólogo cristão, na transformação da esperança em confiança. Também não podia aceitar que o Futurum terminasse chamando-se Adventus. Acontecia assim com Moltmann diante do sorriso amistoso, mas distante, de Bloch.
No entanto, havia uma coincidência última entre os dois amigos. Moltmann defendia que a ressurreição de Jesus era histórica não porque tivesse ocorrido na história, mas porque havia feito história. Ou seja, porque a partir da crença nela haviam se aberto amplos espaços para a esperança. Nosso Unamuno escreveu que a partir dessa fé “nossa laboriosa linhagem humana seria algo mais que uma procissão de fantasmas que vão da nada para o nada”. Uma frase que seria aceita pelo bom conhecedor de Unamuno que foi Moltmann e que também não desagradaria a Bloch.