05 Novembro 2024
"O fim da cristandade inaugura um tempo em que desaparecem muitos pontos de referência, uma mudança de cenário que dá início a um tempo que parece desconhecido", escreve Antonio Torresin, em artigo publicado por Settimana News, 03-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Publicamos o discurso de Dom Antonio Torresin na Escola de Formação Teológica da diocese de Reggio Emilia. Dom Antonio Torresin, nascido em 1961, foi ordenado padre em 1985 na diocese de Milão. Trabalhou por quinze anos na Formação Permanente do Clero da diocese e agora é pároco na paróquia de San Nicolao della Flue, em Milão.
Qual é o vínculo entre esperança e profecia? Em que sentido a anunciação do Evangelho se torna uma palavra profética e uma palavra de esperança? Entre esperança e profecia, podemos reconhecer um traço comum inicial: são palavras que parecem ir contra o pensamento corrente, uma espécie de in-evidência, uma palavra que desmente o que parece à primeira vista, um contracanto à voz geral. Essa voz do profeta que anuncia a esperança surge precisamente nos momentos críticos da história do povo de Israel. Poderíamos - simplificando um pouco - identificar essa lei: quando o povo se acomoda em suas falsas seguranças, o profeta levanta sua voz crítica (contra o poder que se esquece dos pobres, contra um culto sem justiça); quando o povo passa por um momento de desespero em que tudo parece perdido, o profeta abre visões de esperança. Nas rupturas da história
A profecia, portanto, intervém nas rupturas da história, naquelas que Michel De Certau chama de “ruptura instauradora”. Uma crise, uma perda, abre uma nova temporada, autoriza um novo começo. É exatamente dessa forma que o evento da salvação entra na história, desde o início até seu cumprimento em Cristo.
“’Era necessário que ele morresse’. O túmulo vazio é a possibilidade de verificação que se desdobra na era da palavra e do Espírito. Assim, o evento inicial se torna um ‘inter-dito’. Não que seja intocável ou tabu. Mas o fundador desaparece, impossível de alcançar e de 'reter', na medida em que toma corpo e sentido em uma pluralidade de experiências e operações 'cristãs'” (M. De Certau, Debolezza del credere, 193).
Se a ruptura aparece como um fim (o fim do reino de Israel na deportação, o fim da presença imediata do Mestre junto a seus discípulos para nós hoje, o fim da cristandade), ela se revela como um começo, a única maneira de permanecer fiel à promessa inscrita na história compartilhada: “Uma nova audácia continua sendo o momento decisivo da fidelidade” (De Certau, 66).
Essa palavra profética, como dissemos, é uma contraevidência: no final, um começo. O mesmo acontece com a anunciação da esperança: uma visão que vê além do imediato, que o contradiz. “Porque em esperança fomos salvos. Ora a esperança que se vê não é esperança; porque o que alguém vê como o esperará? Mas, se esperamos o que não vemos, com paciência o esperamos” (Rm 8,24-25).
Poderíamos retomar a maneira pela qual a palavra profética acompanha o caminho do povo de Deus em três passagens, que estão sempre em contraposição ao pensamento comum. De fato, a figura do profeta ergue-se como contraponto e um contrapoder ao poder político do rei e ao poder religioso da classe sacerdotal.
Antes de falar, porém, o profeta é solicitado a ficar em silêncio. Embora lhe sejam pedidas palavras de consolo, para afastar o medo dos eventos iminentes, o profeta se recusa a condescender a fáceis profecias consoladoras.
Assim, Jeremias participa, em primeiro lugar, da impotência do povo, cujo exílio ele prediz, que se vê despojado - sem a terra, o rei, o templo, o culto.... - e declara que compartilha um tempo de incerteza: “Se eu saio ao campo, eis ali os mortos à espada, e, se entro na cidade, estão ali os debilitados pela fome; e até os profetas e os sacerdotes percorrem uma terra, que não conhecem.” (Jr 14,18).
Assim, Ezequiel, o profeta que participa do drama do exílio, que vê a arca de Deus partir com o povo deportado. Antes que possa proferir palavras de esperança, ele é reduzido ao silêncio, torna-se um profeta mudo. “Então entrou em mim o Espírito, e me pôs em pé, e falou comigo, e me disse: Entra, encerra-te dentro da tua casa. E quanto a ti, ó filho do homem, eis que porão cordas sobre ti, e te ligarão com elas; não sairás, pois, ao meio deles. E eu farei que a tua língua se pegue ao teu paladar, e ficarás mudo, e não lhes servirás de repreendedor; porque eles são casa rebelde. Mas, quando eu falar contigo, abrirei a tua boca, e lhes dirás: Assim diz o Senhor Deus: quem ouvir ouça, e quem deixar de ouvir, deixe; porque eles são casa rebelde” (Ez 3,24-27).
O sentido desse silêncio é diferente daquele de Jeremias, mas ainda em uma época em que as palavras parecem impossíveis de encontrar e, de qualquer forma, não são ouvidas: “O profeta terá de se calar, não para não acrescentar dor à dor, mas porque há um tempo em que o silêncio grita ainda mais alto do que as palavras” (G. Angelini, Il profeta ammutolito, 49).
Acredito que isso também se aplica ao nosso tempo, que me parece corresponder a um tempo de incerteza. A crise que estamos vivendo, especialmente nos países ocidentais e de origem cristã, parece um tempo em que muitas certezas estão desaparecendo. Um pequeno vírus foi capaz de destruir as certezas científico-tecnológicas de garantir o bem-estar de todos; as guerras que beiram as nossas fronteiras destroem um tempo que parecia de paz (apenas porque as guerras eram distantes). Mas a igreja não está vivendo tempos melhores: o fim da cristandade inaugura um tempo em que desaparecem muitos pontos de referência, uma mudança de cenário que dá início a um tempo que parece desconhecido. Nem mesmo as autoridades religiosas parecem ter palavras que ajudem a decifrar este tempo, a atravessar a crise. “Até o profeta e o sacerdote andam de um lado para o outro e não sabem o que fazer”.
Poderia o silêncio ser uma palavra que grita ainda mais alto? Uma maneira de participar do tempo da incerteza e, ao mesmo tempo, a condição para encontrar palavras que não sejam a repetição de obviedades desde sempre repetidas?
Antes da palavra de esperança, os textos proféticos são, principalmente, textos de condenação, uma crítica severa ao poder do rei e da classe sacerdotal. O fracasso da monarquia é atribuído ao pecado da idolatria, ao fato de ter abandonado o Deus verdadeiro para se voltar para os deuses estrangeiros. A idolatria é o grande pecado de Israel e também deve ser entendida como a redução da prática religiosa a um ídolo. Sempre, até mesmo a religião pode se perverter em uma prática idólatra, buscando se apropriar da condescendência de Deus barganhando com ritos e ofertas sem praticar a justiça. E, de fato, essa crítica profética ao poder também é dirigida ao culto: um culto sem justiça não agrada ao Senhor:
“Ouvi a palavra do Senhor, vós poderosos de Sodoma; dai ouvidos à lei do nosso Deus, ó povo de Gomorra. De que me serve a mim a multidão de vossos sacrifícios, diz o Senhor? Já estou farto dos holocaustos de carneiros, e da gordura de animais cevados; nem me agrado de sangue de bezerros, nem de cordeiros, nem de bodes. Quando vindes para comparecer perante mim, quem requereu isso de vossas mãos, que viésseis a pisar os meus átrios? Não continueis a trazer ofertas vãs; o incenso é para mim abominação, e as luas novas, e os sábados, e a convocação das assembleias; não posso suportar iniquidade, nem mesmo a reunião solene. As vossas luas novas, e as vossas solenidades, a minha alma as odeia; já me são pesadas; já estou cansado de as sofrer. Por isso, quando estendeis as vossas mãos, escondo de vós os meus olhos; e ainda que multipliqueis as vossas orações, não as ouvirei, porque as vossas mãos estão cheias de sangue. Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus olhos; cessai de fazer mal. Aprendei a fazer bem; procurai o que é justo; ajudai o oprimido; fazei justiça ao órfão; tratai da causa das viúvas.” (Is 1,10-17) (cf. também Am 5,21-24).
Um esclarecimento pode ser útil. A justiça como critério de verdade no culto não é, em primeiro lugar, a defesa dos próprios direitos. Se a justiça é - de acordo com a conhecida frase de Ulpiano - “dar a cada um o que é seu”, deve ficar claro que o “seu” de cada um, se lhe deve ser dado, significa que não está imediatamente com ele, mas com alguém cujo dever é rendê-lo; o “seu” de cada um é provisoriamente confiado a quem o tem, não como “pessoal”, mas como bem a ser administrado, em favor daquele a quem cabe. Nesse sentido, a justiça regula as relações.
Por exemplo: o “seu” do trabalhador (retribuição justa) está nas mãos do empregador, que deve, de acordo com a justiça, rendê-lo a quem é devido. A relação entre os dois, entretanto, está exposta a um desequilíbrio, um poder que pode prevaricar: é por isso que a defesa da justiça deve estar do lado do mais fraco. Não é por acaso que os profetas invocam as categorias do “estrangeiro, do órfão e da viúva”, que são mais fracas em relação a quem tem poder.
A tarefa profética de defender a justiça dos mais fracos torna-se problemática na medida em que as instituições religiosas vivem em estreita associação com os poderes políticos e econômicos. Assim é no regime da cristandade, onde a Igreja é uma instituição que se encontra espontaneamente do lado dos poderes, como uma força conservadora do status quo. O fim da cristandade, se vier a expor a Igreja a menos poder, pode se tornar uma oportunidade para redescobrir uma força profética na denúncia da injustiça do poder. O fim de um equilíbrio dos poderes abre uma possibilidade nova e mais evangélica de redescobrir uma profecia às vezes perdida.
Se as páginas dos profetas são, acima de tudo, páginas de denúncia e condenação, nos momentos em que o povo vive disperso e em desespero - especialmente por ocasião do segundo exílio, da perda de Jerusalém, do templo, da dispersão em terra estrangeira - os profetas são capazes de visões cheias de esperança. A esperança assume a forma de uma visão: trata-se de ver algo que parece impossível, que contradiz a percepção imediata do mundo e o estado em que Israel está vivendo.
Na realidade, esse tempo de provação e crise se tornará um dos momentos mais férteis na espiritualidade de Israel. O desaparecimento do templo, do culto oficial, não é o fim da fé. Nesse tempo de provação, toma forma o cânone bíblico, refina-se uma espiritualidade da Palavra. Destruído o templo e na impossibilidade de imolar sacrifícios, o povo de Deus redescobre a Palavra e começa a lê-la novamente, a estudá-la... a escutá-la e a ouvir nela o sussurro de um Deus amoroso: “Escuta, Israel...”. O Esposo, após os dias de ira, mostra novamente sua face à esposa reconquistada, leva-a ao deserto para falar ao seu coração (cf. Os 2) e a consola. Nasce aquela espiritualidade dos anawin, daquele povo de pobres e humildes que encontra sua força e esperança somente na confiança no Senhor. Pensemos em duas visões - só para citar alguns exemplos - uma de Isaías e outra de Ezequiel.
A primeira visão a encontramos no livro do profeta Isaías, no capítulo 43: “Assim diz o Senhor, o que preparou no mar um caminho, e nas águas impetuosas uma vereda; o que fez sair o carro e o cavalo, o exército e a força; eles juntamente se deitaram, e nunca se levantarão; estão extintos; como um pavio se apagaram. Não vos lembreis das coisas passadas, nem considereis as antigas. Eis que faço uma coisa nova, agora sairá à luz; porventura não a percebeis? Eis que porei um caminho no deserto, e rios no ermo. Os animais do campo me honrarão, os chacais, e os avestruzes; porque porei águas no deserto, e rios no ermo, para dar de beber ao meu povo, ao meu eleito. A esse povo que formei para mim; o meu louvor relatarão.” (Is 43,16-21).
O profeta nos convida a não ficarmos prisioneiros do passado, nem da lembrança dos tempos antigos, nem do presente que parece sombrio e sem perspectivas; o deserto se tornará um lugar para redescobrir a experiência original onde Israel nasceu, como na passagem do Mar Vermelho, do cuidado de Deus por seu povo, do amor redescoberto. Algo novo está prestes a nascer, porque Deus é um Deus criador, capaz de trazer novas coisas à existência. É necessário ter olhos capazes de reconhecer a novidade que está prestes a brotar, o caminho que Deus abre no deserto.
A segunda visão, ainda mais poderosa, é do profeta Ezequiel (Ez 37,1-14). No início o profeta tem uma visão que parece horripilante: uma extensão de ossos ressequidos, desprovidos de vida. O que representam? A interpretação clássica lê nisso uma visão que introduz a esperança da ressurreição dos corpos após a morte. Trata-se de ossos mortos, mas de que morte? “A morte mencionada nessa página ocorre quando o sangue ainda está circulando no corpo do homem e os pulmões estão respirando. Os ossos que Ezequiel vê certamente não são os ossos dos cemitérios” (G. Angelini, Il profeta ammutolito, 136).
É o próprio Deus que interpreta a visão: “Então me disse: Filho do homem, esses ossos são toda a casa de Israel. Eis que dizem: Os nossos ossos se secaram, e pereceu a nossa esperança; nós mesmos estamos cortados.” (Ez 37,11). A morte coincide com a perda da esperança.
“Para ser algo diferente e mais que um osso morto, o homem precisa ter esperança: precisa ter olhos e coração para essa esperança e, assim, corrigir sua inclinação mortal de tentar sempre e somente se acomodar ao presente. Para ter esperança, deve poder contar com uma promessa” (Angelini 148).
A obra criativa de Deus é necessária para reanimar esse povo sem esperança. O profeta deve profetizar duas vezes. A que essa repetição se refere? Parece retomar a obra do início, quando o criador primeiro molda o ser humano da terra e, em seguida, insufla seu sopro, seu Espírito.
“A obra de Deus não foi realizada imediatamente no início da criação. Para se realizar, esperava o consentimento da própria criatura, dessa criatura especial que é o homem. O espírito - em particular - não permanece nas narinas e nos pulmões do homem a menos que o próprio homem não o reconheça e não o deseje. Para que o homem possa viver, deve sempre, de novo, invocar o Espírito, sempre que este parecer estar lhe escapando” (Angelini 151-152).
Assim, na visão de Ezequiel, o profeta tem uma tarefa não como simples testemunha, mas como ator que participa da reanimação.
“O que é surpreendente na visão de Ezequiel - o que deve nos surpreender - é o fato de que Deus não faça isso imediatamente, e sozinho; que não convoque o profeta ao vale para simplesmente torná-lo testemunha de seu trabalho; o que é mais surpreendente é o fato de que o profeta recebe a ordem de profetizar, e até mesmo de profetizar ao Espírito. Tal singularidade só pode ser compreendida à luz do significado espiritual da visão: os ossos só poderão receber carne e, em seguida, também e acima de tudo, poderão receber o espírito da vida com a condição de que queiram e, assim, consintam com a obra de seu Criador. Qui te creavit sine te, te sine te non redimet (Agostinho)” (Angelini 153-154).
A esperança passa, portanto, por uma visão: é preciso ver mais e além da cena imediata do mundo, para captar e sintonizar o olhar com a obra de Deus. Nós nos perguntamos: Jesus tinha uma visão?
Em seu breve texto, Jean Paul Audet, O projeto evangélico de Jesus, descreve o início do trabalho desse Messias, desse profeta itinerante. Não parece que Jesus tenha se movido impulsionado por um programa predefinido, por um projeto prévio que sabia de antemão para onde ir. Em vez disso, Jesus se deixa guiar por uma visão, cultiva um olhar que o orienta. Jesus sabia ver de uma nova maneira.
O que ele via? Poderíamos resumir a visão de Jesus à anunciação do Reino e ao fato de que esse Reino é capaz de alimentar a fé e a esperança de qualquer um. Jesus sabia como ver Deus à obra - esse é o sentido do Reino de Deus que se aproxima - e ele via isso na vida comum e cotidiana: no trabalho dos campos, no trabalho daqueles que pescam, nos lírios do campo e nos pássaros do céu; no trabalho dos administradores (mesmo os infiéis) e no trabalho daqueles que são contratados por dia, no relacionamento entre irmãos, nas ovelhas perdidas... todas as parábolas são uma grande visão de Jesus sobre o mundo, sobre a vida.
Mas há mais. Muitas vezes, Jesus convida justamente a olhar: “Eis que eu vos digo: levantai os vossos olhos, e vede as terras, que já estão brancas para a ceifa. E o que ceifa recebe galardão, e ajunta fruto para a vida eterna; para que, assim o que semeia como o que ceifa, ambos se regozijem. Porque nisso é verdadeiro o ditado, que um é o que semeia, e outro o que ceifa. Eu vos enviei a ceifar onde vós não trabalhastes; outros trabalharam, e vós entrastes no seu trabalho” (Jo 4,35-38). A visão do Reino permite que Jesus reacenda a fé no coração dos encontros que abundam em seu caminho. É o que Theobald chama de “santidade hospitaleira” de Jesus.
“Essa novidade é caracterizada por um certo tipo de relacionamento que é estabelecido com aqueles que Jesus encontra inesperadamente, e pelo efeito que é produzido. (...) De episódio em episódio, os relatos do Evangelho conseguem mostrar a surpreendente distância do Nazareno de sua própria existência. (...) Longe de ser um ardil ou um estratagema, essa postura é, ao contrário, a expressão de sua singular capacidade de aprender com cada indivíduo e cada situação que se apresenta a ele (cf. Mc 1,40s; 5,30; 7,27-29 etc.). Dessa forma, ele cria um espaço de liberdade ao seu redor, ao mesmo tempo em que comunica, por sua simples presença, uma proximidade benevolente àqueles que o encontram. Esse espaço de vida permite que eles descubram sua própria identidade e a acessem a partir daquilo que já habita profundamente dentro deles e que se expressa instantaneamente em um ato de “fé”: crédito dado àquele que está diante deles e, ao mesmo tempo, à toda a vida. Em seguida, eles podem voltar a partir, pois o essencial de sua existência foi jogado em um instante. No entanto, alguns permanecem com ele (Jo 1,35-39) ou são chamados a segui-lo (Mc 1,16-20), ou até mesmo a “tomar seu lugar” (cf. Mc 3,13-19)” (C. Theobald, O cristianismo como estilo).
Não é essa a visão de Jesus na terra da Galileia? Naquela mesma Galileia para a qual o Ressuscitado envia os discípulos após sua paixão, morte e ressurreição? Não é semelhante à nossa Galileia? A proclamação do Reino ocorre em um contexto que não parece ser caracterizado por um alto índice de ortodoxia religiosa, mas sim em um contexto promíscuo, onde diferentes culturas se encontram: a “Galileia dos Gentios” é uma terra de mestiçagem, com a presença de pagãos e israelitas, de movimentos espirituais emergentes e de homens e mulheres exilados das instituições religiosas, impuras, distantes. Jesus começa aqui, mas percebe e aprende a ver, no âmago desses encontros, a possibilidade de uma “fé elementar”, de uma coragem de viver que redime a vida mesmo e precisamente quando ela parece perdida.
O que falta à igreja hoje é justamente uma visão. Não são necessários programas, estratégias para recuperar posições e privilégios. Não é necessário o desejo de recompor um mundo que não existe mais, é preciso uma visão. Parece-me que essa “cena original” que vê Jesus entre os discípulos e as multidões pode oferecer os elementos essenciais de uma visão que seja inspiradora em nosso tempo, que ofereça esperança para o destino da fé hoje.
Como no início do ministério de Jesus, devemos aprender a caminhar pela história na companhia dos homens, sem poder contar com privilégios e instituições fortes, mas “desnudados”, peregrinos (peregrinos da esperança é o ícone do jubileu sugerido pelo Papa Francisco) que encontram homens e mulheres, pessoas muitas vezes feridas pela vida, sobrecarregadas por fardos, marcadas por fracassos e culpas que parecem imperdoáveis... Jesus reúne um punhado de discípulos ao seu redor, não muitos, não demais, doze ou setenta e dois, aqueles que são suficientes, e com eles se aproxima das multidões. Não para incrementar sua própria comitiva, mas para anunciar os sinais da proximidade do reino de Deus.
E não é só isso: para os discípulos, Jesus parece apontar figuras de fé inéditas. Os discípulos não devem apenas anunciar o reino, curar os doentes, libertar os prisioneiros, mas também aprender a fé com os encontros que Jesus lhes mostra. Pecadores - como Levi ou a mulher convidada pelo fariseu Simão -, estrangeiros e pagãos - como a mulher cananeia ou o centurião que intercede por seu filho, como o endemoniado de Genezaret -, publicanos como Zaqueu ou hereges como a samaritana... tornam-se figuras da fé, daquela fé elementar que restaura a coragem de viver, de retomar as rédeas da própria vida como única, como lugar onde Deus se faz próximo. Não se trata de ligar todos esses encontros a uma fé “confessional”, “de discípulo”. Haverá também aqueles que serão chamados a seguir o Mestre como discípulos - doze ou setenta e dois, aqueles que servem e que bastam, porque os trabalhadores são e sempre serão poucos - mas a maioria deles será simplesmente convidada a voltar à vida, a voltar para casa, capaz de viver na esperança que a fé acendeu em seus corações.
O que esse esboço de “visão” pode significar para a nossa ação pastoral? Não sei exatamente, mas acho que deveria nos libertar da ansiedade de “trazer de volta as pessoas à igreja”, dos números, da pertença eclesial... e nos tornar mais atentos aos encontros pessoais da vida, onde “de pessoa em pessoa” (cf. EG), podemos aprender de Jesus aquela “santidade hospitaleira” que reacende a fé. Uma pastoral mais livre da preocupação com a instituição e mais atenta aos encontros pessoais, onde a vida abre aquelas “fissuras” que podem se tornar novos começos. Aprenderemos a nos deixar surpreender pela fé que o Espírito ainda desperta no coração de homens e mulheres, e talvez encontremos novos olhos para ver os sinais de uma esperança que não morre, os gemidos de um parto que mantém a história viva:
“Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus esses são filhos de Deus. Porque não recebestes o espírito de escravidão, para outra vez estardes em temor, mas recebestes o Espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai. O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus, e co-herdeiros de Cristo: se é certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos glorificados. Porque para mim tenho por certo que as aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória que em nós há de ser revelada.
Porque a ardente expectação da criatura espera a manifestação dos filhos de Deus. Porque a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujeitou, na esperança de que também a mesma criatura será libertada da servidão da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que toda a criação geme e está juntamente com dores de parto até agora. E não só ela, mas nós mesmos, que temos as primícias do Espírito, também gememos em nós mesmos, esperando a adoção, a saber, a redenção do nosso corpo. Porque em esperança fomos salvos. Ora a esperança que se vê não é esperança; porque o que alguém vê como o esperará? Mas, se esperamos o que não vemos, com paciência o esperamos.
E da mesma maneira também o Espírito ajuda as nossas fraquezas; porque não sabemos o que havemos de pedir como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis. E aquele que examina os corações sabe qual é a intenção do Espírito; e é ele que segundo Deus intercede pelos santos.
E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito. Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou a estes também chamou; e aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também glorificou.
Que diremos, pois, a essas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho poupou, antes o entregou por todos nós, como nos não dará também com ele todas as coisas? Quem intentará acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem é que condena? Pois é Cristo quem morreu, ou antes quem ressuscitou dentre os mortos, o qual está à direita de Deus, e também intercede por nós.
Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, ou a angústia, ou a perseguição, ou a fome, ou a nudez, ou o perigo, ou a espada? Como está escrito:
por amor de ti somos entregues à morte todo o dia; somos reputados como ovelhas para o matadouro.
Mas em todas essas coisas somos mais do que vencedores, por aquele que nos amou. Porque estou certo de que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor.” (Rm 8,14-39).