“A imanência se tornou transcendência”. Entrevista especial com Roberto Marchesini

“É preciso rever o conceito de natureza humana e considerar que muitas vezes temos uma visão distorcida daquilo que somos”, observa o filósofo italiano

Foto: Pixabay

Por: Edição Patricia Fachin | 20 Novembro 2023

À primeira vista, “corpo”, “condição humana” e “tecnologia”, são noções que podem ser analisadas a partir das áreas do conhecimento de cada ciência em particular. Em uma abordagem filosófica, como a proposta por Roberto Marchesini, esses conceitos não só são articulados entre si como também oferecem uma explicação complexa da realidade. Essa foi a ênfase da videoconferência “Tecnofisiologia e Ontologia Híbrida. Novas interações entre a máquina e o corpo humano”, ministrada por ele no II Ciclo de estudos “inteligência artificial, fronteiras tecnológicas e devires humanos”, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em 09-11-2023.

A exploração da condição humana na perspectiva do filósofo italiano perpassa a compreensão do desejo a ponto de oferecer uma inversão do conceito que, segundo ele, está nas bases da atual crise ecológica e socioambiental. “Temos que pensar no desejo não como apropriação, mas como uma dedicação para algo, uma doação. A nossa natureza é uma natureza que tem uma tendência para a doação de si e essa doação de si está nas coisas que fazemos, nas comunidades em relação, no cuidado com os outros. Deveríamos então inverter o conceito de desejo e esse não é um aspecto secundário porque a ideia de que o desejo seja uma necessidade de apropriação está destruindo o planeta e, ao mesmo tempo, é a origem de muita infelicidade nas pessoas, pois as pessoas confiam tudo à ideia de apropriar-se de coisas; essas pessoas estão sempre insatisfeitas”, pontua.

Se, de um lado, o ser humano pode ser compreendido como criador de mundos, de outro, adverte, a crise ecológica nos mostra a outra faceta do humano: o destruidor de mundos. “Isso podemos vê-lo frequentemente na grande crise ecológica, que é uma crise antropológica antes de ser uma crise relativa à alteração do clima, à alteração das mudanças climáticas e da biodiversidade. O problema do ser humano é antropológico e até mesmo ontológico. É um problema que não leva em consideração as bases do ser humano”, argumenta. E questiona: “Quais são as bases nas quais é fundado o ser humano?”

Em interface com o mundo digital, Marchesini explora as mudanças humanas geradas pela transformação tecnológica, como a adesão a novos comportamentos, a ampliação de doenças crônicas, como estresse e ansiedade, a destruição do mundo natural e a fruição no mundo digital. Tudo isso, resume, “é a repetição, sobre outras formas, em outras condições históricas, sempre do mesmo mecanismo. Ou seja, hoje estamos vendo a repetição de algo como se a história não ensinasse nada, mas a história não ensina nada até que o homem leve em consideração a própria condição existencial, até que o homem olhe para dentro de si e não somente para as características históricas e sociais, mas para si, para dentro de si, com uma análise profunda de si mesmo. Quando o homem tiver a coragem de olhar para si mesmo, então a história poderá mostrar os erros que ele cometeu e poderá cometer”.

Ao refletir sobre os desafios da Inteligência Artificial (IA) e posições não críticas do desenvolvimento tecnológico, ele é taxativo: “Há uma visão onde a imanência se tornou transcendência”.

A seguir, publicamos a conferência de Roberto Marchesini no formato de entrevista, juntamente com as perguntas formuladas pelos participantes do evento.

Roberto Marchesini (Foto: Gires)

Roberto Marchesini, estudioso de ciências biológicas e de epistemologia, escritor e ensaísta, publicou vários artigos e pesquisas sobre o relacionamento entre homens e animais nas aplicações didáticas. Foi presidente da sociedade italiana das Ciências Comportamentais Aplicadas e diretor da Scuola di Interazione Uomo Animale. Ensina Ciência Comportamental Aplicada em algumas instituições italianas. Entre seus livros publicados, citamos: Il concetto di soglia (Theoria, 1996), La fabbrica delle chimere (Bollati Boringhieri, 1999), Bioetica e scienze veterinarie (ESI, 2000), Lineamenti di zooantropologia (Edagricole-Calderini, 2000), Post-human (Bollati Boringhieri, 2002), Imparare a conoscere i nostri amici animali. Guida per insegnanti (Giunti, 2003), Nuove prospettive nelle attività e terapie assistite dagli animali (Edizioni Scivac, 2004), Canone di Zooantropologia Applicata (Apeiron, 2004), Fondamenti di Zooantropologia. Zooantropologia applicata (Alberto Perdisa Editore, 2005).

Em 2006, Marchesini concedeu a entrevista “O pós-humanismo como ato de amor e hospitalidade” ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. A entrevista está disponível aqui. As demais conferências do II Ciclo de estudos “inteligência artificial, fronteiras tecnológicas e devires humanos” estão disponíveis na página do evento.

Confira a entrevista.

IHU – Que relações estabelece entre o corpo, a condição humana e a tecnologia na sua pesquisa?

Roberto Marchesini – A minha pesquisa se baseia na relação entre o corpo, a condição humana e a tecnologia na tentativa de entender como as ferramentas e os instrumentos mudam a nossa forma de ser e as nossas expressões além do nosso corpo. Comecei essa pesquisa no fim da década de 1990, publicando um livro que abriu caminho para uma reflexão antropocêntrica. O meu interesse inicial foi tentar entender a condição humana também do ponto de vista fisiológico e chegar a uma avaliação ontológica, partindo e tendo em consideração a condição fisiológica.

As pesquisas que eu tinha feito sobre antropologia filosófica, a partir de uma tradição clássica, desenhavam um ser humano incompleto, carente e que, de certa forma, resgatava o mito de Prometeu e Epimeteu. Prometeu, por exemplo, dava algumas virtudes encarnadas a todos os outros seres vivos e animais e deixava o ser humano desprovido de uma caracterização de classificação. De forma compensatória, Prometeu atribuiu ao ser humano o fogo, ou seja, a capacidade de tornar o mundo matemático e, ao mesmo tempo, a techné, a capacidade de construir instrumentos que pudessem realizar aquelas mesmas qualidades e predicados que, no mundo animal, são encarnados e que, no ser humano, se tornavam externalizações, ou seja, entidades fora do corpo.

Questão filosófica

Minha primeira questão foi esta: o ser humano pode ser considerado uma entidade incompleta do ponto de vista dos seus predicados e de suas qualidades morfológicas e fisiológicas? Esse aspecto me deixava muito curioso, pois pensava, muitas vezes, que temos uma avaliação a posteriori, uma vez que é normal o ser humano usar roupas e poder se sentir nu – eu considerava que havia um sentimento de carência. A criação da tecnologia, do mesmo modo, cria uma situação de carência porque, depois que as pessoas se acostumam a ter ferramentas que lhes permite alcançar determinados padrões de desempenho, é claro que é difícil abrir mão desse desempenho. Não é uma carência originária que produz a tecnologia. Pelo contrário, é a criatividade do ser humano e a sua capacidade de imaginação que produzem cultura e tecnologia. Essa capacidade de imaginação do ser humano de produzir tecnologia o leva a imitar alguns comportamentos animais, como, por exemplo, usar as peles dos animais, pensar em poder voar, observar o mundo imaginando para além do aspecto sensível da imaginação. O ser humano se coloca objetivos que pode ou não alcançar através da tecnologia. Se a tecnologia lhe permitir alcançar objetivos, ele se sente carente na ideia de estar sem tudo isso [tecnologia e objetivos]. Então o primeiro aspecto da pesquisa era colocar em questão a carência e a incompletude do ser humano.

Incompletude humana

Se o ser humano produzisse tecnologia para compensar uma falta ou carência, quanto maior fosse a produção de tecnologia, tanto mais ele estaria em uma situação compensatória. Ou seja, deveria haver um processo de tecnopoiesis porque, se a tecnologia é compensatória, quanto mais o homem for avançando com a construção de tecnologia, maior será a compensação e, igualmente, o desenvolvimento de novas tecnologias. Podemos ver que o efeito é de aceleração. Portanto, a tecnologia não compensa uma falta, mas, pelo contrário, amplia o horizonte de imaginação do ser humano. Quanto maior for o desenvolvimento tecnológico, tanto mais o ser humano poderá imaginar alcançar novas condições existenciais. Tudo isso acelera a sua capacidade de imaginar e buscar novas tecnologias.

Processo de aceleração

Colocar tudo isso em questão leva à ideia filosófica clássica de uma ideologia compensatória/ressarcitória, isto é, à compreensão de que a tecnologia poderia ressarcir ou compensar uma incompletude originária e objetiva do ser humano. A minha ideia é que as coisas não são bem assim. O ser humano tem uma grande capacidade de imaginação e, quanto maior for o desenvolvimento da tecnologia, maior é a capacidade de imaginação do ser humano. Então o processo é de aceleração. Realmente, a história da tecnologia é uma história de aceleração e não uma história de desaceleração.

IHU – Quais as consequências antropológicas desse raciocínio?

Roberto Marchesini – Temos um aspecto importante que precisa ser considerado. Se fizermos uma análise objetiva da fisiologia e morfologia do ser humano, nos damos conta de que o ser humano não é uma entidade carente. É claro que se considerarmos todos os animais e víssemos todas as qualidades deles, veríamos que o ser humano tem uma desvantagem em relação à complexidade de todos os outros. Mas, se comparamos o ser humano com outra espécie, com o cão, o gato ou pássaro, nos damos conta de que o ser humano não é uma entidade carente, mas uma entidade redundante. O ser humano tem uma estrutura de especialização muito forte do ponto de vista da morfologia bípede.

Quando comparamos o ser humano aos macacos antropomorfos, podemos ver que o ser humano desenvolveu características específicas. Pensemos na constituição da bacia, do fêmur, na coluna vertebral e outras partes do corpo humano. Muitos são os aspectos que nos mostram que a nossa espécie é especializada e não carente. Somos uma espécie que desenvolveu uma potência do crânio que não está na natureza; basta considerarmos o desenvolvimento do neocórtex e a quantidade de neurônios presentes no encéfalo do ser humano.

Pensemos também no desenvolvimento do pé, que é uma entidade anatômica muito especializada e que não está presente nos outros primatas. O pé caracteriza a nossa espécie como um ser vivo capaz de caminhar e ter um comportamento bípede. A falta de pelo e as glândulas nos permitem uma termorregulação que não tem igual na natureza do ponto de vista da capacidade termodinâmica de se aquecer e retirar esse calor do corpo durante a atividade física. A redefinição da língua e dos lábios permite ao ser humano produzir fonemas, algo que é impossível ao chimpanzé. Isso nos leva a entender que o ser humano não é uma entidade carente. Aliás, podemos dizer que a redundância cognitiva do ser humano é o que dita a capacidade de imaginação e criativa, uma capacidade de se imaginar, sonhar e alcançar determinados objetivos; não há nada igual na natureza.

A criatividade é algo que move a tecnopoiesis, ou seja, a construção de tecnologia não é uma falta a ser compensada, mas, ao contrário, uma imaginação redundante de uma criatividade tão forte que se permite imaginar outras situações existenciais e olhar para tudo em volta de si como uma ferramenta possível para potencializar e ampliar o seu raio de ação. Podemos falar de uma constituição física que é considerada redundante e não carente, em uma tecnopoiesis que nasce da imaginação e da criatividade do ser humano. Não se trata da compensação de uma falta física.

IHU – Por outro lado, como compreende a condição psicológica do ser humano?

Roberto Marchesini – O ser humano tem duas grandes questões que precisam ser mencionadas, algo que já foi avaliado por grandes filósofos, como Schopenhauer, Nietzsche, Espinoza, isto é, a ideia de que o ser humano apresenta uma dimensão afetiva e uma dimensão racional especialmente importantes. A dimensão afetiva indica o fato de que o ser humano tem, junto com a capacidade racional de pensar e imaginar, a capacidade de sentir e desejar. Ou seja, ter sentimentos e sentir, introjetar e vivenciar as situações em primeira pessoa. Pensemos nas capacidades empáticas, por exemplo, e, por outro lado, na grande capacidade de desejar. Nesse sentido, o impulso à imaginação vem por meio do volante do desejo.

No meu parecer, outro aspecto deve ser levado em consideração. Muitas vezes, o desejo não é avaliado de forma correta e esse foi outro ponto da minha pesquisa. Isto é, investigar o que significa desejar, de onde surge o desejo. Mais uma vez, o desejo é explicado enquanto falta de alguma coisa: nós desejamos algo, desejamos nos apropriar de alguma coisa. A meu ver, este é um grande erro, pois o desejo não nasce de uma carência, de uma falta, de algo que não temos e queremos obter. O desejo nasce de uma vontade de ação, da tendência do ser humano não somente de agir de forma concreta, mas também de agir por meio da imaginação. Vamos tentar imaginar o desejo como vontade de fazer alguma atividade. Por exemplo, a criança que está na praia juntando algumas conchas, não o faz porque carece de conchas. Não é a concha em si a origem do seu desejo. A origem do seu desejo é o prazer de coletar, o qual transforma a concha em algo interessante.

Enquanto pensarmos no desejo como a necessidade de nos apropriarmos de algo, sempre estaremos condenados à infelicidade. Se o desejo nasce da nossa vontade de agir, nunca serão as coisas que nos darão satisfação; é a ação que nos dará a satisfação. Quem está buscando cogumelos terá uma satisfação temporária ao encontrá-los. Mas o que aquela pessoa deseja realmente é passear no bosque, observar o que está em volta. Isso dá satisfação. Se eu colocasse uma caixa de cogumelos na porta da casa daquela pessoa, eu nunca daria satisfação a ela porque o que lhe dá satisfação é ir procurar os cogumelos.

Inversão do conceito de desejo

Então temos que pensar no desejo não como apropriação, mas como uma dedicação para algo, uma doação. A nossa natureza é uma natureza que tem uma tendência para a doação de si, e essa doação de si está nas coisas que fazemos, nas comunidades em relação, no cuidado com os outros. Deveríamos inverter o conceito de desejo e esse não é um aspecto secundário porque a ideia de que o desejo é uma necessidade de apropriação está destruindo o planeta e, ao mesmo tempo, é a origem de muita infelicidade nas pessoas, pois as pessoas confiam tudo à ideia de apropriar-se de coisas; essas pessoas estão sempre insatisfeitas. Por outro lado, as pessoas que doam a própria vida a uma comunidade, aos outros, que se doam para uma ação, são as que encontram a satisfação.

Natureza humana

Existe uma alteração aqui [neste modo de compreender o desejo] na maneira de considerar o ser humano e isso é problemático porque, afinal de contas, [a primeira compreensão de desejo] não é somente uma fonte de destruição, de conflito e competição com os outros, não é só fonte de individualismo e narcisismo, mas é fonte, primeiramente, de infelicidade. No movimento contrário, quando uma pessoa se doa, ela realmente encontra a felicidade. Temos raízes cristãs profundas, que deveriam nos fazer refletir sobre esse aspecto. Edith Stein falava do sentimento de doação, de se doar, de doar a própria vida para uma ação, uma atividade relacionada à comunidade. É preciso rever o conceito de natureza humana e considerar que muitas vezes temos uma visão distorcida daquilo que somos. Essa visão distorcida produz infelicidade, conflitos, destruição.

Heidegger falava do ser humano enquanto criador de mundos, universos, mas a sua interpretação do ser humano o leva para ser um destruidor de mundos e não para ser um criador. Isso podemos ver na grande crise ecológica, que é uma crise antropológica antes de ser uma crise relativa à alteração do clima, à alteração das mudanças climáticas e da biodiversidade. O problema do ser humano é antropológico e até mesmo ontológico. É um problema que não considera as bases do ser humano. Quais são as bases nas quais é fundado o ser humano?

IHU – Outro ponto que o senhor considera é a questão da solidão. Como reflete sobre ela antropologicamente?

Roberto Marchesini – A vida do ser humano nunca é uma vida solitária, de solidão. É uma vida de relacionamentos e esses relacionamentos são fundamentais, assim como a educação sentimental, a capacidade da criança, desde pequena, de crescer em um mundo que dê importância para as relações, para os laços afetivos. Antes de falar de educação sexual nas escolas, por exemplo, seria importante falar em educação sentimental, uma educação à relação, ao respeito do outro, ao encontro com o outro, pois é isso que falta. Alguns jovens sabem bastante sobre muitos âmbitos da ciência, pessoas estão muito informadas sobre sexualidade e outros aspectos, mas não têm preparação sentimental para enfrentar o mundo. Isso porque vivemos em uma realidade dominada pela visão apropriativa, dominada pela ideia de um individualismo desenfreado, que cai inevitavelmente no narcisismo, e que leva a uma insatisfação, mas, ao mesmo tempo, leva à destruição da comunidade. Não existe mais uma comunidade quando o indivíduo se ergue para ser o alfa e o ômega da existência enquanto centro orbital do mundo. Naquele momento a comunidade não existe mais, pois se realiza a liquefação das relações sociais e afetivas.

Deseducação sentimental

O mundo líquido, para retomar as palavras de Bauman, está ligado à deseducação sentimental que não nos permite entender que a coisa mais importante da nossa vida são as relações, são os laços afetivos que tecemos. Isso, infelizmente, não faz parte da natureza humana, mas da deseducação que as crianças recebem desde pequenas quando são levadas a acreditar que sua satisfação está nas coisas ou na competição e em ganhar dos outros. Quando são levadas a acreditar que devem encontrar um significado para a própria existência na sua vida. Não é possível encontrar um significado para a própria existência na própria vida. Caímos inevitavelmente no niilismo, que é fruto do excesso da razão e da busca em si mesmo do significado da própria vida. Admitir isso, a própria condição relacional, significa então admitir a própria liberdade, pois a liberdade não nasce de uma falta; nasce de uma redundância.

Todos os grandes estudiosos de sistemas complexos demonstraram que espaços de indeterminação existem quando um sistema é redundante, não quando é carente. Admitir que somos um nó nas relações significa resgatar aquele espaço de livre-arbítrio, de liberdade, que muitas vezes é negado por uma ideia de que a liberdade é pura aparência. Isso significa recair no determinismo – existem muitas formas de determinismo. Uma delas é o determinismo fisiológico, isto é, a ideia de que só somos o conjunto de mecanismos fisiológicos, quando, na verdade, esses mecanismos nunca são deterministas, mas sempre, como todos os sistemas complexos, estão ligados à situação de especificidade. Ou seja, aquilo que somos depende de condicionamentos externos que recebemos do ambiente e dos outros. Então, importa resgatar o conceito de liberdade, de indeterminação, ligado não à carência e à falta. Não é que nossa liberdade nasça porque somos carentes de uma falta, mas porque somos redundantes de relações, de fatores determinantes. É daí que nasce o espaço de indeterminação.

Outro aspecto da condição humana que coloco no centro é o aspecto fundamental do cuidado. O ser humano representa cuidado do mundo, doação de si. Ele tem a capacidade de construir e conectar o mundo e de se conectar com o mundo.

Do Homem Vitruviano ao ciborgue

Qual é a grande diferença, se levamos em consideração essa mudança na concepção humana? Qual é a diferença de uma posição humanista? Por humanismo, não entendo somente os pais fundadores do humanismo nem somente os grandes intelectuais e artistas da Renascença, mas toda a idade moderna e a tendência a considerar somente a razão como característico do ser humano. A diferença a temos desde as primeiras manifestações do humanismo. Estou me referindo aqui ao Homem Vitruviano. O homem de Leonardo da Vinci é o homem que ficou central no universo. O antropocentrismo é, primeiramente, um antropocentrismo ontológico que não admite nenhuma alteridade a não ser o ser humano. A visão vitruviana é a visão que coloca o ser humano no centro de uma teia de relações. Essa visão também leva em conta outro aspecto: o fato de que o Homem Vitruviano pode se permitir ficar sem roupa, nu, e manter seus predicados. A característica é de considerar tudo aquilo que é externo, ou seja, toda a dimensão cultural, religiosa, tecnológica, ecológica, como sendo um apelo que não faz parte da condição humana. Essa dimensão humana aparece como uma nudez, como a essência do ser humano e não como copresença dos predicados do ser humano.

Sem dúvida, não quero estigmatizar o humanismo porque ele teve muitas qualidades, trouxe grandes contribuições para a história da humanidade, mas precisamos considerar o fato de que o humanismo também cometeu grandes pecados. Hoje, após 600 anos, nos damos conta de quais poderiam ser essas falhas. A primeira delas é desprezar aquilo que não é humano com a pretensão de que o ser humano pode se despir, tirar tudo aquilo que faz parte da sua coessência – pois não poderíamos falar de vestir-se de cultura, de tecnologia, de tudo que é coessencial no ser humano. Ou seja, a ideia de que podemos nos despir de tudo isso e manter, ao mesmo tempo, o reconhecimento.

Podemos dizer que a grande diferença, hoje, é a dimensão do ciborgue. O ciborgue não é um organismo onde a tecnologia penetra e é enxertada nele. O ciborgue representa outra consciência, a consciência de que uma entidade cofatorial não é uma entidade solipsista. Este é o conceito de ciborgue: o ciborgue pode não ter nenhum enxerto tecnológico, mas, ao mesmo tempo, pode ser um ciborgue na medida em que admite que não é uma entidade da qual possa se despir, da qual possa tirar todas as suas caracterizações de modo a se reconhecer em si mesmo. Essa visão do ciborgue também deriva de uma consciência que diz respeito ao nosso tempo, ao período em que estamos vivendo. O fato de que a tecnologia, sobretudo a partir dos últimos 30 anos, não é mais uma tecnologia que podemos definir como instrumento, mas como parceiro.

Inteligência artificial

Pensemos na inteligência artificial (IA) e nas práticas de deep learning [aprendizagem profunda]. O que elas nos falam? Que temos tecnologias que são autoprogramáveis e que aprendem de forma autônoma, independente, por meio da interação com nossos comportamentos. Temos tecnologias, então, que escapam, do ponto de vista da programação, porque a tecnologia evoluiu dentro de um campo específico. Ao mesmo tempo, essa tecnologia está fora do controle na medida em que podemos controlar somente uma pequena parte dela. Esse é o grande problema que é um desafio hoje. É por isso que falo de uma necessária visão crítica da tecnologia, que não deve necessariamente ser uma visão neoludista ou tecnofóbica. Não devemos olhar para a tecnologia como algo perigoso, mas, ao mesmo tempo, não podemos nos confiar a ela de forma passiva, como os transumanistas querem, com uma visão até mesmo salvífica da tecnologia.

Visão crítica da tecnologia

Ter uma visão crítica significa entender que com certeza há aspectos positivos, mas há também aspectos incompletos e críticos que devem ser considerados e não podem ser ignorados por meio de uma visão otimista e banal, incapaz de levar em consideração o fato de que, cada vez que se abre uma luz a partir da tecnologia, surgem aspectos positivos, mas também negativos.

Dito isso, podemos dizer que as tecnologias se apresentam ao ser humano, muitas vezes, de forma totalmente diferente das estruturas tecnológicas do século XX. No século XX, a tecnologia era um instrumento, um objeto que o ser humano utilizava. Ele tinha pleno poder e titularidade sobre tais ferramentas, tanto no que diz respeito à sua projetação quanto à sua utilização. Hoje não é mais assim. Devemos entender isso porque, do contrário, não entenderemos o fato de que a tecnologia está evoluindo de forma muito acelerada, não linear e potencializada. Se não entendermos isso, estaremos diante de problemas sem conseguirmos saber o que fazer. Não é uma questão de considerar de forma negativa, ou com medo, a tecnologia, recusando-a, mas tampouco devemos considerá-la com uma visão otimista, pensando que a tecnologia de hoje é a mesma coisa que a tecnologia do século XX.

Atualmente, as tecnologias são muito diferentes daquelas do século XX e dos séculos passados. São entidades que interagem e aprendem como podem evoluir por meio da relação conosco. Essa não é uma pequena mudança, considerando que o ser humano, às vezes, dá maus exemplos para as tecnologias evolutivas, pois está ensinando coisas absolutamente erradas. Quando nos dermos conta de que somos educadores das tecnologias informáticas e entendemos que essas se assemelham mais a filhos do que a martelos, que estão aprendendo com os nossos comportamentos e não são entidades passivas que estão esperando para que nós as utilizemos, então poderemos dizer que há uma mudança paradigmática que não pode ser negligenciada ou subestimada.

IHU – Como reflete sobre a diferença e a interconexão entre o mundo analógico e o digital?

Roberto Marchesini – No mundo analógico, todos os elementos performativos estão separados entre si: eu olho fotografias, escuto um disco, leio um livro. Esses elementos estão presentes na realidade separados entre si e a minha fruição não é imersiva. Não estou imerso em outra realidade, mas, na realidade, utilizo práticas operacionais. Quando ouvia um disco de vinil, havia uma relação diferente com a realidade. O fato de folhear um livro também nos dava uma percepção multissensorial. Essas experiências estão enraizadas no real e vice-versa. Alguém que está imerso em uma dimensão digital, está imerso em outro mundo, desconectando-se da dimensão de convivialidade e relação com os outros. A fruição digital é totalmente diferente da fruição analógica.

Não quero dizer que no passado era melhor. Mas quero dizer que a condição digital está nos tirando da relação com o real, está nos afastando. Isso é evidente. As novas gerações estão jogando videogame, estão nas redes sociais, estão caminhando na rua com o fone de ouvido. É como se estivessem se afastando desse mundo. Nas mesas, todo mundo está com seu celular; as pessoas não estão mais falando nem se relacionando. Esse é um problema que deve ser levado em consideração e não pode ser ignorado, pois é um problema que cria uma deseducação sentimental. Essa deseducação nasce do fato de que os outros não são mais enxergados porque simplesmente há uma fruição de serviços digitais.

Mundo natural versus fruição digital

Muitas vezes ouço dizer que as pessoas estão preocupadas com a mudança ecológica, as mudanças climáticas, a destruição da biodiversidade, mas, na verdade, são só palavras; não é algo real. Não é algo vivenciado, experienciado. Se todos os pássaros sumissem deste mundo amanhã, ninguém se daria conta, exceto poucas pessoas, pois os jovens não estão mais acostumados a olhar para os pássaros, ouvir o canto dos pássaros. Por exemplo, meu avô, a cada estação, via as andorinhas diminuírem e ficava triste porque tinha construído uma relação com elas. Todo o mundo natural não nos pertence mais e não nos interessa mais; estamos imersos nos aspectos da fruição digital. Isso é algo que me preocupa porque representa um distanciamento, um divórcio com o mundo. Inevitavelmente, esse divórcio produz uma negligência. Se algo, de repente, não fizer mais parte da nossa realidade, se não tivermos construído fontes afetivas, aí acontece esse afastamento.

Alterações corporais

Mas o que podemos dizer em relação às alterações que essa relação tão próxima constrói no nosso corpo? Hoje, já sabemos que nosso sistema nervoso se assemelha ao nosso sistema muscular. Quanto maior for a utilização de certas partes do corpo, do cérebro, tanto mais elas se reforçam. Quanto menos partes do nosso cérebro e corpo são utilizadas, mais se enfraquecem. Temos um sistema plástico que se desenvolve com base na lei de uso e desuso. Podemos ver que os jovens têm menor capacidade mnemônica, pois não são mais estimulados a relembrar. Eles têm também uma menor capacidade de entender textos, de flexibilidade cognitiva. Temos superado o analfabetismo concreto, mas caímos no analfabetismo funcional, pois reduzimos de forma drástica as funções cognitivas das pessoas. Isso com certeza é algo que tem que ser considerado.

As estruturas tecnológicas não estão aumentando as capacidades cognitivas das pessoas; estão diminuindo drasticamente as suas capacidades por uma razão simples: estão se substituindo as funções cognitivas. Assim como as máquinas motoras substituíram as funções musculares dos seres humanos – a força muscular do homem diminuiu após as máquinas serem construídas –, da mesma forma as máquinas que desenvolvem funções elaborativas estão diminuindo as funções cognitivas dos jovens.

Alterações crônicas

Também existem relações endócrinas muito importantes. Primeiramente, o estresse aumenta. Ele aumenta devido à hiperestimulação. Todas as novas tecnologias estão hiperestimulando num ponto de vista de estresse crônico a vida das pessoas, estão alterando o biorritmo. Algumas pessoas sofrem de depressão, insônia, têm alterações do ponto de vista do sistema emocional, devido ao fato de que estão bombardeadas por situações de estresse, que altera o sistema cardiocirculatório. As doenças cardíacas estão aumentando de maneira absurda. Esse é outro ponto a ser levado em consideração junto com o fato de que os jogos eletrônicos produzem dependências ligadas ao mecanismo da dopamina. Isso significa que os jovens têm quase uma toxicodependência. Não existe só toxicodependência devido a substâncias como drogas, mas também há as ludopatias, que são formas de toxicodependência.

Toxicodependência

O fato de estar sempre imerso em sistemas digitais, como redes sociais, Instagram, TikTok, Facebook, jogos eletrônicos, ou na compulsão de buscas na web, faz com que haja uma dependência cada vez maior dessas tecnologias. Os jovens, hoje, passam de 6 a 8 horas por dia conectados em rede. Isso significa, se considerarmos a vida de um jovem, que ele poderia estar quanto tempo com os amigos ou com os pais? Que tem quanto tempo à disposição para ler um livro? Se ele passa muito tempo dessa forma, o que sobra?

Alterações físicas

Também existem alterações físicas. Sabemos que a maioria dos sistemas posturais estão se alterando de forma grave. Grande parte da nossa estrutura, por exemplo, da coluna vertebral e da postura da cabeça em relação ao pescoço está se alterando. É uma alteração que produz graves danos porque temos um corpo que tem uma estrutura que, de forma orgânica, é adequada. Não somos entidades que podem modificar uma parte do seu corpo e está tudo bem. Todas as alterações que se verificam se refletem em todas as outras partes do corpo. O nosso organismo é afetado de forma grave por essas alterações, assim como sofremos alterações graves durante a primeira Revolução Industrial, quando os operários eram obrigados a fazer certos trabalhos ficando em pé por muitas horas todos os dias, sem fazer outros movimentos físicos. Isso levou a alterações graves que depois foram revisitadas e reavaliadas. Ignorar esses aspectos, a meu ver, é muito grave.

IHU – O que gostaria de transmitir a partir dessa reflexão?

Roberto Marchesini – Não se trata de uma visão de medo, de denúncia em relação às tecnologias, mas uma visão crítica e problemática. É preciso olhar para essas transformações com um olhar crítico, não com medo nem com entusiasmo. Essa é a diferença entre o pós-humanismo e o transumanismo.

O pós-humanismo tem uma visão crítica entre corpo e tecnologia. Isso significa que nos mostra o caminho para entendermos como o nosso corpo foi conformado e moldado para fazer certas coisas e como certas alterações podem modificar nosso corpo e nossa mente também. Não é somente uma questão física, como se a nossa mente não tivesse relação com o corpo. Nossa mente é uma mente encarnada, tem uma dimensão existencial.

O transumanismo pensa que pode construir uma entidade não mais humana, mas completamente desvinculada da corporeidade. O pós-humanismo tem uma leitura crítica, uma visão ligada à dimensão fenomenológica do humano, uma dimensão segundo a qual o ser humano é sempre referenciado em relação à alteridade; não é disjunto, não é desconectado da alteridade. O pós-humanismo também coloca em primeiro lugar o fato de que a nossa tendência, a alteração antropológica, está na base da crise ecológica.

Crise ecológica e a compreensão de vida boa

A crise que estamos vivenciando não é só econômica, que diz algo à exploração dos recursos, mas à forma de considerar a vida boa. Pensar que a vida boa direcionada para mim, para a minha existência e para a minha própria ação, significa que eu tenha que consumir o máximo possível, e vivenciar o maior número de experiências possíveis, é um problema antropológico. Este é problema que está na base da crise ecológica: o fato de que o sentimento de comunidade foi destruído, o sentimento de relação foi destruído. O sentimento de comunidade e relação foi trocado por um niilismo total, que evidentemente leva a um hedonismo desenfreado. Hedonismo não apenas no sentido de prazer, mas o hedonismo da experiência, da busca de um significado em si mesmo. Isso produz sofrimento, pois não é possível encontrar uma satisfação e encontrar sentido para a própria vida somente em si mesmo.

IHU – Quais são as semelhanças e diferenças do conceito de tecnofisiologia para o manifesto ciborgue de Donna Haraway?

Roberto Marchesini – Diria que a diferença fundamental está na recusa de considerar um centro. No manifesto ciborgue de Donna Haraway sempre se tenta identificar algo que está no centro, uma entidade que represente um centro, mesmo que essa entidade mude. Em vez de inserir o ser humano no centro, Donna Haraway coloca um animal ou ciborgue no seu lugar, mas sempre tenta identificar um centro.

Considero Donna Haraway uma filósofa e pesquisadora muito importante e tenho muitas afinidades com o trabalho dela, mas a diferença está no fato de que eu coloco no centro as relações. Considero a existência de uma constituição intrinsecamente relacional do ser humano. Dou um significado especial às relações. O significado da relação, para mim, é a doação de si mesmo, o fato de colocar o outro no lugar de si. Não é uma visão fenomenológica; é mais próxima de Edith Stein em relação ao princípio da doação, à capacidade do ser humano de dar lugar para o outro e doar a própria vida. Considerando a própria vida não somente como um dom que recebemos, mas como um dom que cada um de nós faz aos outros.

IHU – A ontologia híbrida ressoa de certa forma com a corrente filosófica do cosmismo, no sentido de integrar, a partir da ciência, a razão e a revelação?

Roberto Marchesini – É importante superar as grandes divisões. Hoje, a ciência não pode ser considerada como uma análise de mecanismos, mas deve ser considerada também de um ponto de vista fenomenológico, como atribuição de sentido. Então não se trata, a meu ver, de ter uma visão cosmológica científica junto com uma visão religiosa, mas de modificar uma maneira de conceber ciência, não exclusivamente como se o cosmos só fosse um mecanismo que se move por meio de leis deterministas, mas considerar o cosmos como uma entidade que tem a sua história, diferentemente de um relógio. Esse é o princípio.

Diria que é importante, nesse caso, ter afinidades, mas, com certeza, há divergências. Essas divergências residem na responsabilidade que o ser humano tem em relação ao cosmos. É uma responsabilidade muito forte e está ligada à nossa dimensão existencial. O ser humano tem capacidades que outros seres vivos não têm, e é devido a essas capacidades que ele precisa ter uma maior responsabilidade. É errado não considerar o fato de que o ser humano tem características e responsabilidades próprias. Anular o ser humano e confundi-lo com o cosmos é errado.

IHU – Estamos em uma época em que aumenta o número de pessoas e famílias que procuram psicólogos e psicoterapeutas. Podemos dizer que isso é um sinal e sintoma de uma deseducação sentimental na vida das pessoas?

Roberto Marchesini – Com certeza. Para mim, o grande problema é que as pessoas não encontram na psicologia humanista uma ajuda. Não encontram na psicologia freudiana uma ajuda e não conseguem encontrar na psicologia cognitiva, baseada na elaboração, uma ajuda. Esse para mim é o grande problema do nosso tempo. Ou seja, o princípio de ajuda da pessoa deveria partir do conceito de amor e não estar completamente inserido dentro dos conceitos da racionalidade. Precisamos entender que o grave problema de cada um é um problema de amor. Que é de lá que a insatisfação nasce, que o medo da solidão e da morte nasce. Todos esses são problemas surgidos de uma carência de amor. Infelizmente, a psicologia não considera esse aspecto ou, pelo menos, o transforma, racionalizando esse aspecto. Isso produz o fato de que as pessoas se tornam, muitas vezes, dependentes de seus psicanalistas e não são capazes de resolver os problemas.

IHU – Yuk Hui acredita que mesmo a IA pode ser utilizada de forma protética. Como percebe os avanços da IA a partir da concepção de tecnofisiologia?

Roberto Marchesini – Antes de tudo, acredito que a palavra IA seja utilizada adotando o termo inteligência de forma incorreta. A inteligência não é a capacidade de resolver os problemas. A inteligência é a capacidade de se colocar os problemas. É a capacidade de se questionar; não é a capacidade de responder. A capacidade de responder pode nos ajudar, mas, em primeiro lugar, é a capacidade de fazer perguntas e questionamentos, de ir em profundidade, curar algo que não está aparente. A IA não pode fazer isso, pois ela é uma entidade capaz de elaborar dados e não de fazer questões. Chamá-la de inteligência é incorreto porque a IA não tem a propriedade de intus legere [ler por dentro], de ir em profundidade. Contudo, é verdade que a IA pode aprender conosco e, afinal, pode produzir resultados que, de certa forma, podem interagir conosco.

Do meu ponto de vista, precisamos realmente prestar atenção nisso, mas diria que mesmo o menor dos animais na vida se põe questões e, ao contrário, a IA não consegue fazê-lo, pois não tem afetos, motivações. Como ela é carente de toda a estrutura afetiva, só tem a questão elaborativa. O aspecto elaborativo pode torná-la uma entidade mimética, entidade capaz de chegar a certo desempenho, mas não porque ela deseja fazer isso. Seria interessante ter uma maior consciência do que é a IA em vez de pensar que a IA se assemelhe à inteligência humana, pois não é absolutamente assim.

De certo ponto de vista, do ponto de vista elaborativo, podemos dizer que daqui a pouquíssimo tempo a IA vai superar as capacidades do ser humano e se tornará mais performativa do ponto de vista da elaboração dos dados e da conexão desses dados. Mas ela não terá sentimentos – a não ser que aconteça uma revolução que eu nem posso cogitar, uma revolução que leve a IA a ser parecida ao computador do filme 2001 – Uma Odisseia no Espaço, que sentia medo, raiva, orgulho e todos esses sentimentos. Mas essas não são características de uma inteligência elaborativa. O medo, a raiva, o orgulho, o ressentimento não nascem da capacidade elaborativa, mas do fato de ser corpo, como autores importantes, como Damásio e outros neurobiólogos, nos falaram, ao recusarem o conceito segundo o qual a nossa mente seria uma espécie de computador. A mente não é um computador, uma entidade elaborativa, apenas. Ela também pode fazer elaborações e, nesse sentido, pode se assemelhar a um computador, mas a nossa mente é, também e sobretudo, uma estrutura afetiva e essa afetividade não é dada a uma inteligência artificial. Quando a IA estiver equipada de desejos, de paixões e de emoções, então não será uma máquina, será outra coisa e de nenhuma forma estará ao nosso serviço porque nenhuma entidade que tem interesses próprios limitaria seus interesses em razão de outras pessoas.

IHU – Como imaginação e criatividade tão evidenciadas no campo tecnológico podem decantar para o campo político, especialmente no contexto socioambiental turbulento enfrentado hoje?

Roberto Marchesini – Estudei muito educação sentimental e, para mim, a educação do que sentimos é uma educação de afetividade emocional dos laços; essa educação é a educação das nossas paixões. Trata-se de duas dimensões que podem estar direcionadas para o bem, a paz, o amor, mas também podem estar direcionadas para o ódio mútuo, o conflito, a competição. Sempre precisamos ter em mente que se trata de um aspecto de afetividade do ser humano que precisa ser levado em consideração. Se pensarmos que o comportamento moral está exclusivamente ligado à razão, nunca conseguiremos ter uma solução para isso, pois a razão tem seus limites. É inevitável. A história fala que a razão tem seus limites. Não se trata só dos limites que Kant nos mostrou. A razão tem limites também na capacidade afetiva, na capacidade de pensar no bem. O ser humano deve entender esse aspecto e não pode fundar o comportamento moral totalmente na razão. É preciso instruir o comportamento moral nas virtudes e não só na razão. Isso significa educar os próprios sentimentos e as próprias paixões e direcioná-los antes para a doação, a dedicação e o sentimento de doar-se para o outro.

O que infelizmente vemos hoje é a repetição, sobre outras formas, em outras condições históricas, sempre do mesmo mecanismo. Ou seja, hoje estamos vendo a repetição de algo como se a história não ensinasse nada, mas a história não ensina nada até que o homem considere a própria condição existencial, até que o homem olhe para dentro de si e não somente para as características históricas e sociais, mas para si, para dentro de si, com uma análise profunda de si mesmo. Quando o homem tiver a coragem de olhar para si mesmo, então a história poderá mostrar os erros que ele cometeu e poderá cometer.

IHU – O novo regime climático poderá se tornar a nova matriz de imaginação para os sistemas tecnológicos contemporâneos. É válido afirmar, a partir da mutação climática, que a filosofia da técnica poderá dialogar com o determinismo geográfico?

Roberto Marchesini – Estamos diante de um conjunto de problemas. Entre os mais conhecidos estão as mudanças climáticas, mas é somente o mais conhecido. Existem mudanças ecológicas profundas, como a erosão dramática da biodiversidade. É só olharmos o número de espécies que todo ano são extintas na terra para nos darmos conta do empobrecimento da biodiversidade que está acontecendo. Esse empobrecimento tem um impacto forte nos ecossistemas. Não podemos esquecer que os ecossistemas são como castelos de cartas: umas cartas sustentam as outras. Se eu tirar alguma carta, o castelo é derrubado. Da mesma forma, os ecossistemas estão implodindo, caindo em pedaços e isso vai provocar problemas para a vida e a capacidade de a vida regular as situações ecológicas globais. Muitas são as alterações de tudo isso.

Primeiramente, as alterações epidemiológicas. Teremos alterações cada vez piores. A pandemia do SARS-CoV-2 foi apenas o primeiro exemplo do que vai acontecer. Teremos cada vez mais epidemias graves relacionadas ao fato de que microrganismos e vírus que estão dentro dos ecossistemas – que estão controlados e encontraram equilíbrio ecológico dentro dos ecossistemas – começaram a sair desses ecossistemas e encontraram vetores que funcionarão como caixa de ressonância. As epidemias poderão se desenvolver de forma incontrolável, difundindo-se na espécie mais presente no planeta, de um lado a outro do globo. O SARS-CoV-2 foi baseado em um vírus que não apresentava um grande risco. Porém, todo mundo viu o que aconteceu. Ele não tinha uma alta mortalidade, mas imaginemos estar diante de um vírus com infectividade igual, mas uma mortalidade mais alta. A destruição dos ecossistemas produz alterações epidemiológicas, e isso deve ser fortemente levado em consideração. Teremos situações em que a alteração climática vai produzir situações de desertificação, de um lado, erosão das costas, de outro, e diminuição dos solos. Haverá deslocamento em massa de pessoas de um lado a outro do planeta, devido ao fato de que não será mais possível morar em determinados territórios. Os desafios que temos diante de nós no século XXI são enormes.

Fico sem palavras com o que acontece hoje na Palestina, em Israel, na Ucrânia, na Rússia. Sem palavras diante de um século que deveria nos encontrar unidos para achar soluções diante de situações tão graves. Não temos um planeta B, uma situação na qual podemos dizer que vamos sair daqui e ir para outro lugar. Não há um bote de resgate para o ser humano. O que deveria ficar claro é que essas catástrofes não deveriam acontecer para o bem da humanidade e para o bem do planeta.

IHU – Para entrarmos na era pós-humanista, precisamos necessariamente criar contextos pós-modernos e decoloniais?

Roberto Marchesini – Sim, com certeza precisamos de muitos pontos de vista. Não precisamos mudar tudo. Algumas tradições religiosas e culturais podem nos ajudar nesse sentido e o humanismo também pode nos ajudar. Precisamos ficar enraizados nas tradições para construir algo novo, mas, ao mesmo tempo, precisamos construir coisas novas e superar a dualidade entre ciências humanas e ciências naturais. Qualquer pessoa que se ocupa de pedagogia deverá conhecer algo da fisiologia da idade evolutiva, conhecer as características de uma criança para não desenvolver uma didática centrada na psicologia da aprendizagem do início do século XX. Ainda temos uma didática baseada no prêmio, na recompensa, no reforço positivo, na punição. Uma didática que não leva em consideração como são os mecanismos fisiológicos da aprendizagem, uma didática que ignora a neuroaprendizagem que se desenvolveu a partir da segunda metade do século XX. Ainda temos aquela configuração behaviorista do início do século.

Este é o grande problema: o problema de não conseguir conectar e criar pontes entre disciplinas. Se essas fontes não forem criadas, cada disciplina cresce por si só, de forma autônoma, mas não há passagem, não há diálogo comum entre os intelectuais e estudiosos, pesquisadores e professores. Isso é grave. Estamos diante de um grande desenvolvimento das ciências humanas e das ciências naturais, sem que essas tenham sido capazes de ir além do âmbito especializado. Nas escolas ainda se pensa como se pensava dez anos atrás, com base na passividade do aluno, com base no prêmio, na boa nota, na nota ruim. Isso não traduz os conhecimentos desenvolvidos nos últimos cem anos e é extremamente grave porque é na escola que se deveria investir mais, pois é o ponto fundamental para a sociedade de amanhã. A escola ainda é a cinderela de todos os países e a didática ainda está enraizada em uma visão obsoleta.

IHU – No livro A cultura do tempo e espaço, Stephen Kern parte da hipótese de que as transformações tecnológicas ocorridas entre 1880 e a Primeira Guerra Mundial estabeleceram novas formas de compreender o tempo e o espaço, desencadeando profundas mudanças sociais. As tecnologias contemporâneas nos alienam das condições do mundo material e cotidiano? Como elas podem ser transformativas e afirmativas da nossa condição afetiva e ecológica?

Roberto Marchesini – A grande transformação que aconteceu mais ou menos entre a segunda metade do século XIX e a chegada da Primeira Guerra, entre 1870 e 1914, a idade do Imperialismo, a Belle Époque, é uma transformação do espaço. É uma transformação onde há uma transformação dos mercados, temos o colonialismo, o imperialismo, o desenvolvimento dos meios de transporte, ou seja, a primeira forma de globalização. Isso produziu todos aqueles problemas do período que vai dos anos de 1920 até a década de 1970.

Geralmente, todas as transformações tecnológicas não têm um impacto imediato, mas criam as condições e os pré-requisitos que depois desenvolvem problemas sociais, políticos, culturais e a dificuldade do ser humano de se inserir nessas mudanças. Essas mudanças criaram a sociedade de massa, os totalitarismos e as condições que depois levaram às guerras mundiais e tensões mundiais. O que se faz hoje? Há uma tendência humana de mudar a dimensão do tempo mais do que do espaço. O elemento que se constitui é a ideia do ser humano viver não mais em uma condição temporal progressiva, como pode ser a época da infância, da adolescência, mas, ao contrário, viver em um tempo que é todo igual, que é e pode ser enfrentado de forma bidirecional. Isso está mudando drasticamente a nossa forma de viver a vida, pois isso está anulando toda a responsabilidade diante daquilo que fazemos. Se não temos um passo a passo, é natural que não se considerem as consequências das próprias ações, e não se assuma a responsabilidade do que se está fazendo. Esse é mais ou menos o nosso período, que corresponde também a uma visão que quer ir além dos limites de tempo e se projetar e viver após a morte através de avatares e na rede.

Se conseguíssemos construir uma IA que, de certa forma, capture todos os nossos dados e características, poderíamos pensar em viver dentro da rede, da web, mesmo depois de morrer, pois a IA continuaria nos representando e continuaríamos vivendo. A nossa identidade virtual se tornaria uma identidade real, pois teria características da nossa voz, nossas orientações, posições. Mas aí não há mais uma existência, mas uma res existência, que é algo completamente diferente. Estamos caminhando rumo a um mundo no qual o tempo é o parâmetro mais importante. Não por acaso quase todas as séries de TV e ficção científica se baseiam em um fator temporal, como viagens no tempo, aspectos relativos à construção, enredo e narrativa baseados no tempo, pois ele é o assunto principal da nossa época histórica. Há uma visão onde a imanência se tornou transcendência.

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